terça-feira, 27 de novembro de 2012

crônica remix-neide


Cadê a Neide Aparecida?
A Neide Aparecida era do tempo da Rural e do Aero-Willis. Do tempo do óleo Jaçanã e do pão e meio. A Neide Aparecida é da época de antigamente quando chamávamos band-aid de planticure e zíper de fecho-ecler. A moça era de um tempo em que o bairro do Sousa era longe pacas e que a gente falava “égua, tá ralado”, e ainda falava “é longe pacas”.
A Neide Aparecida, confesso, não me traz de volta nananina de sentimentos ingênuos ou infantis e olhe lá, olhe lá, muito pelo contrário, ainda hoje reino com a lembrança provocante da pequena de mini-saia atentando o Clementino pelos corredores do edifício Balança Mas não Cai na telinha em preto e branco daqueles anos distantes.
Enquanto a Neide serpenteava tentadora de espanador na mão pela alegria do Balança...a minha patota varava os quintais pródigos de cajueiros e do rasteiro camapu nas manhãs da Marquês com a Lomas, aquietava-se um pedacinho depois do almoço e mais com um pouco,  se danava a espalmar a mão sob o lodo esverdeado a cata do balulusca ou da colombiana no jogo de peteca da tarde. E à noitinha, se ajeitava pelas janelas de vizinhos para acompanhar as tesouras voadoras fantásticas do Ted Boy Marino, no telequete Montila.
A sedução de Neide se espraiava por um tempo em que os saqueiros ainda não haviam sido tragados pela reestruturação produtiva e os sacos de cimento usados garantiam o desenvolvimento sustentável. Um tempo em que a laranjinha era a da Gelar e o lacre era cortado com a ‘gilé’. Um tempo em que a gente pagava em dia  as prestações do carnê da R. Mendonça. Do tempo em que grassavam entre as mãos da molecada fortunas em carteiras de cigarro conquistadas no palmo resultante do choque de moedas contra a parede. E éramos todos ricos com o orgulho de, ao mesmo tempo, enriquecermos a base de foscas e populares notas de Gaivota ou de brilhantes e  laminadas notas do aristocrático Hilton ou Albany (aquele com filtro de carvão ativado).
Era assim: enquanto no talho do Manduca, na feira da Pedreira o quilo e meio de Pá só com o osso da peça era embrulhado nas folhas de guarumã, a Neide Aparecida despertava, precocemente, a libido imberbe dos meninos de família.
A personagem que a Neide Aparecida interpretava no “Balança...”, atazanava a vida do faxineiro Clementino. Era uma secretária boazuda, em trajes mínimos, que se insinuava para o pobre Clementino, que de bobo e desatento, não percebia o real interesse da moça. Esta lerdeza do faxineiro se reproduzia no bordão “xiiiiiii, como é boa esta secretária, ah se ela me desse bola”. Cai o pano e o Clementido passa batido como sempre: não traça ninguém.
E como era boa aquela secretária dos tempos pueris da Chulipa e do Kichute!
O Tutuca, que interpretava o incauto faxineiro, eu ainda o vejo zorrando, pelas esquetes do Zorra Total..., mas e a Neide, inspiração para as primeiras e maravilhosas sensações que se anunciavam a peso de muitos ‘arrupios’ e chiliquitos para mim e para os outros da patota. Mas e a Neide Aparecida. Cadê a Neide Aparecida?

