sexta-feira, 2 de novembro de 2012

crônica da semana- a vida


A vida


Flávio Calvalcanti, no programa dele, tinha uma sacada cheia de generosidade: “Vi não sei aonde, guardei e dou de volta pra vocês”. E aí apresentava uma atração de música, um poema, uma peça de dança... 
Este texto me chegou da amiga de copo, de bar e de arengas acadêmicas, Caroline Brito. Lembrei de uma das minhas crônicas preferidas, “Lúcia”, não resisti e dei alguns pitacos (podemos admitir que o texto foi feito a quatro mãos porque reconheci minha “Lúcia” no texto de Caroline e trouxe um pouquinho dela para tingir de noite, estes amanheceres...). Gostei e dou de volta pra vocês: 
“O toc-toc da sandália de salto ecoa por todo o salão, mas ninguém ouve ou nota sua presença. Ela observa as colegas ao lado, os clientes... pensa em como a noite foi improdutiva. Sabe que esse é só o início do desprezo (dedicado a ela) dos homens que frequentam aquele lugar. Seu corpo já não é tão atraente e firme como quando começou. O descaso a deixou igual às mulheres que sempre temeu se tornar, aquelas que esquecem o que são por não saberem ao certo o que ser (sabem somente quando e como ‘ser’). 
Sentou seu corpo seminu no banco do bar, sem dinheiro para comprar nem mesmo uma cerveja. Então, pela primeira vez na vida refletiu sobre felicidade, será que um dia foi feliz? Depois de tantos anos percebe: não é feliz (às vezes apenas sobreviver não é o bastante). 
Levanta-se, afinal, e caminha até seu quarto. A manhã vem surgindo no horizonte e não há mais o que esperar... Tira o sapato, a pouca roupa que estava usando e vai se lavar. Um sabonete quase pedrado para tirar a fumaça dos cigarros alheios do cabelo e o suor do corpo. A água fria acordou memórias há muito adormecidas... 
Viu-se à beira do poço que ficava atrás de sua casa, ainda menina, puxando água para realizar as tarefas matinais antes de sua mãe acordar. Largou-se aos devaneios. Momentos perdidos no labirinto da alma (que pareciam pertencer a uma outra pessoa ou quem sabe são lembranças de outra vida). Deitou-se sobre a cama, abraçou o único bem que lhe restara desses tempos simples, e logo caiu aos prantos com o rosto mergulhado na colcha de retalhos costurada à mão pela avó materna. Não vale muito deixar tudo por uma ilusão. 
Seu corpo arquejou de frustração e ódio de si mesmo, foram atitudes tão mesquinhas que a levaram deixar tudo de mais precioso que se pode ter no mundo! Agora vive sem amor, sem fé no amanhã. Não será a morte uma melhor solução?... Sabe que não faz mais parte do mundo lá fora (ou da penumbra do salão), essa é a pior sensação que um dia pôde sentir, e a vem sentindo, já há alguns anos. Com o tempo a perspectiva muda e as mudanças (aquelas do bem, favoráveis) se perdem com o tempo. A dúvida (de não saber) seguir em frente ou retroceder causa vertigens irremediáveis. 
As dívidas só aumentam, mal se alimenta. A saudade enche o peito e a vontade de sair correndo ao encontro do colo da mãe é avassaladora, quer chorar num ombro amigo, como quando no dia em que estava descendo o açaizeiro e pensou ter visto a Matinta. Foram dias e dias para se recuperar do susto (mas a mãe estava lá). 
Aceita essa condição, sempre foi vítima de sua passividade, embora não a entenda e não a mereça. Infelizmente algumas pessoas são mesmo assim, apáticas de certa maneira. Coisas de tino, de calibre, de um eu sofrido. 
E apesar desta solidão se anunciando infinita e da pobreza em que se encontra (lá vem o sol!), por uma descabida graça, somente de ver o sol, ela se enche de alegria. 
A vida segue. Mesmo que (a penumbra esfumaçada) não queira, ela (ávida) continua, a vida. "


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