quinta-feira, 30 de novembro de 2017

                     Pipoqueiro

sábado, 25 de novembro de 2017

crônica da semana - consciência humana

O meu amigo aqui (ou: o dia da consciência humana)
Arte que me deixa piririca da vida é quando a pessoa esquece o nome da gente. Nem de todo mundo, óbvio, tenho zanga. Entendo que seja comum, nomes serem esquecidos quando não são constantes, presentes. Eu mesmo sou fanchão de esquecer. Convivo ali, na rapidola, desapego, passa um ano, passa outro. Uma chuva de abril, outra de dezembro e quando a figura reaparece, confesso: é um custo lembrar o nome. Dou o desconto. O tempo torna rarefeitos os arquivos, esvazia o tino, desnorteia certeza e precisões.
A minha teima é com aquele um que se diz amigo. Que divide tarefas no trabalho, ou por outra te sonda, te rodeia. Tenho pra mim, que este desatino vem nutrido, olha, olha, pelo desprezo. Traz embutido um preconceito latente.
Aconteceu uma vez, em Rondônia, de doer e não esquecer. Camarada trabalhava comigo, ali, ao pegado. Todas as noites, estávamos ombreados na resistência contra a solidão, naquele ermo, entornando umas rodadas do bom birinaite, batendo uma viola, ouvindo uns vinis, falando de trabalho, ainda com as botas enlameadas do dia. Morávamos num alojamento de parede-meia. Éramos, por assim dizer, próximos.
Certa vez a namorada veio fazer-lhe uma visita. A pequena era de São Paulo. Passou uns quinze dias com a gente, na mina, vivendo aquela rotinha de viola, de birinaite, de ermo, de calcanhares enlameados.
Deixa estar que passado um tempo e tendo a digníssima voltado para São Paulo, presenciei o contato do camarada por telefone, com ela. Em dado momento, esbanjando simpatia, disse que eu estava presente, o amigo, ali ao lado. Ao perceber que ela não estava lembrando de mim, ele refrescou-lhe a memória: “aquele negrinho que tocava violão comigo”. Agora mire e veja. Agora mire e veja se não dá pra ficar de banda com um sujeito desse.
De outra maneira, o sujeito lança mão desse expediente para te dar aquele gelo. Te ocultar.
Em Barcarena, durante algum tempo, fui dirigente sindical. Era difícil alguém não me conhecer na fábrica. Eram incontáveis as vezes que eu empunhava o microfone e conversava com a categoria em assembleias e mobilizações.
Deixa estar de novo, que eu era um sindicalista atentado e por isso, tinha lá meus desafetos, na esfera de comando da empresa. Todo mundo da outra parte, queria tirar uma casquinha de mim. Houvesse a chance, davam um trisca.
Pois calhou d’eu fazer um treinamento com um camarada que era tido e havido como um grande pelego. Enquanto palestrava aquela sensaboria institucional, quando queria referenciar alguma doutrinação, virava pra mim e buscava cumplicidade: “não é, meu amigo?” Ou virava para a turma e me envolvia na questão; “faz de conta que o meu amigo aqui...” Era nítida a intenção de ocultar meu nome, e ao mesmo tempo, de tentar credenciar o discurso dele com a minha presença.
E eu que não creio, dou benza a Deus pela paciência que me outorgou naquele dia.
O tempo torna rarefeitos os arquivos. Mas intenções nocivas, o exercício da degradação, o preconceito, humilhações e lampejos clássicos da consciência humana, essas coisas a gente não esquece.



