sábado, 30 de janeiro de 2021

crônica da semana - o portão 2

 O portão 2

Aí, o inverno chegou. E dou a marca e a data. Chegou valendo mesmo na segunda-feira, dia 18 de janeiro. Foi o dia do pinga-pinga o tempo todo. Desde dezembro havia um ensaio barulhento do que seria o espetáculo chuvoso amazônico. Céu carregado, trovões, relâmpagos, arrepios e espelhos cobertos. Ah, vento arredando as telhas e nos assombrando com uma vuca de goteiras abrindo em todo canto da casa. Daí veio o dia 18. Amanheceu aquela nevinha caindo. Aqui e acolá engrossava um pouco. Amainava de novo. E assim, nos vimos de confronte com aquele inverno de chuva inteiriçada, daquela qualidade que dá um friozinho. Fui pra meia.

Aquele chiadinho no telhado e o céu da textura de um algodoado cinza compuseram um cenário melancólico. E foi mesmo um dia carpideiro. Um dia triste. As primeiras horas da manhã opaca nos contavam da ausência do riso, do bom humor. Do silêncio caboclo. Do submergir da prosa, do verso e dos bons dizeres tão generosamente nos ofertados pelo juiz, humorista, camarada pra lá de paid’égua de querido, Cláudio-Epaminondas Gustavo.

De lá pra cá a coisa engrenou. Não parou mais a chuva e os dias se estiraram molhados e friínhos, choraminguentos.

E daqui pra frente, vamos precisar de todo mundo. Vamos nos dar as mãos, contornar e, se o amor que dizemos ter pela cidade for de verdade, vamos evitar os sofrimentos que temos passado nos últimos anos.

Teremos nevinha e pinga-pinga doces, ocorrerão temperaturas glaciais que nos levam a nos embrulharmos dos pés a cabeça com o quentinho lençol de rede, mas vamos também, ter grandes precipitações, volumes de água caindo do céu que podem superar 100mm em poucas horas, e se coincidir com a maré alta, dá causa à apreensão, cuidado e vão nos fazer tirar a meia e pular da cama atentos aos movimentos.

Grandes chuvas funcionam como marcadores na vida pessoal e também, na realidade da sociedade. Em março do ano passado caiu um pampeiro de mais de doze horas e que resultou em situações de desespero, com famílias perdendo móveis, aparelhos eletroeletrônicos, para a enxurrada que invadiu as casas. Do outro lado, produziu movimentos inusitados de grupos nem seu souza pros problemas. Praticaram natação, saltos acrobáticos, outros fizeram um pagode com mesas e cadeiras de bar mergulhados na água. Do portão de casa, acompanhei abismado, a subida de nível do canal da Pirajá até ultrapassar as muretas e formar um grande mar na rua, Um perigo!Aquela chuva do ano passado marcou porque revelou comportamentos diversos da comunidade ante um evento delicado e também porque foi o momento-impacto-Belém que antecedeu a tragédia provocada pelo Corona Vírus (e que também gera comportamentos ecléticos).

Anos antes, me batia de melancolia. Era fevereiro. Estava em tempo de voltar para o trampo lá pras bandas de Manaus. Últimos dias de férias. E o toró me prendendo na Sacramenta. E o aconchego e uma saudade antecipada, e as gotas flambando o zinco na biqueira do chagão, e uma paixão brotando e morrendo longe ao mesmo tempo. Fiz um poema. Aquela chuva marcou pela saudade imensa. Belém, cidade das águas e das lágrimas de despedida.

Vamos renovar compromissos. Dar destino certo ao lixo. Abrir caminho para a água. Prefeitura tem que dragar e limpar os canais. Nada de jogar sofá no leito dos igarapés. Tentemos não sofrer e evitar ecletismos este ano. Ontem mesmo vi imagens de mergulhos e tibêis no canal do Galo transbordado. Um perigo!

 

 

 

 

 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

crônica da semana - pequeno lago

 O pequeno lago

A história do pequeno lago não tem origem em nenhum sonho profético. Porém, tem o mesmo final. Saímos da lama.

Nesta quadra de aniversário de Belém, tento ressaltar os poucos avanços que tivemos em ações contra alagamentos. Meu bairro ainda sofre com as chuvas, mas já esteve bem mais de bubuia.

Sábado passado falei sobre aquela região destacada como o grande lago, encravada entre a Everdosa e a Senador Lemos e que por não ser trajeto comum no meu dia-a-dia, naqueles tempos molhados, me causou surpresa assim de palmo em cima. O diferencial era a grande quantidade de água se estendendo ao longe.

