sábado, 24 de novembro de 2012

crônica da semana - a menina dança

A menina dança



 “Movimentos Leves e precisos/Desenham curvas na tela do instante/Cada batuque no tambor/Incendeia a mulata...”.
Nos encontrávamos todo ano na Quadrilha da rua. Ela enfeitada, colorida de estampas florais. Doce. Era uma luta na hora de formar os pares. Eu morria de vergonha. Queria era ela, certamente. Todo mundo sabia. Mas eu remancheava, tardava, me escondia detrás dos outros. Tinha medo de tamanha formosura. Mas sempre, por uma articulação silenciosa da galera, sobrávamos nós dois. O meu encanto, a minha loucura, o meu total desapego das coisas terrenas e mesquinhas. A sublimação dos meus dias era ela. E eu varava o mês de Junho nas nuvens, contemplando. Por causa daquela tez achocolatada que me entontecia, errava a maioria dos passos da contradança, mas ela sempre me guiava, me reintroduzia no caminho da roça. E vencíamos a chuva, o formigueiro, os olhares severos do pai da noiva.
“O canto entoado envolve/Toda a alma/Melodia inscrita/No requebrar dos quadris/Cabelos de mola esvoaçantes/Suor que se traduz em poesia/Que atiça o mais íntimos dos desejos da gente/Lundu, lundu, dança sensual...”.
Morávamos perto. Ela, ainda no trecho que se esvaia em desbotados arremedos de asfalto na margem alta da Pedro Miranda. Eu, na planície submersa que era atendida por estivas débeis e inseguras, desde a Itororó, até a encosta da Alferes Costa.
Nos topávamos mesmo em junho. No resto do ano, nossos horários não combinavam. Uma ou outra vez, no caminho indo-vindo da escola e só. No alagado da baixada as investidas à porta da rua para apreciar o movimento me eram custosas. Tinha medo de cair da ponte, de pegar uma frieira na valinha logo na chegada de casa ou ainda de ficar minado de chamichuga na travessia do canal da Pirajá. Mas sabia que ela, lá no alto da rua, colocava a cadeira na porta de casa, reunia as amigas, brincava de bole-bole na calçada e competia com as lâmpadas de mercúrio recém-instaladas, iluminando a rua com aquele sorriso perolado.
“Sente toda nota vibrar/Pela epiderme/Sem medo ou vergonha/Dança/Esse é o mistério de ser mulher/A combinação perfeita/Do corpo voluptuoso/Herdado de outro continente...”.
Naquele tempo, havia um menino que estudava na Aparecida. Ele se metia em tudo. Era instrutor da banda, jogava nos times da escola, e nas festas juninas, coreografava a turma da rua. Era um camarada criativo, expedito mesmo. E deu de inventar modas na Quadrilha. Introduziu às, já bem batidas, variações da grande roda, trechos de Siriá, de Carimbó e de Lundu.
Éraste, quando ela dançava o Lundu, o mundo se revirava na minha cabeça. Bailava livre como a rainha quilombola Samily. Serpenteava tentadora, mundiando, provocando, disparando olhares foguentos, sorrisos salientes, e exibindo aquele brilho nos dentes que me encandeava, que me desnorteava, que me paralisava e fulminava meus acanhados movimentos. Não estávamos de par? Então, dizque eu dançava, também. No balancê, nos vai-e-vens do Siriá, nos volteios do Carimbó, eu até que dava um jeitinho, mas quando chegava o Lundu, eu fazia só menção. Na verdade, caia numa letargia prazerosa, num delicioso apagão. Esquecia de lidas ou funções, largava os traquejos e trejeitos de lado, só para apreciar. Eu só ficava tareando a pequena, entorpecido, inebriado pela dança folgazã da mulata.
“Beleza de pele escura/Brejeirice em tons de amarelo e Lundu/Uma é o contraste forjado, inocência-indecência, da outra/Queimando na sensualidade da raça/A brancura dos dentes delatando a alegria/A alegria de viver livre/E ser livre".
A menina dança em doces e coloridas lembranças...
(sobre poema de Carol Brito)

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