sábado, 18 de novembro de 2017

crônica da semana - negoço

A palavra reanima (“e tem aquele negoço”)
Se tem uma moléstia que pode ser também da mulesta, era com essa combinação que eu me batia na terça-feira próxima passada: Com uma gripe da mulesta. Que me pegou, me bateu, me rebateu, me sacudiu e me jogou em pedacinhos, na cama, pleno feriado da República.
Antes, tive que chegar em casa.
Vinha do trabalho que não conseguia enxergar nada na minha frente. A impressão que tinha era que a maçã do rosto estava do tamanho de uma bola de basquete de tanta constipação. Cada espirro era um sacolejo da caixa torácica que se assemelhava a um trator passando aquelas pastilhas metálicas poderosas, em cima da gente. O mundo era um burburinho intenso no ouvido, mas longe, oco, ressonante e úmido.
Até que me aquietei naquela cadeira alta, no final do ônibus e as coisas foram se ajeitando. Minha casinha, meu sossego, meu repouso necessário, meu chá salvador de limão com alho estavam dali a quarenta e poucos minutos de mim.
Tinha até um dinheirinho, e havia me programado para quando chegasse de Barcarena, pegaria um táxi, para que minha agonia fosse mais breve. Mas tem aquele ‘negoço’ da ação automática, do ritmo cotidiano. Some-se ainda, o meu estado de estuporamento  avançado. Deu-se, então, que quando s’spantei lá estava eu na cadeira alta do ônibus.
Mais calmo, tornei. Abri as janelas do coletivo, destaquei do bolso os lencinhos absorventes para atuar na coriza ou mesmo num espirro explosivo. Nessa hora senti falta do meu celular para ouvir um sonzinho. Ficou pelo caminho, perdido na minha memória. Irrecuperável, desapareceu escondido no meu transe, no meu entorpecimento gripal. Paciência.
Mais na frente da viagem,  sentou um rapazinho ao meu lado e dali em diante, viveríamos o estresse dos engarrafamentos de boca da noite, que paralisam a cidade.
Teve uma hora que ele fez uma ligação e ficou um tempão, a bom expressar detalhes daquele momento. Falava para alguém que a aula começa às 6 e quinze. Que ele reconhece o inferno que se transforma o trânsito nesse horário de pico. Admite que daquele jeito não vai chegar nunca no horário. Traçou pontos críticos. Na frente do Santa Rosa. Naquela dobra do Shopping, na Doca. Mas já estava chegando. Perderia a primeira aula. Mas estava chegando.
Percebi, pela sequência da conversa, que a pessoa do outro lado da linha, apelando para obviedade, perguntou por que ele não saía de casa mais cedo, já que conhecia as travas do caminho. Nesse momento ele foi fatal. Cravou em verso, estilo, vivência e contundência. Respondeu dizendo que até poderia sair mais cedo de casa (e arrematou na maior caté), “mas tem aquele negoço: chove”.
Eu ali, precisado, carente de um descanso, de um chazinho e um colinho provedor. Diante de uma declamação desprovida de qualquer remorso, e ao mesmo tempo nutrida de uma composição estilística genial, por uns instantes declinei de dar trela às dores do trânsito e à gripe. A gente tá pê da vida, né, teve um dia horroroso, não teve? Mas tem aquele negoço: a palavra franca e inusitada reanima.


sábado, 11 de novembro de 2017

crônica da semana-grandezas

Grandezas e pequenezas
Éraste! Estava com uma idéia na ponta dos dedos, para a crônica da semana passada, mas quando comecei a digitar a maré mudou e saiu uma história diversa daquela pensada no início.
Queria me retratar sobre um furo daqueles, ó, que cometi no meu último livro. Um erro (até perdoável), mas, não isento de uma autocrítica. Um deslize que veio varando, se arrastando ao longo dos tempos e das mídias.
Tirando um pelo outro, o texto para o livro deveria estar todo nos conformes. Por isso, antes de mandar rodar, faço correções. Contrato gente, peço para parentes próximos capricharem na leitura. Passar um pente fino. A missão é garimpar desvios na grafia, na acentuação, na separação silábica, essas coisas, que derrubam a gente de quando em vez.
E não é que dia desses, depois do caso passado e repassado, meu amigo César Corecha, na viagem para Barcarena, lendo “Janeiros”, meu mais recente lançamento, veio comigo checar uma notação que fiz na página 46. A passagem relata a minha estatura (o dito erro). Deveria dizer que tenho um metro e cinquenta de altura, mas como não se trata de papeleta de exame biométrico, resolvi provocar o leitor fornecendo a informação em outra escala de grandeza (no meu caso, de pequeneza), não exatamente aquela do uso comum.
Corri a vírgula para a direita de 1,50m, o que significa multiplicar a grandeza por 10, e busquei uma notação em decímetro, que acho, ninguém, em momento nenhum da vida ousou usar (era uma crônica, certo? E crônica não é necessariamente a lógica curta e pronta. Um floreado, cai bem). Usamos metro, centímetros, milímetros, mas, decímetros, não temos o costume (temos padrões. Alguém de vós já se referiu a uma distância em hectômetro ou a uma medida em hectolitro? Uma famosa miss já perdeu o título mundial por causa de seus 0,00005 quilômetros a mais de cintura? Ou um corredor já percorreu 42 milhões e 197 mil milímetros de uma maratona?).
Disse, no texto, que minha altura era 150 milímetros. Errei feio. 150 milímetros não é a mesma coisa que um metro e meio. Bem feito, quem mandou florear sem o devido cuidado. O certo seria 15 decímetros. Ou, 1.500 milímetros. Em tudo por tudo, errei.
E o pior. O texto foi assim pro jornal, assim pro blog, foi desse jeitinho para a edição do meu livro e, de quebra, foi para a orelha de “Janeiros”. Uma mancada das grandes.
Não vai dar para chamar todo mundo que adquiriu o livro, para um recall. Rogo, porém, pelo perdão dos meus leitores. Foi um erro de cronista presepeiro, que ousa praticar o diferente. Faltou zelo, atenção em todas as fases e trajetórias dessa crônica, o que é motivo suficiente, não para que eu deixe de arriscar novas formas na minha escrita, mas para que eu exercite com mais apuro, a percepção (agora sim, nua e crua) do que escrevo, tanto em grandeza, quanto em pequeneza.