Na minha rotina, não havia surpresa. Era caminho batidinho por mim pra tudo em quanto e estava canso de varar de um lado pro outro, o estirão enxombrado da Pedro Miranda, e sair no seco com a perna minada de chamichuga. Esse meu pedaço mais íntimo era diferente do outro lago porque só ganhava volume e se espraiava pelas beiradas, no inverno. Na maior parte dos meses do ano a área era tomada apenas pelo igapó úmido, formando um canal com água abundante somente em trecho restrito, pouco antes da Escola Salesiana. Este desconto sazonal nos dava oportunidade de elaborar caminhos, depender pouco das estivas, e ainda montar várias ilhas pra jogar futebol com a serragem que a gente carregava dos estabelecimentos do bairro. No inverno não, no inverno enchia tudo mesmo e nossos campinhos submergiam.

Eu acompanhei pelo menos três projetos que visavam dar fim ao pequeno lago que era a Pedro Miranda e os igapós que dominavam as passagens nas adjacências. O último foi o da macrodrenagem do Una. Há ressalvas sobre a amplitude da eficácia desse projeto, mas aqui pras bandas da Escola Salesiana, hoje em dia, não enche mais não.

Antes da Pedro Miranda segurar o asfalto, porém, dei um tibêi na lama.

Foi ali pelo início dos anos 80. Época de despertares, primeiros encontros com o violão, com as versões emergentes de arte e política.

Naquele contexto, eu tinha uma referência. Companheiro um pouco mais velho que os outros da turma, contando com vivências ricas naquele mundo de democracia se redesenhando no Brasil. Alberdan era um exemplo de um novo alvorecer para nossa galerinha. Militante sindical, ativista político, havia marcado presença na evolução do teatro nos limites e nas concessões da pastoral Salesiana. Inesquecível o dia em que o vi em cima de um carro som cantando “Apesar de Você”, em meio a um cerco policial que impedia um protesto de estudantes na frente do palácio do governo. Quis ser amigo dele. Refinei contato.

Tamanha admiração me levou a fazer uma homenagem ao Alberdan. Juntei uns pequenos, fizemos uma coleta, providenciamos o de comer, o de beber e combinamos um sarau na casa dele. Lá pra de noitinha, pela aquela horinha, resolvemos cortar caminho pela passagem H, que era um segmento pantanoso cortado por estivas. No meio da caminhada patetei. A ponte dobrava e eu passei direto. Enterrei até aqui na lama.

A parte mais caudalosa do igapó ficava além dali. Sobrou pra mim o charco pastoso, lodoso e mal cheiroso, que me prendeu a modo daquela lama gulosa que aparecia nos filmes do Tarzan. Meus amigos me puxaram e me resgataram do socado em que estava. O sarau e o encontro com meu amigo Alberdan foram adiados.

Muitos dias nos vimos mais tarde, já depois da realização da macrodrenagem da bacia do Una. Mas nos estamos devendo ainda um sarauzinho.

sábado, 16 de janeiro de 2021

crônica da semana - o grande lago

 O grande lago

Já tive um sonho profético: era um caminho... conhecido, pavimentado, seco, ruas de bom traçado. Um muro alto de múltiplas personalidades, além, era sinal de terra firme, plana e elevada.

O paredão era motivo de contentamento. A fronteira entre o passado e o futuro sonhado, e alcançado, de sair de dentro da lama.

Poderia ser o muro da Escola Salesiana, do Catarina Labouré, do Graziela Moura Ribeiro.

Quando tive o sonho, a Pedreira e a Sacramenta formavam uma grande planície alagada. Abaixo, ao sul, estirava-se o canal que irrigava o igarapé do Galo, temido pelo talvegue de águas velozes que cortava a Angustura, e que tinha tanta força, e que trazia tanta água, que muitas e tantas vezes sequestrou crianças para as profundezas lodosas e escuras e as arrastou até o remanso do Acampamento.

Era um grande lago! Eu o vi de perto e pela primeira de outras muitas vezes, quando fui cobrar uma freguesa da mamãe. Tinha o roteiro até a Everdosa dominado. Passando dali, adentrava ao desconhecido. Seguindo orientação da mamãe, pulei das pontes largas da Everdosa para as instáveis e apodrecidas estivas da Passagem D’Outel. Caminhei pouco tempo por aquele beco estreito, ladeado de casas com alpendres gradeados de madeira e crianças protegidas por portõezinhos pensos e baixos. Meus olhos, quando saí do beco, saltaram surpresos. À minha frente, se descortinava a cidade inundada. Um mundo jurássico de água, salpicado de casinhas, entrecortado por pequenas pontes, pinguelas, pranchão inteiriço em alguns regos, travessas e atracações com cipó em outros. Traçados regidos pelo alinhamento das estivas. Ordem e simetria libertas, sem preconceitos ou medidas rígidas: uma carreira de ponte levaria o caminhante a qualquer lugar. Por vezes, até, fazendo interface com a cozinha de alguém, contornando a retrete, ou mesmo desviando de um alpendre prolongado. Sem restrições ao ir e vir.

