sábado, 9 de janeiro de 2021

crônica da semana - belém na vera

 Belém na vera

É peça certa, traçada e riscada na folhinha do ano, a homenagem a Belém, no janeiro de aniversário.

Se eu fuçar aqui nos meus apontamentos, nos 14 anos que escrevo esta coluna, é cravadinho a cada janeiro, um encarreirado de tico-ticos, nheco-nhecos, beijinhos e carinhos sem ter fim para esta cidade que amo. Sem falhar um ano. E tanto, que os textos geraram até um livro. Minha última experiência editorial deu-se com a publicação de “Janeiros”, uma coletânea trazendo Belém como personagem principal de todas as crônicas.

A chuva bate ali no flandre que reveste o telhado de confronte aqui de casa, faz um barulho metálico e molhado; o vento balança o jambeiro que faz ‘renque/renque’ pra lá, passa um pedacinho, dá uma volta desajeitada no espaço e faz ‘renque/renque’ pra cá. Um frio polar de 24 graus me leva cogitar calçar uma meia, para melhor confortabilidade. Deixo a janela entreaberta, porque gosto de ver e ouvir a chuva nas mais variadas modalidades de timbres e de arranjos plásticos, se realizando no terreiro. Me ajeito na cadeira, procuro um gancho para iniciar o parágrafo, de preferência que lembre a Pedreira, o igarapé do Zé, o estirão de mata da aeronáutica, na margem da Dr. Freitas, os canteiros da Marquês, porque estes são os componentes da cidade que me têm dado causas neste tempo de acabrunhamentos e isolamento compulsório. Quando estou em tempo de criar as primeiras frases do texto, viro estátua. Paraliso todo o corpo e um torpor invencível toma conta de mim. Penso no que ‘mais credo é isso’ que me acontece, que me deixa neste transe improdutivo, nesta introspecção oca e enferrujada. Logo identifico o motivo do abilesamento: um cidadão do bem encostou o carro ali na Pedro Miranda, abriu a mala e libertou os demônios que habitam aquele maldito aglomerado de caixas de som. Toda a área no entorno é impactada por essa zoada. Inclusive o meu cocuruto. Minha concentração desfaleceu e olha, até que o fogo daquele inferno sonoro abrandasse, custou que só para eu tornar.

Torno porque sou de tornar, mas um chiliquto de desfalecimento me espreita, me arrepia. E me deixa em alerta. É o pânico, o medo desse embate. Desta avalanche de decibéis. Rogo para que tudo isso passe e que reine, não o silêncio fúnebre absoluto, mas a serenidade, a sensatez, o bom propósito de um samba ritmado na caixa de fósforo (por que não?).

Há de se estabelecer uma reentrada, uma brecha de luz em meio ao caos. Belém em mim é redenção. É passagem. Rito de conversão: das ruas de seringa ao asfalto da Boulevard. Das brenhas ocidentais que nunca anoitecem ao amanhecer plúmbeo na Pedreira. Dos rosnados perto de felinos ancestrais ao ronco longe e turbinado de motores dos aviões lá pras bandas da Maracangalha. Belém é riso e contradição. Risco e trovão. Verdade, versão. Minha confortável ilusão.

Devaneio necessário. Placebo fitoterápico de manga verde com sal. Valência diluviana de Guajarás, Pirajás e Guamás. Abstração que me salva. Idílio e fantasia; bruma almiscarada de paixões incuráveis por esta terra que falta um grau para ter o charme peninsular. Belém, a porta sempre aberta (Pedreira do samba e do amor, meu perdão, minha bença).Triscas de tristeza mergulham e se desfazem no mar-Belém de contentamentos e realizações.

Eis que Belém é maior que a realidade crua e suja. É transcendente, gloriosa, elevada, graciosa cidade que, na vera, quero é bem.

 

 

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