domingo, 21 de abril de 2024

crônica da semana - meu violão, meu amigo

 Meu violão, meu amigo

As cicatrizes são heranças, registros, dotes incontestes, ativadores de memórias, de capacidades de resistir, de viver mais, superando dores. São traçados marcantes, desenhos frutos da dor ou da crueldade dos tempos. Cicatrizes se mostram no tecido das lembranças, na tez negra dos ancestrais, nos olhos de quem vê, no coração de quem sente. Cicatrizes são multisons, multivozes, muitimatérias. São recortes latentes de algum sofrimento. São remendos recontadores de histórias.

Meu violão, meu amigo, tem uma cicatriz.

O que torna é que semana passada, seguindo a dita de que a gente oferece aquilo que gostaria de ganhar, dei um violão de presente para minha nora, no dia do aniversário dela. Ela gostou, porém confesso que a satisfação foi mais da minha parte. Senti que fazia o bem presenteando com um companheiro da mais alta valia, um amigo de todas as horas. O violão é parça de não se desapregar. Cuida da gente. E a gente cuida dele...

Tenho um Di Giorgio há nem sei quanto tempo. A lembrança mais remota que tenho dele é que foi com ele que compus as leves canções de ninar para minha filha, logo que ela nasceu. Só aí se contam 26 anos. Ainda que velhinho, ainda que exibindo as cicatrizes, tem um som de responsa, e uma postura elegante. Esses dias, comprei um suporte imponente pra ele e o acomodei num ponto de destaque na  casa. Ele compõe o ambiente com aquela elegância, aquela presença refinada digna de um Di Giorgio. Eu o trato com carinho, respeito e uma gratidão sem fim, por me acompanhar, por me dar esta oportunidade, de forma indulgente, em tantos anos reconhecendo meus limites, de me aproximar dos prazeres que a música ativa na gente. Tivemos, porém, momentos de extremada dor.

Certo dia, cheguei em casa e me deparei com o tampo do meu violão totalmente descolado. Um cenário desolador e distorcido que me apavorou e me desnorteou. Meu violão, meu amigo, estava destruído!

Quem nos salvou foi o Armando.

Na época, meu companheiro fazia um curso de luthier. Viu meu sofrimento e sem contar tempo, me socorreu.

Armando era assim, na essência, o que reconheço como companheiro. Sempre agia para o bem. Comunista bem mais preparado que eu, pois até hoje me sustento no valor sintético do método “ver, julgar e agir”. Ele não. Era estudioso. Analítico. Dominava as teorias, defendia e assumia os postulados que pregam uma sociedade livre e igualitária. Militamos em nichos sindicais diferentes. Eu, na iniciativa privada, ele, no serviço público. Armando chegou a presidir o Sinjep e a elaborar políticas também no campo partidário. Mas foi no meio da arte, que nos aproximamos.

Armando Soares era um ser de luz. E essa luz se irradiava. No meio sindical, na família, nas batucadas da vida. Sempre composto em sua boina de crochê, em várias ocasiões nos encontramos em saraus, nas intervenções populares de cultura em praça pública, nos shows de artistas e poetas da terra. Nossa família também se aproximou. Fizemos alguns encontros na Pirajá pautados na mais doce amizade de nossa petizada.

Aí, ele viu minha dor.

Pegou meu violão todo estiolado, levou para a oficina que oferecia o curso de luthier, organizou uma ‘junta médica’ e tratou meu violão, meu amigo. Não me cobrou nada. Era comunista, companheiro, camarada. Trouxe meu violão recuperado até mim, e quando o pôs nos meus braços, percebi nele, o ar de servidor que lhe era peculiar, aquele aspecto límpido, aprazível, cheio de afeto e carinho de quem se deleita em fazer o bem. E eu? Eu transbordando de felicidade e, ao mesmo tempo, imensamente agradecido.

Meu violão, meu amigo, tem uma cicatriz.

Encarou poucas e boas. Sem pele, sem osso. Passou. Encontrou, no caminho das desolações, Armando. Hoje dá nobreza à minha casa, à minha vida. Cicatrizes são recortes latentes de algum sofrimento. São remendos recontadores de histórias.

 

 

 

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