sábado, 24 de novembro de 2012

crônica da semana - a menina dança

A menina dança



 “Movimentos Leves e precisos/Desenham curvas na tela do instante/Cada batuque no tambor/Incendeia a mulata...”.
Nos encontrávamos todo ano na Quadrilha da rua. Ela enfeitada, colorida de estampas florais. Doce. Era uma luta na hora de formar os pares. Eu morria de vergonha. Queria era ela, certamente. Todo mundo sabia. Mas eu remancheava, tardava, me escondia detrás dos outros. Tinha medo de tamanha formosura. Mas sempre, por uma articulação silenciosa da galera, sobrávamos nós dois. O meu encanto, a minha loucura, o meu total desapego das coisas terrenas e mesquinhas. A sublimação dos meus dias era ela. E eu varava o mês de Junho nas nuvens, contemplando. Por causa daquela tez achocolatada que me entontecia, errava a maioria dos passos da contradança, mas ela sempre me guiava, me reintroduzia no caminho da roça. E vencíamos a chuva, o formigueiro, os olhares severos do pai da noiva.
“O canto entoado envolve/Toda a alma/Melodia inscrita/No requebrar dos quadris/Cabelos de mola esvoaçantes/Suor que se traduz em poesia/Que atiça o mais íntimos dos desejos da gente/Lundu, lundu, dança sensual...”.
Morávamos perto. Ela, ainda no trecho que se esvaia em desbotados arremedos de asfalto na margem alta da Pedro Miranda. Eu, na planície submersa que era atendida por estivas débeis e inseguras, desde a Itororó, até a encosta da Alferes Costa.
Nos topávamos mesmo em junho. No resto do ano, nossos horários não combinavam. Uma ou outra vez, no caminho indo-vindo da escola e só. No alagado da baixada as investidas à porta da rua para apreciar o movimento me eram custosas. Tinha medo de cair da ponte, de pegar uma frieira na valinha logo na chegada de casa ou ainda de ficar minado de chamichuga na travessia do canal da Pirajá. Mas sabia que ela, lá no alto da rua, colocava a cadeira na porta de casa, reunia as amigas, brincava de bole-bole na calçada e competia com as lâmpadas de mercúrio recém-instaladas, iluminando a rua com aquele sorriso perolado.
“Sente toda nota vibrar/Pela epiderme/Sem medo ou vergonha/Dança/Esse é o mistério de ser mulher/A combinação perfeita/Do corpo voluptuoso/Herdado de outro continente...”.
Naquele tempo, havia um menino que estudava na Aparecida. Ele se metia em tudo. Era instrutor da banda, jogava nos times da escola, e nas festas juninas, coreografava a turma da rua. Era um camarada criativo, expedito mesmo. E deu de inventar modas na Quadrilha. Introduziu às, já bem batidas, variações da grande roda, trechos de Siriá, de Carimbó e de Lundu.
Éraste, quando ela dançava o Lundu, o mundo se revirava na minha cabeça. Bailava livre como a rainha quilombola Samily. Serpenteava tentadora, mundiando, provocando, disparando olhares foguentos, sorrisos salientes, e exibindo aquele brilho nos dentes que me encandeava, que me desnorteava, que me paralisava e fulminava meus acanhados movimentos. Não estávamos de par? Então, dizque eu dançava, também. No balancê, nos vai-e-vens do Siriá, nos volteios do Carimbó, eu até que dava um jeitinho, mas quando chegava o Lundu, eu fazia só menção. Na verdade, caia numa letargia prazerosa, num delicioso apagão. Esquecia de lidas ou funções, largava os traquejos e trejeitos de lado, só para apreciar. Eu só ficava tareando a pequena, entorpecido, inebriado pela dança folgazã da mulata.
“Beleza de pele escura/Brejeirice em tons de amarelo e Lundu/Uma é o contraste forjado, inocência-indecência, da outra/Queimando na sensualidade da raça/A brancura dos dentes delatando a alegria/A alegria de viver livre/E ser livre".
A menina dança em doces e coloridas lembranças...
(sobre poema de Carol Brito)