Era pra escrever sobre esta mancada, sábado passado, escrevi sobre a prova dos nove. E por falar nisso, 15 decímetros, novesfora, é 6. E a única vez que vi uma medida em hectolitro, foi no comércio de castanha. Uma medida injusta, aliás, imposta ao homem da floresta.

terça-feira, 7 de novembro de 2017

crônica remix - cobra sofia

Aí, aí...Quem conta outra?
Era uma vez um caçador que varava as noites à espera de uma boa caça. Na lua nova, localizava a comidia só com a raquítica luz de sua lanterna. Quando lá chegava, subia no mutá e ficava em silêncio, sem mexer um dedinho sequer, nem quando as suvelas lhe consumiam o sangue em sucessivas e doloridas ferroadas.
Certo dia, o caçador resolveu armar o mutá na lua cheia mesmo. A casa estava abastecida de carne de tudo quanto é tipo de bicho, mas o caçador agora, queria pegar um gato, pra tirar o couro e vender pr’aquele doutor que acabara de chegar na cidade.
Chegou no barreiro, ouviu o fuçado perto, e quando o primeiro porco apareceu, disparou. Sangrou o bicho, espalhou o sangue por um longo caminho e jogou o porco-do-mato dentro de um alçapão. Subiu na árvore e assuntou.
Quando a lua estava bem no meio do céu, os mistérios da meia-noite começaram a inquietar a alma do caçador. A mata silenciou e nem o zunido ameaçador das suvelas ouviu-se mais.
Foi então que ele viu, aproximando-se, entre os matos finos que se estendiam sobre a picada um hominho de cabelos vermelhos e pés pra trás. O pequenino encantado emitia um som de dor e revolta. Investiu sobre o alçapão e destruiu com poderosos golpes os feixes de gravetos entrelaçados que serviam de prisão para o porco-do-mato. O bichinho ainda respirava, mas sangrava muito. Antes de socorrer o porco nos ombros e ganhar o rumo da mata, o anãozinho achou o caçador se tremendo todo lá em cima, no mutá. Olhou para ele e...
Aí, aí... Quem conta outra?
Aí, sabe, num reino encantado, bem distante dali morava um príncipe muito bonito e muito bondoso. O príncipe tinha um primo que morava lá no alto das grandes serras, onde o céu é escuro e a noite é fria.
Este primo era muito mau e morria de inveja do príncipe porque ele era bonzinho e tinha muitos amigos e admiradores. O primo mau não tinha ninguém. Nem pai, nem mãe. Nasceu de um galho de espinheira e foi criado por um cachorro do mato e por um pavão sem cor.
Um dia ele encontrou uma bruxa que andava por ali pela floresta doida pra malinar com alguém. Então o primo mau prometeu para a bruxa que  se ela transformasse o príncipe em um urubu e, também, se ela encantasse todo o reino para que dele fosse amigo e bajulador, ele a levaria para morar no castelo e lá, ela poderia fazer as perversidades que quisesse.
Aí, sabe, a bruxa jogou o encanto, e no outro dia o príncipe apareceu no quintal bicando a lixeira e ciscando um restinho de comida aqui, outro ali. Foi então que apareceu a fada madrinha e ...
Aí, aí... Quem conta outra?
Aí, sabe, na beira do rio São Francisco, em Barcarena, morava uma família temente e devota das coisas do Senhor. Um dia, o vizinho lá do centro veio e avisou: “olha, não presta cozinhar carne de caça na semana santa, que a cobra Sofia se enfeza e vem buscar a gente”. A família não maldou. Na quinta-feira, a pesca rareou. A fieira que o pai trouxe não dava pra nada. A mulher então inteirou o comer daquele dia com um quarto de paca que ela tinha salgado dias antes. A família comeu à vontade. Empanzinaram-se de costela assada com farinha e com o caldo de peixe.
No outro dia, em jejum, o pai saiu pra pesca, com o filho mais novo. Quando cruzaram a ponte nova, sentiu o banzeiro. O pai fez ai Jesus e benzas deus e remou o mais forte que pode. Mais adiante, já quase chegando no  porto da balsa, a cobra Sofia ergueu-se das águas a quase dez braças do nível da maré e avançou sobre a canoa do caboclo. Nessa hora ele deu um grito medonho, se pegou com todos os santos e...
Aí, aí... Quem conta outra?  



