sábado, 24 de setembro de 2022

crônica da semana - banzeiro

 Banzeiro

Todo mundo fala, comenta, expõe inquietações, conta casos. Eu tenho uns quantos. O certo é que daqui pra dezembro este banzeiro aí na baía do Guajará e mais além, na baía do Marajó, vai ser pauleira, têi-têi, de beira a beira.

Somos parte dessas águas. Estamos de confronte, todos os dias nos vemos e nos sentimos de variadas maneiras e jeitos. Tiro por mim, que me vejo de cá a Barcarena e de lá a cá, pelos caminhos que se abrem entre os ventos e as grandes ondas (tirando um pelo outro, nos meus 28 anos de Barcarena, passando pelas travessias de passeio, aquelas da universidade, outras do sindicato, muitas para precisões de ocasião, e contando a média de duas viagens por dia a trabalho, posso estimar um pacotão com mais de 13 mil travessias, ao longo desse tempo e isso medido no padrão barcão, popopôs, lanchas rápidas, lanchas lentas, barcos que ficaram pelo caminho no prego e balsas minadas de carros para o Círio, por exemplo. É um feixe bom de viagens, né). Nesse tempo, já fui assaltado no meião da baía do Cafezal, já ocorreu de a lancha em que eu viajava ser varada no meio por outro barco, num encontrão que deixou alguns feridos, outros traumatizados e os que se jogaram na água, ensopados e assustados. Aconteceu de certa vez eu vivenciar na prática aquele problema de Física, clássico, do triângulo na travessia de um rio. Foi no popopô. O piloto varou na baía apontando a quilha pro vetor Cidade Velha e a correnteza e os ventos ajustaram o traçado gerando a resultante que nos levou ao desembarque certinho no Veropa. Vivenciei inúmeras operações de embarque e desembarque baseadas na polaridade do não e do sim. É quando a onda está tão forte e grande, que a cada dissipação, tira a rampa de acesso do nível de segurança. Então a gente faz a contagem do tempo pra acessar a rampa. Onda vem, não. Onda vai, sim. E é nessa cadência que se vive a vida no vaivém diário enfrentando os banzeiros.

Antigamente eu afirmava com gosto e zelo que a travessia para Barcarena, não era uma viagem, era um passeio. Ocorria quando o caminho se realizava pelos furos da Ilha das Onças. O trajeto era uma experiência incrível de aproximação com a lida ribeirinha. Maleducação e velocidades altas provocaram desmoronamento das margens, transtornos para os moradores e a rota foi alterada. Agora é tudo por fora. O que não deixa de ser também um passeio, com o detalhe de contemplarmos uma ilha se formando no meio do canal e ao longe, o nicho de Nossa do Tempo. Vigilante à beira da falésia do Cafezal, a Santa dadivosa que não permitiu que mal algum nos atingisse no dia em que o barco em que eu viajava foi assaltado e desviado para uma entradinha bem pertinho do nicho.

Olhando de palmo em cima, o número de 13 mil viagens em 28 anos, estima-se que a estatística está a meu favor. Dois ou três casos de atenção em 13 mil. Benza Deus. Entendo assim porque observo ser o banzeiro, um evento natural que devemos apreender e tirar dele as soluções. Representa as variações que podemos dominar. O Vikings noruegueses quando navegaram até a América reconheciam e controlavam a variação das marés, dos ventos, das ondas. Penso que, apesar dos repentes impostos pelas nossas águas, temos que confiar na engenharia e nos artesãos ribeirinhos. Um Fé em Deus não navega os rios amazônicos sem aquele piloto conhecedor, um maquinista experiente ou uma tripulação treinada para reagir a qualquer contratempo. Nem um transatlântico, nem um Sacramenta-Nazaré fazem seus itinerários sem o saber dos repentes das rotas.

Daqui pra diante, vamos falar muito sobre os banzeiros.

 

sábado, 17 de setembro de 2022

crônica da semana - alvíssaras

 Alvíssaras

Não sou dado ao negócio do convencimento inapelável, do marqueting certeiro, da venda sem barreiras. Mamãe sim, quando batia a sandalinha por essa Pedreira velha, não tinha quem resistisse: com uma coisinha ou outra a freguesia se comprometia no crediário Santa Luzia, depois de uma conversinha com mamãe.

Até tentei seguir na mesma pisada, mas me faltou o talento...

Contada já foi por aqui a minha aventura de vendedor do mais famoso carnê de capitalização do país, e num período que o talão vendia como água. Também, contava para o sucesso, a promessa que depois de quitadas as parcelas, o freguês herdava uma bolada de volta, corrigida por obrigações reajustáveis do tesouro nacional. Pois não vendi nenhum. Bati perna da Pedreira ao Entroncamento com minha pastinha, no sol de fritar o miolo, fui e voltei na vontade e... nada. Não vendi um pra remédio.