terça-feira, 20 de novembro de 2012

crônic remix- Bélgica

Do outro lado da Bélgica
Por aqueles dias, o Gabeira já havia voltado do exílio e provocado a indignação da esquerda revolucionária ao desfilar nas areias de Ipanema com uma tanga de crochê verde e lilás, inaugurando um novo figurino ideológico para a sua permanência no Brasil.
Um arzinho de liberdade deslizava discretamente pelos escaninhos do poder e o país caminhava para a distensão política antecipada como promessa, ainda no governo do General Geisel.
Mas a coisa ainda tava pegando.
Sobravam reminiscências autoritárias, rancores doutrinários, ódios programáticos...As bombas pipocavam pelas bancas de revistas e estouravam em shows populares.
Na época, aqui em Belém, lutávamos pela conquista da meia-passagem e o nosso comitê da Escola Técnica acompanhava os movimentos com certo zelo, mas sem medo. Tínhamos um grupo decidido, aplicado.
Havia, porém, um quê de verde e lilás nas nossas intenções. A revolução, a derrubada da ditadura era uma missão a ser concluída, Mas a gente dava o maior valor no nosso happy hour também.
Nesse tempo de Escola Técnica as coisas aconteciam muito intensamente e muito rapidamente com a gente. Era a passagem da adolescência para uma fase mais madura. Despertávamos para o saber e para a liberdade. Íamos para a luta. Descobríamos os apelos do mundo. E experimentávamos... a água que passarinho não bebe.
Procurávamos ser independentes. Mas vivíamos sem grana.
O que não era exatamente um problema que impedisse as nossas confraternizações de sexta-feira.
Fazíamos uma caminhada pela Almirante Barroso e parávamos motoristas e pedestres  abordando-os num amistoso pedágio. E olha, que dava certo! Rolava uma grana que dava pra comprar meia dúzia de garrafas da cachaça coquinho e umas quantas unhas sebentas de não sei-o-quê recheada com uma farofa que era a pura anilina que o moleque vendia na calçada da Escola. Pronto. Daí era só atravessar para a Europa.
À época o consulado da Bélgica ficava em frente à Escola Técnica. E como a coisa tava braba aqui do outro lado, a gente atravessava a Estrela, e fazia o nosso fuzuê sob a garantia do exílio.
E não é que o consulado da Bélgica foi usado, realmente, como refúgio, como salvação por um ativista político da época.
Certa vez, na chegada para o turno da tarde, o furdunço estava instalado na Estrela. Polícia, imprensa, curiosos...Rua interditada.
Pergunta daqui, pergunta dali, e a coisa se esclareceu: um militante de esquerda havia saltado para o consulado da Bélgica (na gíria da esquerda, saltar significava pedir asilo político em uma embaixada ou consulado, como neste caso, e em muitas ocasiões representou exatamente o ato: muitos perseguidos políticos pularam o muro das embaixadas para escapar da repressão).
O fato causou surpresa para os movimentos de esquerda. Apesar de alas radicais dos militares resistirem ao processo de abertura política com ações violentas como as bombas nas bancas de revistas, a anistia era uma realidade. Não se tinha notícias de novos exilados. Muito pelo contrário, muitos deles estavam voltando (o Gabeira ecológico já se mostrava para o Brasil).
Muito quiquiqui floresceu para explicar o ato daquele rapaz (e eu não vou entrar aqui em detalhes, mesmo porque, eles são controversos. Cabe a história a definição daquele evento). Sei que presenciei um momento jamais pensado por mim. Sei que vivenciei um fato triste da história. Sei que acompanhei o desespero em favor do desterro.
E sei que naquele dia não aconteceu o nosso happy hour ali, ao pegado da Bélgica. Houve de ficarmos sóbrios (como era de ser) do lado de cá do Brasil.


