terça-feira, 20 de novembro de 2012

crônic remix- Bélgica

Do outro lado da Bélgica
Por aqueles dias, o Gabeira já havia voltado do exílio e provocado a indignação da esquerda revolucionária ao desfilar nas areias de Ipanema com uma tanga de crochê verde e lilás, inaugurando um novo figurino ideológico para a sua permanência no Brasil.
Um arzinho de liberdade deslizava discretamente pelos escaninhos do poder e o país caminhava para a distensão política antecipada como promessa, ainda no governo do General Geisel.
Mas a coisa ainda tava pegando.
Sobravam reminiscências autoritárias, rancores doutrinários, ódios programáticos...As bombas pipocavam pelas bancas de revistas e estouravam em shows populares.
Na época, aqui em Belém, lutávamos pela conquista da meia-passagem e o nosso comitê da Escola Técnica acompanhava os movimentos com certo zelo, mas sem medo. Tínhamos um grupo decidido, aplicado.
Havia, porém, um quê de verde e lilás nas nossas intenções. A revolução, a derrubada da ditadura era uma missão a ser concluída, Mas a gente dava o maior valor no nosso happy hour também.
Nesse tempo de Escola Técnica as coisas aconteciam muito intensamente e muito rapidamente com a gente. Era a passagem da adolescência para uma fase mais madura. Despertávamos para o saber e para a liberdade. Íamos para a luta. Descobríamos os apelos do mundo. E experimentávamos... a água que passarinho não bebe.
Procurávamos ser independentes. Mas vivíamos sem grana.
O que não era exatamente um problema que impedisse as nossas confraternizações de sexta-feira.
Fazíamos uma caminhada pela Almirante Barroso e parávamos motoristas e pedestres  abordando-os num amistoso pedágio. E olha, que dava certo! Rolava uma grana que dava pra comprar meia dúzia de garrafas da cachaça coquinho e umas quantas unhas sebentas de não sei-o-quê recheada com uma farofa que era a pura anilina que o moleque vendia na calçada da Escola. Pronto. Daí era só atravessar para a Europa.
À época o consulado da Bélgica ficava em frente à Escola Técnica. E como a coisa tava braba aqui do outro lado, a gente atravessava a Estrela, e fazia o nosso fuzuê sob a garantia do exílio.
E não é que o consulado da Bélgica foi usado, realmente, como refúgio, como salvação por um ativista político da época.
Certa vez, na chegada para o turno da tarde, o furdunço estava instalado na Estrela. Polícia, imprensa, curiosos...Rua interditada.
Pergunta daqui, pergunta dali, e a coisa se esclareceu: um militante de esquerda havia saltado para o consulado da Bélgica (na gíria da esquerda, saltar significava pedir asilo político em uma embaixada ou consulado, como neste caso, e em muitas ocasiões representou exatamente o ato: muitos perseguidos políticos pularam o muro das embaixadas para escapar da repressão).
O fato causou surpresa para os movimentos de esquerda. Apesar de alas radicais dos militares resistirem ao processo de abertura política com ações violentas como as bombas nas bancas de revistas, a anistia era uma realidade. Não se tinha notícias de novos exilados. Muito pelo contrário, muitos deles estavam voltando (o Gabeira ecológico já se mostrava para o Brasil).
Muito quiquiqui floresceu para explicar o ato daquele rapaz (e eu não vou entrar aqui em detalhes, mesmo porque, eles são controversos. Cabe a história a definição daquele evento). Sei que presenciei um momento jamais pensado por mim. Sei que vivenciei um fato triste da história. Sei que acompanhei o desespero em favor do desterro.
E sei que naquele dia não aconteceu o nosso happy hour ali, ao pegado da Bélgica. Houve de ficarmos sóbrios (como era de ser) do lado de cá do Brasil.


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