Fiquei na panemice e no desânimo até que, com a chegada dos shoppings na cidade, me engracei. Criei um projeto ainda hoje engavetado de um point diverso. Mistura de gourmet com retrô, popular e erudito, cult e brega. Também já relatei aqui este projeto. Consta ser um espaço de venda para várias modalidades de chopes. Sim, o do saquinho. Um ousado comércio popular, e de preferência encravado no mais sofisticado centro de compras de Belém. Um empreendimento audacioso. Até a maquininha de soldar o saquinho está nos planos. Porque no princípio, era assim, no ferro quente.

Eu mesmo operei uma máquina dessas quando fui colaborador na taberna do seu Valdivino, celebrado naqueles anos passados, na Mauriti, por dar conta de uma venda, até grande, apesar de ter perdido totalmente a visão. Naquele tempo os sacos de chope eram quadradinhos. A nossa linha de produção contemplava o preparo do bom Q-suco, a dosagem certa em cada saquinho e por último, chegava a mim para lacrar a borda. Era um equipamento simples. Ligado na tomada, aquecia uma placa de metal afinada num gume preciso. Eu posicionava as duas partes do plástico bem no eixo do gume, pisava no pedal, a placa descia, fazia um cerzido quentinho no plástico chega saía uma fumacinha e estava no jeito, pronto para ir ao congelador mais um puro de groselha ou qualquer outro colorido e artificial sabor. Durou pouco este processo. A máquina era com base em resistência, que nem o ferro de engomar, consumia energia pacas. O crionegócio pautado no chope não resistiria se um empreendedor de muita fé não tivesse a brilhante idéia de substituir a solda com resistência elétrica pelo nozinho. Mudou o formato do saquinho, os fornecedores desandaram a produzir na escala do milheiro, e ao produtor, bastava agora providenciar o conteúdo doce e colorido, dar o nozinho e esperar a petizada.

Hoje, na versão industrial, a cor ainda lista os sabores, revelando um contexto sinestésico ao negócio. Os sucos também ficaram mais azedinhos, e os saquinhos são grossos, difíceis de rasgar com os dentes. Na última prova, tive que me acudir a uma tesoura para cortar a boca do saquinho.

Por isso, por essas inconsistências da modernidade é que, tenho a esperança ainda, quando um governo mais humano nos tirar deste caos Brasil, de montar meu empreendimento Simbolista. Nos primeiros dias de funcionamento já está agendado o concurso de quem chupa todo o sumo colorido do chope, e deixa só o branco do gelo no interior do saquinho. Nos meus tempos tinha uns moleques que faziam previsão do futuro do dono do chope, a partir dos desenhos que as bolinhas de ar deixavam nas trincas do puro branco do gelo. Vou apostar no aparecimento de um vidente e quem sabe ele nos inspire alvíssaras.

sábado, 10 de setembro de 2022

crônic da semana - sonho que tive

 Gentes

Dou o maior valor nos sonhos. É coisa de impressionar. Ouvi algures que o sonho, mesmo aquele que roteiriza uma vida toda, não dura mais que poucos segundos. Não sei se é válida esta afirmação. Um dia vou me envolver no resultado de alguns estudos e me certificar desses detalhes, mas sei lá, acho que tira o encanto. Até lá, às certificações, o termo dos sonhos e das viagens que a gente faz, enquanto dorme, bom mesmo é deixar rolar.

Faz poucos dias, coisa de uma semana, sonhei com a primeira vila operária que morei, quando cheguei a Rondônia. Isso há quase 40 anos. E olha, meu sonho foi buscar detalhes. Cantinhos, nichos de reflexões, beiradinha de igarapé, recanto das diversões, minha casinha, as pedras que eu colecionava, as fotos de Belém, dos amigos e dos amores que me matavam de saudade e que eu deixava em lugar estratégico, defronte do meu choro diário... Um sonho tão perfeito! Sonorizado em dolby stereo, colorizado em todos os tons do espectro, com passarinhos cantando, carro passando ao longe, barulho de panelas na cozinha, lá em cima, além da ladeirinha e um canto de trabalho da Dona Adélia enquanto preparava os pratos do dia... o zunido do vento invadindo o talvegue dos igarapés desde lá de longe até cá embaixo, no cenário do meu sonho, rés o meu travesseiro.

Não sei vocês, a ser sincero, não sou de lembrar, confesso, mas dizque também, que dos sonhos, é normal a gente esquecer logo que acorda, por isso corri aqui para o computador, pra registrar este um, ainda na fresca da manhã. É que exato este sonho me chegou com uma retórica rígida, munida de realismo espetacular, cheio de sentidos, tato, cheiros, meu barraquinho...