sexta-feira, 16 de novembro de 2012

crônica da semana- lecheva


Todo mundo odeia o Lecheva

Enganei vocês, rá rá rá. Não vou falar mal do Ricardo Mendes Nascimento, não, o cara que foi o nome do Paysandu nesta reta final de acesso à série B. Convenhamos que depois do caso passado, despois do arrefecimento natural de meio de semana, das altas temperaturas resultantes da subida do bicola para a Segundona, se eu pusesse um título rasgando seda pro Lecheva, poucos iam se interessar, afinal, a esta altura do campeonato, por certo, o treinador interino do Paysandu já foi paparicado que só, e eu, agora na batida da campa, sou apenas mais um a repetir-lhe a rotina do afago. 
Do que a gente se certifica, andando pela cidade, é que todo mundo ama o Lecheva, isso sim. Por alguns notórios motivos. 
Certa vez encontrei o ex-jogador num supermercado aqui na Pedreira. Já não figurava entre os bambambans da onzena bicolar, transitava em silêncio pelos bastidores, fazia compras suportado por uma rala fama herdada do título de ‘Campeão dos Campeões’, dissipada pelo vento, pelo tempo e pelos enfezos e emburros desta peleja na terceira divisão do Campeonato Brasileiro. 
Eis uma razão de amarmos o Lecheva. Ele é um cara humilde. Quase um deus grego, humanizado na fila do supermercado. Segurou uma pá de batatas quentes nesses seis anos com o time escapando sempre pela linha de fundo e se perdendo no desânimo, no desconsolo, sem estilo ou jeito. 
Engoliu um punhado de sapos afamados e aquinhoados, bancados pela boa fé dos torcedores e dirigentes. Técnicos metidões que aqui chegaram, nutriram-se de fartos Reais e largaram nosso barco à deriva. 
O último deles, com uma carência absurda de senso de humor, um técnico carrancudo, cria da seleção de 78, pupilo da batida dolorida dos militares; o último deles, nos deixou descrentes. O misantropo Givanildo se foi, deixando um presságio aterrorizante para nosso escrete. 
Foi embora e foi tarde. Se antes fosse, sofreríamos menos. Este um motivo muito justo para amarmos o Lecheva. Ele não nos chicoteou com derrotas inadmissíveis (daquelas com um gol do adversário nos últimos minutos silenciando a torcida). O gráfico do Lecheva nesta última fase do campeonato reflete uma melhora continuada. É um traçado bom de ver. 
Por último, vejo que esta marca, este baque de boleiro que o Lecheva carrega, canaliza a admiração dos jogadores e da torcida. Nessa hora, pesa a cancha, a experiência de quem viveu céus e infernos dentro de campo. 
O detalhe mais importante na conduta do Lecheva e que o enobrece, é a lealdade, e eu diria até, que ele demonstra um amor inconteste pelo Paysandu. Somente amando o clube de forma desmesurada é que alguém chega ao topo mesmo sob o estigma de eterno interino, mesmo no desconfortável status de substituto. 
Sobre o atual (e ratificado) treinador da Paysandu, recebi um texto sublime do Dr. Roger Normando que repasso aqui na coluna. Com a certeza de que toda a nação bicolor ama o Lecheva. 
“Na corte tinha um rei admirado por todos, pois albergava humildade em seus gestos/O que fizesse, todos os súditos repetiam./Achou de se deitar de cabeça para baixo no alpendre de seu quarto: todos viraram morcegos./Exercitou cuspir fogo: todos fumegavam como dragão./Passou três noites sem dormir: e todos viraram zumbis./Resolveu voar com as asas nos pés: todos viraram pé-de-anjo/Começou a andar com a cabeça guinada para o lado; todos repetiram o empeno/Até que veio a guerra e todos se viram de prontidão/O rei venceu a guerra graças aos seus súditos plantando bananeira, cuspindo fogo com pé-de-vento e o pescoço guinado para o lado do coração.” 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

crônica remix- dígrafo


Dígrafos, Similares e a Pedagogia Moderna

Este ano foi a colação de grau da minha filha. Da alfa. A menina aprendeu a ler e a escrever e ganhou uma festa robusta com pompas, circunstâncias, look de princesa, entrega de diploma, flashes e chororôs na platéia, tudo sob o aval da pedagogia moderna.
Festa para criança com a suntuosidade dos eventos de gente grande. E eu acho até que a festa é mais para a gente mesmo, os pais (para as tias da escola, para a diretora, para o fotógrafo...) do que para as crianças.
Não sei se este tipo de celebração é parte do legado deixado por Paulo Freire aos oprimidos pelo sistema. Só sei que no meu tempo, não era assim. Nem pelo apego à celebração, nem pelos métodos de aprendizado.
Quanto ao método, minha mulher me atualiza dizendo que hoje em dia é assim, pelas famílias. Tem a do bê. Ba, be, bi, bo, bu e o bão; e assim por diante. Eles juntam as famílias e vão formando as palavras, na escrita, na leitura, e parari, parará, arremata a minha mulher, deixando escapar um ar de discreta simpatia por estes métodos modernos.
E eu, inquieto, me pergunto: e o ene-agá-nhá, minha flor? E o éle-agá-lhá? E a arte de soletrar? E a sonoridade das construções labiodentais do tipo “vovô viu a uva” e “a uva é de Ivo”?
Antes as palavras surgiam sofridas dos dígrafos: bê...ó, bó; éle...i, li; ene-agá-nhá...Bolinha. Cê...á, ca; ésse...i, zi; ene-agá-nhá... Casinha (neste caso, também com o conflito fonético implícito no ésse com som de zê). Éfe, ó...fó; éle-agá-lha...fólha (e partia-se, intuitivamente, para o ajuste no som do ó: fôlha.
A cartilha apontava: A bola é de Mauro. E até hoje percebo que, mesmo ante a pedagogia moderna, o martírio continua o mesmo, para este érre intrometido de Mauro. Especialmente para este caso, no início da Alfa, minha filha se estressava horrores e dizia “ ah, eu não sei. Às vezes é rá, (como o rá de caramba) às vezes é rá, (como o rá de rato)...ah, eu não sei”, inquietava-se e chutava o pau da barraca. .
Eu acho que a arte de soletrar, hoje, daria bons resultados e ajudaria a desmistificar uns e outros fantasmas fonéticos. A palavra sexo, tão incompreendida, por exemplo, seria dissecada: Ésse, é...Çé. Kê, i...Ki. Cê, cedilha...ó. Çéquiço. Táxi, outra palavra segregada pela pronúncia, seria restaurada: Tê, á...tá. Kê, i...Ki. Cê, cedilha...i. Táquiçi..
Eu tenho a  plena consciência da insignificância do meu papel de pai nessa história e, enfim, de que adiantam divagações sobre as “pronúncias pausadas na assimilação das primeiras palavras” (definição do Aurélio para o verbo soletrar), quando o mundo exige a rapidez de uma nova linguagem. E taí, reconheço que, o que é verdade, é que a minha menina, antes da festa e dos badulaques na cerimônia de colação de grau, realmente, antes de tudo, já sabia ler e escrever. E eu  aqui, com as minhas preocupações atemporais sem sentido. Admito, forçosamente, estar errado, mas num último fôlego de resistência reitero a teima: antes, caneta Bic, só se utilizava a partir da quarta série. Antes disso, só lápis. Só o lápis indicava o Suave Caminho...

