sábado, 28 de abril de 2018

crônica da semana - bolsa família


Bolsa de menininha
Acompanhei de ouvido atento, uma conversa apurada, durante a viagem de ônibus que me levava para casa, após um dia daqueles, de trabalho.
Devo dizer que estava pra lá de preocupado com o estado atual das coisas, com o risco de desemprego que ronda minha categoria e trabalhadores outros ligados à cadeia do alumínio. Olha, olha, algo em torno de seis mil empregos em tempo de se evaporarem não dão sossego pra ninguém.
Para o horário, a viagem estava até tranquila. Ônibus sem aperto, surpreendentemente limpo e iluminado, todos sentados. Motorista ligado e cuidadoso, não era daqueles que costumam dar freadas bruscas ou balançar o carro para arrumar a carga. Daí que a inusitada calmaria me proporcionou ouvir o papo que rolava, na cadeira atrás de mim. Duas mulheres. Uma só ouvia ou, vez em quando ensaiava um “mas, axi!”. A outra, metralhava. Assegurava, em amplos e disparatados exemplos, que a violência farta em Belém é resultado da Bolsa Família, distribuída indistintamente pelos governos comunistas de Lula e Dilma.
Segundo a passageira tagarela, essa política assistencialista, estimulou as ‘menininhas’ a engravidarem a torto e a direito, sem temores pelo futuro, pois que o dinheirinho do governo estava garantido.
Choveu uma chuva fina, mas que respingava pra dentro do ônibus. Nos aviamos pra fechar as janelas. O ambiente ficou denso, úmido e quente. Um desconforto enorme se instaurou, mais em mim, que adicionei àquele microclima sufocante, o meu indisfarçável descontentamento com a tal teoria sobre o alto índice de criminalidade na cidade. Jamais pensei que do meio de uma categoria social que anda de ônibus e que só falta soltar os bofes quando as janelas são fechadas por causa de uma brisa ao cair da noite, pudesse brotar um discurso sociológico tão ácido, tão objetivamente venenoso. Não é uma defesa de política deste ou daquele governo. Mas, convenhamos, desconhecer, por exemplo, o direito da mulher, de ter quantos filhos quiser, de prima, já desmoraliza a tese. Também não conta a oratória pensa, com os exemplos reais de maridos abandonando, por aí, mulheres cheias de filhos, todos os dias. Credita todas as mazelas às mães “menininhas”.
Percebi o senso corroído desta senhora, analisando problemáticas graves da sociedade pelas lentes da empáfia, do divisionismo, da soberba de pobre metido à besta.
Imediatamente resgatei do meu dia de trabalho, tantas companheiras que, por causa de histórias mal contadas, por causa de imediatismos políticos e a partir de ilusionismos populistas, podem perder seus empregos e, na sequência, por necessidade, correrem atrás de uma bolsa social. Com certeza a faladeira, que sequer se ergueu da cadeira, na hora da chuva, e esperou que a amiga desse conta de fechar todas as janelas próximas, não mudaria o discurso. “Tudo gente preguiçosa correndo atrás do dinheirinho fácil”, diria, cheia de si.
A chuva deu um tempo. Abri a janela e uma brisa necessária me reconfortou. Um respingo remanescente oportunista escapou para a cadeira das amigas. Atrás de mim, a outra resmungou: “mas, axi”.