A bem da verdade era um bloco de alojamento composto por dois quartos. Chamo de minha casa porque durante a maior parte do tempo que vivi ali, morei sozinho no bloco. Era como se habitasse numa casinha com dois quartos. Os blocos ficavam no entorno de um espaço multiuso que chamávamos de refeitório. Área ampla, de um salão grande com a mesa se estendendo e dominando todo um lado do compartimento. Ali, era também nosso local de convivência e recreação. Havia um bar, com bebida de tudo quanto é qualidade, de cor e teor alcoólico, e olha, era bem freqüentado, porque o que fazíamos muito por lá era beber. Dava de tardezinha depois do expediente, todo mundo encostava no balcão, sujo mesmo do trampo e entornava o caldo. No destaque, uma mesa de bilhar dominava o lado oposto ao balcão. Era o teatro de operações onde nos debatíamos em acirradas contendas. Meio largadinha, uma TV pregada na parede, que ninguém nem ligava porque não tínhamos parabólica e o sinal da região era bem fraquinho, só rolava um chiado e um chuvisco intenso. Tudo isso fazia parte do agrado, era o chama da empresa para nos segurar naqueles sertões do oeste brasileiro. Ao pegado, na extensão do salão, ficava a cozinha que era comandada por dona Adélia, nossa cozinheira, aquela que nunca errava a mão e produzia nosso cumê com um livro de receitas (dela mesma) debaixo do braço (e que saborosas lembranças! No sonho, eu senti o cheirinho dos carinhados pratos que ela criava e, ora veja, o mais fantástico, a base de quiabo).

De manhã, acordei mais afeito aos ânimos de Rondônia em 1983, nos estertores do regime militar, que aos dias plúmbeos atuais malinados por nostalgias espasmódicas golpistas.

Um sonho perfeito, tão real, que me cobrou os pés mergulhados no igarapé da memória. Que me propôs, assim como há 40 anos, lutar sem reservas e sem limites pela vida. Não vi gentes (nem mesmo D. Adélia), no sonho. Minha gente anda triste.

sábado, 3 de setembro de 2022

crônica da semana - meu inglês é fraquinho

 Meu inglês é frakinho

Jovens que conheci na universidade, bem dizer dia desses, já estão completando 40 anos. Éraste! O tempo...

Deixa estar que, sábado próximo passado, fui convidado, por uma querida amiga herdada desses tempos, para a comemoração desta nova fase na rima dos ‘enta’, com aquela continha se realizando na cabeça... Quando estudava, criei amizade com a turma de 18, 20 anos, e eu já era quarentão... Daí, mais uns bons vinte anos se passaram (para ambos os lados)...

No ritual da festa, discursos, emoções, agradecimentos. Bufê e na sequência, a banda mandou ver iniciando logo com o som do Pussicaty, ‘Smile’, ‘Mississipi’, depois emendou com o Abba, Bee Gees e éramos todos da mesma geração nait’fiver. Fiquei ligadaço.

O detalhe é que a maioria das músicas que marcaram as afetividades passadas foram selecionadas em inglês. Era o que sinalizava a playlist-saudade, misturando inclusive várias etapas e ritmos da música estrangeira. E o programa da banda calhou certinho no gosto dos convidados. Afinal são canções que varam gerações de um lado a outro.

Faço um paralelo quando na época de estudante, encarava rolês com os jovens. Certa ocasião, bancamos a missão de frequentar um bar que tocava só Beatles. A garotada cantava todas. Dominava a pronúncia e a articulação fonética do bom inglês. Reaprendi a gostar dos rapazes de Liverpool com essas baladas temáticas. Só não aprendi um isso aqui das músicas no original. Meu inglês é fraquinho. A petizada tinha que exercitar a tolerância. Eu era aceito no grupo mesmo sendo coroa, aluno universitário temporão. E ainda tinham que relevar o meu completo apartamento na hora dos coros entusiasmados de ‘Help’ ou do recitado quase rap, da bela Blackbird, quando nos envolvíamos com tudo no som dos Beatles. Apesar d’eu ter uma boa média de acertos e me virar satisfatoriamente num errezinho nas aulas de Inglês Instrumental, na fala, não me garantia não.

Eu os admirava. Curtia pacas aquela geração valorizando os iês iês iês lá dos anos 60. Ficava meio acabrunhado, ensimesmado, sentia uma vergonhinha porque não conseguia acompanhar a galera nos coros, por falta de um acervo eficiente de palavras ou memória compatível para decorar as letras em inglês. Dei de me fazer cobranças e me imputar carões. Por que não estudava mais, não procurava jeito de dominar o idioma apenas para não me sentir daquele jeito, deslocado da turminha? Com o tempo desencanei ao reconhecer que tenho acervo, mas me falta memória para cantar ou acompanhar refrões até de músicas em português... inclusas as minhas músicas e poesias, que não raro me fogem, quando as procuro para uma palinha ao violão ou uma recitação nos saraus. Tenho as evidências aqui em casa, nas eventuais audições domésticas: “éraste, o papai não sabe a letra de nenhuma música inteira, e as poesias, então, não decora nem aquelas, curtinhas dele”.

Devo adiantar que não é falta de memória, ou índice de alguma patologia. Muito menos desleixo, descuido com as vastas e caras obras. É que são muitas as informações no cocuruto e, de fato, não tenho o dom de guardá-las todas. Acho que dediquei toda a minha capacidade de armazenamento para decorar a tabuada, lá nas aulas da professora Lurdes, pelos idos de chumbo dos anos setenta, sob a mira ameaçadora da palmatória.

O que vale é o prazer do som. Se a gente não sabe a letra de cor, seja no inglês, seja no português, vamos de nã nã nã, e na palminha. Curti pacas a festa dos quarenta anos animada pelas canções que atravessam as eras. Éramos todos blackbirds nait’fiveres nos embalos daquele sábado.