sábado, 10 de novembro de 2012

crônica da semana- tremer


Acho que vou tremer

Não é querer falar mal da vida de ninguém, mas, pera lá, em alguns casos, ‘não tem as condição’. E nem é falar mal de vera. Digamos que é só um desabafo (que talvez nem tenha sentido) ou um toque (que, pelo que reza o comum, será categoricamente, desprezado). 
Houve então d’eu passar os últimos dias me batendo com vaivéns em laboratórios e hospitais por conta daquele famoso check-up anual. E desta empreitada a gente sabe o resultado: os males escondidos, os reveses da idade, as insatisfações do organismo vão aparecendo, dando as caras e nos aborrecendo. 
Travei de novo na PA. A bichinha, parece que adivinhou. Não sossegou um instante. Parece que sabia que eu tava me checando. Ia em cima, ia embaixo e a porqueira estuporando. Excitada. Batendo nos vinte, na sistólica. Claro que cismei e cuidei. Fiz um intensivão de vida saudável, respeitei direitinho os horários do medicamento, colori o prato, exorcizei o sal. Procurei (em tentativas vãs) não me enfezar  e monitorei a pressão até que a zinha se aquietou. Só assim consegui cumprir o rito e fazer aquela corridinha na esteira (com a pressão elevada o médico me balou duas vezes. Não deixou nem eu dar um piquezinho). 
Uns quantos dias de peleja e me habilitei à consulta final com o especialista, donde viria o meu laudo amplo, geral e irrestrito. 
Juntei os meus ‘papel tudinho’ e sentei frente à fera... A consulta durou exatos 3 minutos e dois segundos. Eu sei, seu sei que tem gente que acha que paciente gosta de ser bajulado, de ser paparicado. Gosta de contar de dores que não tem, de tremores que hão de vir (mamãe era campeã. Sentava na cadeira do consultório e disparava: “acho que vou tremer, doutor”. E ele retorquia: “Mas como vai tremer, dona Luzia, ou a gente treme ou não treme, não existe esse negócio de vou tremer”). Não era o meu caso. Como vinha de uma odisseia em busca da sisto/diastólioca perfeita, pensei que a prosa iria mais além. 
O médico me cumprimentou, pegou meus ‘papel’, folheou as laudas, sisudo. Resmungou algo, virou-se para o computador e se danou a datilografar. Te juro: se perguntassem pra ele se eu tinha um piercing atravessando o nariz, se o meu cabelo era azul, se gaguejo ou se se tenho a tez escandinava, ele não diria um ai, porque nem me olhou e sequer um ai pronunciou, até aquele instante. 
Penso cá comigo que se fosse na rede pública, é porque era na rede pública, mas pô, era um hospital particular e não dos mais baratos (ah, tá, alguém pensa, lá vem aquela carência de paciente querendo tico-tico e nnheco-nheco, abraços e carinhos sem ter fim,  de doutor. Digo que não era não. Na minha ingenuidade, pensava que  ao menos ele ia medir minha pressão depois da cara que fez enquanto redigia o laudo, mas quite). 
Voltou do computador já com a prescrição. Tateou o bolso, achou uma caneta, rabiscou o pé da página. Ergueu os olhos (nessa hora tomou ciência de que eu não usava piercing) e iniciou o discurso (oba, eu pensei, agora vamos interagir, e só de mal eu vou dizer que vou tremer). Franziu o cenho e deslanchou, assindético, nas premissas. “Hipertensão, o senhor sabe, não tem cura”. “A pessoa deve ser consciente”. “Avaliar seus hábitos”. Bacana, eu estava gostando. O ritmo tava bom. Imaginei o desfecho, o epílogo daquela prosa. Foi quando ele deu por falta do carimbo. Fez umas buscas, ligou pra alguém. Quando achou, não retomou a conversa. Carimbou e me repassou as duas folhas, fez uma recomendação corriqueira e me mostrou a saída. 
Deixei o consultório insatisfeito, claro. E a interação, e o desfecho, e o epílogo? Ai, acho que vou tremer. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