sábado, 4 de novembro de 2017

crônica da semana-novesfora

Novesfora nada
Eu me diverti a valer com um vídeo que recebi outro dia pela internet. Mostrava um garoto oriental, na escola (sofrendo) de frente a um quadro, com o desafio de resolver a conta de subtração pedindo o resultado de oito menos seis. A conta no giz da lousa, o pequeno no aperreio. Tocava a lousa, contava nos dedos, fechava os olhos, efetuava mentalmente a operação, e nada. Numa última tentativa, recorreu à inocente cola. Olhou para a turma atrás dele e o olhar suplicou uma dica. Entre discrições e dissimulações, percebe-se um dos coleguinhas acenar para ele com os dedos médio e indicador em destaque. Ele disfarçou, deu um suspiro de alívio, voltou ao quadro e escreveu a letra “v”, além do sinal de igualdade.
Entendo a tensão do garoto. Quem de nós não passou por uma situação difícil assim de ir ao quadro e ser desafiado a dar uma resposta. A gente fica por acolá de nervoso. Eu mesmo, dia desses, já velhinho, quando fazia Cálculo I, na Federal, fiquei num pé e noutro quando a professora me mandou escrever um Intervalo Real no quadro. Mandei: (6,2). Não atinei que os números devem ser escritos em ordem crescente. Peguei uma super bronca de uma colega metidona que me repreendeu dizendo que por ser o mais velho da turma, deveria dar exemplo, não era pra errar uma notação besta daquelas que a gente aprende na sétima série. Toma-te. Me ferrei. Poderia ter olhado pra trás e suplicado uma cola, nera.
Aí, tá. Passou, passou. A turma toda criou uma cisma com a colega. A maioria dos jovens estudantes, além de mim, o velhinho da classe, estava reprovada mesmo (por causa também do Intervalo Real lá da sétima série) resolvemos dar um ‘até semestre que vem’ pro Cálculo I, com uma festa. Fiquei na contabilidade dos comes e bebes. Listei nomes, valor da contribuição de umas trinta pessoas e, no final, sem máquina, somei tudo na ponta do lápis. Ao final da conta, fui pedir a coleta da coleguinha. Aproveitei e pedi pra ela fazer a prova dos nove, pra ver se minha conta estava certa. Mas quando! Sabia as mais intrincadas equações, as mais enigmáticas funções. Derivadas por definição e Integral tripla. Mas se emboletou todinha pra me dar a prova dos nove da minha conta.
Dou o desconto para nossa jovem presunçosa. Essas coisas, prova real, prova dos nove, ponta do lápis, são artes de caixeiros, de prestação, de taberneiros das antigas, daqueles que vivem com um lápis atrás da orelha. Aprendi um pouquinho, com minha mãe a tirar a prova dos nove. Ela usava este artifício para garantir a certeza do que tínhamos em débito ou em haver, no final de cada dia de peleja com o crediário Santa Luzia, em perambulações, pelas ruas da Pedreira. Eram contas que iam além de uma página da caderneta de notas. Ao final, para conferir o resultado, lá íamos nós: oito e sete, quinze. Novesfora, seis. Bateu.
Este mês, já familiarizado com os limites que os intervalos da vida real nos impõem, inseri a conta de luz na coluna de débitos da casa. A conta não fechou. Calculei de novo e tirei a prova dos nove. Nove, novesfora, zero.
Bateu. Conta certa, futuro incerto.