sábado, 21 de abril de 2018

crônica da semana- açúcar


Amarga como o açúcar
Tô sabendo que tem nave exploradora sendo preparada para descer em uma lua de Júpiter. Pelas previsões mais otimistas, é lá que a gente vai morar quando isso aqui estiver pra virar poeira.
Europa é um pontinho entre outros 69 que ficam dando voltas em torno do maior planeta do sistema solar. Tem água e pode comportar uma atmosfera que sustente a vida. O nome, assim como ocorreu com o velho continente, é  homenagem a uma princesa que foi raptada por Zeus. A mitologia grega conta que Zeus para chamar a atenção da princesa, transformou-se em touro, a levou no lombo para a ilha de Creta e lá ela tornou-se rainha. A lua de Júpiter tem no nome a fantasia, o sonho, a alegoria.
Mas nem dá pra gente se animar. Essa viagem não nos pertence. A nova casa já anuncia a superlotação. É menor que a nossa lua. Como daqui até o embarque, as relações entre as pessoas estarão extremamente estremecidas, e também, os meios tecnológicos estarão gravemente comprometidos pelas constantes tentativas de autodestruição, a disputa para entrar na nave será à dentada.
Estamos escapando. Nesta última semana, uma guerra mundial se anunciou. A formação de blocos foi um sinal da dimensão deste conflito. E não é qualquer escrete não. São nações que detêm a tecnologia nuclear. Alto poder de destruição. Um click no botão cá, outro lá, e boa parte da humanidade estará habitando o mundo da poeira.
O cenário me faz lembrar quando fazíamos a vigília de apoio aos padres franceses Aristides Camio e  François Gouriou,  ameaçados, no início dos anos 80, de serem expulsos do Brasil por envolvimento em questões de terra. Em uma noite de muita reflexão e estudo, alguém fez uma análise da guerra fria, e admitiu que Estados Unidos e Rússia não se enfrentariam diretamente. Não eram bestas de se destruírem mutuamente. O imperialismo se encarregaria de apontar o perdedor virtual deste enfrentamento. Por este pensamento, em tempos atuais, a margem do mundo viraria poeira e os dois grandes iriam às dentadas para garantir um lugar na nave para Europa.
Depois de sábado, fiquei em dúvida.
Como a viagem para Europa, esta aqui da Terra ou mesmo a outra de Júpiter, para nós, não está no script, mesmo, vou me proteger na guarda de uma das mangueiras mais porrudas da cidade e esperar a poeira sentar. Dos males, sei que vou me bater com a falta do açúcar. Pelo menos era essa a lembrança que meu professor de inglês, Avelar, tinha da guerra. Estudei com ele no primeiro grau, e olha que sorte, me bati com ele de novo na Escola Técnica. Era um tipo controverso, duro e cheio de manias. Tinha, também, seus momentos dramáticos. Às vezes, passava a aula toda relatando as dificuldades de uma Belém, no tempo da guerra. A maior peleja era pra conseguir o açúcar. Fazia questão de dar realce à dificuldade de conseguir açúcar para ele e para a mãezinha. Deixava docemente, transparecer que a amargura causada pela guerra se dava, mais gravemente, pela falta de açúcar.
Depois de sábado, a dúvida. A lua de Júpiter tem água, pode ter atmosfera. Será que tem açúcar, sonhos, alegorias, fantasias respiráveis?

sábado, 14 de abril de 2018

crônica da semana- princípio da certeza


O princípio da certeza
Nada parece ser como é. Palavras dizem pouco. Lógicas e tratados são vãs cogitações. Citações diluem-se, comprovações bifurcam-se. Provocações espraiam-se. Convicções meandram e previsões dispersam-se. Dúvidas acomodam-se em paz. O que se diz não é o que se ouve. O concreto dobra-se em pegajosa gosma. Caráter mescla-se a cinismos fartos. Vapores baratos saem caros. O que se vê, oculta-se em sombras tenebrosas. Sentir, a gente sente, e dói. O riso entorta-se em incontroláveis convulsões.
Nada é sério. A virtude fragiliza-se. A pecha cresce. O vício grassa. A graça mingua. A praça se cala. A voz do coração vibra em ondas de silêncio.
Gentilezas geram torturas camufladas.
E dissimulações simpáticas fazem das suas.
(Na vila operária em que eu morava, na época que virei e mexi por Rondônia, cavucando a terra, sempre havia uma movimentação no carnaval. Duas agremiações eram formadas. A ‘Unidos de Cachoeirinha’, composta pelos operários, operárias e agregados adultos. E a ‘Crias de Cachoeirinha’, que como sinaliza o nome, era uma confraria festiva da garotada da vila. As duas voluntariosas escolas faziam a animação do carnaval. Em todos os dias de folguedo, arrastavam os empolgados brincantes pelos corredores restritos do lugar.
No último dia, as duas escolas se encontravam numa disputa para ver quem levava o troféu de campeã. Um júri, quase sempre formado pelo alto-clero da empresa, se encarregava de dar a decisão. Em todos os anos que passei por lá, o confortável desfecho foi o mesmo.
Ao final dos desfiles, as notas eram declaradas.
O gerente administrativo: Unidos de Cachoeirinha, 10. Crias de Cachoeirinha, 9.
O gerente de produção: Unidos de Cachoeirinha, 10; Crias de cachoeirinha, 9.
A gerente de pessoal: Unidos de Cachoeirinha, 10; Crias de Cachoeirinha, 9.
Depois do recolhimento dos jurados a um cantinho afastado, o gerente geral vinha como a papeleta e anunciava a campeã. E todo ano, quem ganhava, apesar de somar a menor nota, era a escola de samba das crianças.
As dúvidas da hora acomodavam-se em paz, a batucada começava e o povo feliz se entregava aos prazeres fugazes.
A contradição era exercida com largas licenças. A ação protetora, paternalista se impunha, em que pese indícios de injustiça, ante a exatidão na conta de somar).
Nada parece ser como é. Assim se forja a história. A escuridão se expande em vetores universais. E em estranhas formas. A forma da alma é pensa. E estes brilhos falsos. Entre brilhos ocos. Estribilhos vastos. Formam rios intermináveis de imprecisões. Sou a favor, embora seja contra.
Nada é sério. As evidências agonizam. A culpa cresce e cobre de setentrião a meridião. A opinião própria, à luz da ordeira e justa palavra, queda-se ao oportuno corporativismo. A água que escorre da praça é vermelha e amornada de lágrimas. A voz do coração vislumbra navegar em mar de silêncio e sombras.
(Uma escola de samba tem a maior pontuação, mas a campeã é a outra). Nada parece ser o que, aparentemente, é. Brilhos arrogantes, entre brilhos ocultos.
Estribilhos ruidosos ecoam e amedrontam as crianças.