rônica remix- osvaldão


Big Oswald, Matos Guerra e o amor
Meu mestre Roberto Moscoso dentre as suas férteis reflexões dedicava um tempo bastante produtivo para as inferições onomásticas. E um dos nomes que ele mais gostava de comentar era Oswaldo. Dizia ele que Oswaldo era por essência, nome de homem grande. Nas suas pesquisas não havia encontrado de jeito e maneira, um Oswaldo sequer de baixa estatura, daí, explicava ele, a derivação superlativa para ‘Oswaldão’. Uma resultante Óbvia, pertinente, para tão avantajadas envergaduras...
Aquela era uma noite extraordinariamente ventilada em Belém. Uma programação de apoio à quadra nazarena animava a Praça do Povo, no Centur. No palco o espevitado Marco Monteiro agitava a galera e não deixava ninguém parado. Até o mais tímido dos assistentes balançava o pezinho admitindo que “o amor tupiniquim tem paladar...”.
E o amor segundo a acidez satírica de Gregório de Matos Guerra “... é finalmente/Um embaraço de pernas/Uma união de barrigas/Um breve tremor de artérias/Uma confusão de bocas/Uma batalha de veias/Um rebuliço de ancas...”.
Num relance, os olhares se encontraram. Ele abirobou na hora. Ela trazia um certo veneno no olhar. Algo que instantaneamente o transformara em pedra, em massa inanimada, ausente. Abobalhou-se por infindáveis instantes a fitar aqueles acesos grãos devastadores. Mas o marco Monteiro o despertou para a alegria da Praça.
Aproximou-se, fez manhas, exibiu-se. Ela dedicou-lhe alguma atenção. Rolou um papo entrecortado pelos confortantes sons da paixão. Trocaram telefones.
No dia seguinte ele catou o telefone da estante. Nervosamente posicionou o dedo na casinha do dois e volteou o disco graduado em busca de uma desejada aventura: dois, três, três...
Encontraram-se no forró do Palácio dos Bares, na sexta. Dançaram pra valer. Depois declararam-se apaixonados sob o escurinho libérrimo da Adega do Rei e amanheceram felizes num yellow point ali para as bandas de São Braz.
“O amor é finalmente/Um embaraço de pernas...”.
Passado algum tempo, estavam amarrados, emboletados numa união que nada, absolutamente nada desataria...
A não ser o presságio onomástico.
Naquele dia o entardecer estava estranhamente frio. O sol se escondera cedo lá pras bandas da ilha das onças e umas nuvens pardacentas escondiam o horizonte oeste. Combinaram um passeio pela Praça do Pescador. Subiram a foz do Piry de mãos dadas e aquietaram-se em uma mesa bem à beira da baía, ali na biqueira do Forte do Castelo. Havia um clima estranho, já anunciado pelo sumiço do sol. Ela aparentava uma insegurança incomum, um nervosismo atípico.
Uma cervejinha de fim de tarde desfez os temores e ela confessou existência de uma outra pessoa. “Como, outra pessoa?”, inquiriu ele, agitando-se na cadeira de metal. “Sim, desde antes daquele dia no Centur. Ele é oficial da aeronáutica. Estava viajando para uma especialização, mas já chegou...”, continuou a pequena agora mais segura. “Sim, sim, e aí, o que vais fazer?”, desesperou-se o rapaz. “Não sei, ele é apaixonadíssimo, é muito ciumento, não vai largar do meu pé. O Oswaldo é...”. “Ós... o quê? Como é mesmo o nome dele?”, quis saber o rapaz já se levantando e procurando o garçom para acertar a conta. “Oswaldo, o nome dele é Oswaldo, mas todo mundo o conhece por Oswaldão...Espera aí...Naldinho, espera...”. E o garoto subiu a ladeira do Forte com mais de mil imaginando os tenebrosos detalhes sobre a compleição física do sargento-aviador.
E continuando com Matos Guerra, ainda sobre o amor: “...é uma confusão de bocas/Uma batalha de veias/Um rebuliço de ancas/ Quem diz outra coisa, é besta.”