O caminho se ramificava adiante. Dois ou três alinhamentos de palafitas se apresentavam como opção. Mentalmente, reconstruí o mapa que mamãe havia feito da área. Ajustei o rumo e achei a casa da freguesa, até rápido. De forma alguma, tranquila, porém. Ela criava uns quantos cachorros. Tive que ser rapaz para apascentá-los e me equilibrar na ponte até que ela me acudisse.

Desobrigado da missão, me dei a explorar o lugar. O alagado ia até aonde a vista alcançava. Tiras de casas separadas por boa faixa de água, quando não, por um tapete de capim verdinho que tinha uma espécie de talinho que trazia a forma de uma flecha e servia de arma poderosa nas brincadeiras com a molecada da minha rua. Continuei a caminhada naquela planura. Muito lá na frente, outras bocas estreitas surgiram. Decidi por uma. Novamente, um beco acanhado. Estiva apodrecida, uma nesga de aterro misturado com caroços de açaí e saí na terra firme. Foi quando eu vi o muro...

Anos mais tarde, depois daquela missão que mamãe me deu, e também, depois do sonho que tive, houve a necessidade de ir comprar tal coisa assim assim, lá na Senador Lemos. Chamei um táxi e me abalei aqui da Pedreira. O motorista pegou a Lomas direto, depois cortou pela Everdosa, entrou rés o canal da Passagem D’Outel e dali rodou por uma rua asfaltada, seca e de bom traçado. Antes de dobrar para a Senador Lemos, pela janela, vislumbrei ao longe, o muro. Uma lágrima rolou dos olhos. Era o meu sonho se realizando. O grande lago havia desaparecido.

 

sábado, 9 de janeiro de 2021

crônica da semana - belém na vera

 Belém na vera

É peça certa, traçada e riscada na folhinha do ano, a homenagem a Belém, no janeiro de aniversário.

Se eu fuçar aqui nos meus apontamentos, nos 14 anos que escrevo esta coluna, é cravadinho a cada janeiro, um encarreirado de tico-ticos, nheco-nhecos, beijinhos e carinhos sem ter fim para esta cidade que amo. Sem falhar um ano. E tanto, que os textos geraram até um livro. Minha última experiência editorial deu-se com a publicação de “Janeiros”, uma coletânea trazendo Belém como personagem principal de todas as crônicas.

A chuva bate ali no flandre que reveste o telhado de confronte aqui de casa, faz um barulho metálico e molhado; o vento balança o jambeiro que faz ‘renque/renque’ pra lá, passa um pedacinho, dá uma volta desajeitada no espaço e faz ‘renque/renque’ pra cá. Um frio polar de 24 graus me leva cogitar calçar uma meia, para melhor confortabilidade. Deixo a janela entreaberta, porque gosto de ver e ouvir a chuva nas mais variadas modalidades de timbres e de arranjos plásticos, se realizando no terreiro. Me ajeito na cadeira, procuro um gancho para iniciar o parágrafo, de preferência que lembre a Pedreira, o igarapé do Zé, o estirão de mata da aeronáutica, na margem da Dr. Freitas, os canteiros da Marquês, porque estes são os componentes da cidade que me têm dado causas neste tempo de acabrunhamentos e isolamento compulsório. Quando estou em tempo de criar as primeiras frases do texto, viro estátua. Paraliso todo o corpo e um torpor invencível toma conta de mim. Penso no que ‘mais credo é isso’ que me acontece, que me deixa neste transe improdutivo, nesta introspecção oca e enferrujada. Logo identifico o motivo do abilesamento: um cidadão do bem encostou o carro ali na Pedro Miranda, abriu a mala e libertou os demônios que habitam aquele maldito aglomerado de caixas de som. Toda a área no entorno é impactada por essa zoada. Inclusive o meu cocuruto. Minha concentração desfaleceu e olha, até que o fogo daquele inferno sonoro abrandasse, custou que só para eu tornar.

Torno porque sou de tornar, mas um chiliquto de desfalecimento me espreita, me arrepia. E me deixa em alerta. É o pânico, o medo desse embate. Desta avalanche de decibéis. Rogo para que tudo isso passe e que reine, não o silêncio fúnebre absoluto, mas a serenidade, a sensatez, o bom propósito de um samba ritmado na caixa de fósforo (por que não?).