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

crônica da semana- a vida


A vida


Flávio Calvalcanti, no programa dele, tinha uma sacada cheia de generosidade: “Vi não sei aonde, guardei e dou de volta pra vocês”. E aí apresentava uma atração de música, um poema, uma peça de dança... 
Este texto me chegou da amiga de copo, de bar e de arengas acadêmicas, Caroline Brito. Lembrei de uma das minhas crônicas preferidas, “Lúcia”, não resisti e dei alguns pitacos (podemos admitir que o texto foi feito a quatro mãos porque reconheci minha “Lúcia” no texto de Caroline e trouxe um pouquinho dela para tingir de noite, estes amanheceres...). Gostei e dou de volta pra vocês: 
“O toc-toc da sandália de salto ecoa por todo o salão, mas ninguém ouve ou nota sua presença. Ela observa as colegas ao lado, os clientes... pensa em como a noite foi improdutiva. Sabe que esse é só o início do desprezo (dedicado a ela) dos homens que frequentam aquele lugar. Seu corpo já não é tão atraente e firme como quando começou. O descaso a deixou igual às mulheres que sempre temeu se tornar, aquelas que esquecem o que são por não saberem ao certo o que ser (sabem somente quando e como ‘ser’). 
Sentou seu corpo seminu no banco do bar, sem dinheiro para comprar nem mesmo uma cerveja. Então, pela primeira vez na vida refletiu sobre felicidade, será que um dia foi feliz? Depois de tantos anos percebe: não é feliz (às vezes apenas sobreviver não é o bastante). 
Levanta-se, afinal, e caminha até seu quarto. A manhã vem surgindo no horizonte e não há mais o que esperar... Tira o sapato, a pouca roupa que estava usando e vai se lavar. Um sabonete quase pedrado para tirar a fumaça dos cigarros alheios do cabelo e o suor do corpo. A água fria acordou memórias há muito adormecidas... 
Viu-se à beira do poço que ficava atrás de sua casa, ainda menina, puxando água para realizar as tarefas matinais antes de sua mãe acordar. Largou-se aos devaneios. Momentos perdidos no labirinto da alma (que pareciam pertencer a uma outra pessoa ou quem sabe são lembranças de outra vida). Deitou-se sobre a cama, abraçou o único bem que lhe restara desses tempos simples, e logo caiu aos prantos com o rosto mergulhado na colcha de retalhos costurada à mão pela avó materna. Não vale muito deixar tudo por uma ilusão. 
Seu corpo arquejou de frustração e ódio de si mesmo, foram atitudes tão mesquinhas que a levaram deixar tudo de mais precioso que se pode ter no mundo! Agora vive sem amor, sem fé no amanhã. Não será a morte uma melhor solução?... Sabe que não faz mais parte do mundo lá fora (ou da penumbra do salão), essa é a pior sensação que um dia pôde sentir, e a vem sentindo, já há alguns anos. Com o tempo a perspectiva muda e as mudanças (aquelas do bem, favoráveis) se perdem com o tempo. A dúvida (de não saber) seguir em frente ou retroceder causa vertigens irremediáveis. 
As dívidas só aumentam, mal se alimenta. A saudade enche o peito e a vontade de sair correndo ao encontro do colo da mãe é avassaladora, quer chorar num ombro amigo, como quando no dia em que estava descendo o açaizeiro e pensou ter visto a Matinta. Foram dias e dias para se recuperar do susto (mas a mãe estava lá). 
Aceita essa condição, sempre foi vítima de sua passividade, embora não a entenda e não a mereça. Infelizmente algumas pessoas são mesmo assim, apáticas de certa maneira. Coisas de tino, de calibre, de um eu sofrido. 
E apesar desta solidão se anunciando infinita e da pobreza em que se encontra (lá vem o sol!), por uma descabida graça, somente de ver o sol, ela se enche de alegria. 
A vida segue. Mesmo que (a penumbra esfumaçada) não queira, ela (ávida) continua, a vida. "