Há de se estabelecer uma reentrada, uma brecha de luz em meio ao caos. Belém em mim é redenção. É passagem. Rito de conversão: das ruas de seringa ao asfalto da Boulevard. Das brenhas ocidentais que nunca anoitecem ao amanhecer plúmbeo na Pedreira. Dos rosnados perto de felinos ancestrais ao ronco longe e turbinado de motores dos aviões lá pras bandas da Maracangalha. Belém é riso e contradição. Risco e trovão. Verdade, versão. Minha confortável ilusão.

Devaneio necessário. Placebo fitoterápico de manga verde com sal. Valência diluviana de Guajarás, Pirajás e Guamás. Abstração que me salva. Idílio e fantasia; bruma almiscarada de paixões incuráveis por esta terra que falta um grau para ter o charme peninsular. Belém, a porta sempre aberta (Pedreira do samba e do amor, meu perdão, minha bença).Triscas de tristeza mergulham e se desfazem no mar-Belém de contentamentos e realizações.

Eis que Belém é maior que a realidade crua e suja. É transcendente, gloriosa, elevada, graciosa cidade que, na vera, quero é bem.

 

 

sábado, 2 de janeiro de 2021

crônica da semana - o amanhã

 O amanhã

Mamãe costumava dizer que o dia de amanhã não nos pertence. Assim de prima, pode até parecer, mas não, não negava o futuro. Apenas reconhecia que o dia seguinte deveria ser construído a seu tempo, dentro das nossas possibilidades e limitações que eram variáveis e tantas. Era um desafio diário nossa vida, por isso, sempre a expectativa de uma estratégia específica para cada momento. Cada dia era uma história única, necessária e decisiva.

Essa dinâmica, este porvir independente de planos e agendas, não era, de forma alguma uma propriedade da minha família. Naqueles tempos, a vida era dura para muita gente. No início da década de 70, do século passado, sob o coturno dos militares, O Brasil convivia com uma taxa de mortalidade infantil beirando cem crianças para cada grupo mil. A expectativa de vida não ia além dos sessenta anos. E a filharada era muita. Do jeito que acontecia na minha casa, se dividíssemos a Pedreira em cinco partes, em quatro delas, o responsável pela casa partilharia o mesmo dilema noturno de minha mãe: como venceríamos o dia de amanhã? A realidade era certeira. Saberíamos somente após arregalar os olhos. Da precisão, vinha a inspiração.

Sim, tinha a outra parte que não perdia noites de sono. Para esta pequena parte, a vida admitia a previsibilidade de um amanhã sem maiores perturbações. Conheci gente que não se avexava pra arrumar o que comer no dia seguinte. A comida aparecia como se houvesse uma combina. Sem obstáculo e nem ressalvas. Era difícil para mim, entender aquela diferença que marcava o dia de uns e o dia de outros. Nas vezes que varava na casa de amigos, mais aqueles de grana, na horinha mesma do almoço, sem crivo, era convidado para sentar à mesa com eles. Percebia ali uma fartura, uma facilidade que lhes permitiam até exercer a caridade, colocando um prato a mais na mesa. Uma atitude que demonstrava um conforto que eu não via na maioria das casas que freqüentava. Não era intencional. E nem esboçava qualquer demanda, mas como era rueiro, ajudava a mamãe nas vendas e estudava no intermediário, aqui, ali era mesmo agregado a um almoço na casa de alguém. (Depois soube, à boca pequena, que, a mais intempestiva visita, eu não conseguia disfarçar o olhar de pidão).

As concessões políticas, sociais; Algumas conquistas alcançadas pelos trabalhadores modificaram o cenário. Os números do Brasil melhoraram em 50 anos.

Embora os pequenos avanços tenham sugerido a fé no amanhã, para muita gente vale ainda a construção diária da vida. Mas, vá lá que seja, com alguma fé no porvir. Penso que ao longo dos anos nos animamos até a planejar. Reconhecemos oportunidades na educação. Alvejamos melhoria na qualidade de vida com políticas sociais afirmativas, inserção em ambientes jamais freqüentados. Para mim, o futuro ficou menos anuviado. Dava pra ver uma nesga se revelando.

Num repente, tropeçamos e regredimos 50 anos. Assustou-me profundamente a declaração de uma especialista, em um jornal de TV, analisando estes tempos de pandemia, e com o agravante de um presidente que nega a gravidade do momento. Disse ela que, do jeito que está, nós os brasileiros não devemos contar com o amanhã. E pelo que percebi, nem do jeito que o amanhã era entendido pela minha mãe. Eita! Tremi dos pés a cabeça.

Depois a especialista fez uma ponderação e nos deu uma esperança. Para que o amanhã possa ser uma possibilidade, temos que nos reconstruir.

Umbora nessa!