sábado, 7 de abril de 2018

                               Ribamares

cronica da semana- Nezir


Página 43
O livro, infelizmente, não tem expediente. Não dá pra saber a data de lançamento. Calculando assim de cabeça, novesfora a idade jogando a memória pra longe, juntando fatos e circunstâncias, dá pra chutar entre 1983/84. “Vôo de Liberdade”, de dados certos e técnicos vem dizendo ser uma publicação de Nezir Oliveira e ter sido rodado na gráfica da Escola Salesiana do Trabalho. Traz 35 poemas. Nem todos do autor que assina a capa. Um, sei que é meu; e outro, parceria dele com o compositor Edir Gaya. E exibe, na página 43 o poema responsável pela fama silenciosa do signatário da obra e razão desta crônica.
“Por não ter, o seu amor” (sic) saiu da página 43 do livro de Nezir, ganhou melodia, a voz de Mauro Cotta e lugar na história dos bregas cults paraenses. É clássico que vara as eras.
Nezir era ex-aluno da Escola Salesiana. Quando apareceu no nosso grupo de jovens, chamou logo a atenção. Calhou da gente estar montando a peça da Semana Santa e precisávamos de alguém com estilo meticuloso, sutil, que fizesse um conselheiro de César. Foi a conta de fazermos dois ou três contatos, entabularmos uma conversa informal, que ele ganhou o papel. Tinha a postura justa para a cena, um ligeiro arqueamento do pescoço (como quem vive aconselhando); uma voz incisiva, pausada, reta. Transmitia segurança. Olhava nos olhos. E um sorriso de lado, algo cínico, algo disfarçado. Arrasou na encenação de Páscoa, e dali em diante esteve sempre presente nas programações da Escola. Chegou a apresentar (com toda aquela chinfra) nosso festival de música que era famoso pacas e dava fama também para quem por ali passava. Muita gente que hoje caseia e chuleia na música paraense, mostrou o talento, em primeiríssima mão,  no palco da Escola.
Tirei uma casquinha dele, ora se não. Declamou meu poema “Tributo” (que mais tarde entrou em “Vôo de Liberdade”,  e por uma falha na edição, saiu sem o meu nome nos créditos) que foi o vencedor do Festival de Música e Poesia realizado pelo colégio Souza Franco, sob a coordenação da professora Josebel Fares.
Envolvido que era, arriscou no campo das letras. Começou a escrever. Em uma das minhas vindas para Belém, de férias, enquanto trabalhava em Rondônia, encontrei com o Nezir e ele me presenteou com um exemplar de “Vôo de liberdade”. Toda vez que vejo uma publicação, ou uma prosa em que a canção ganha evidência e vejo somente o nome do Mauro Cotta citado, vou lá, meto meu bedelho, dou a informação que tenho. O objeto de prova da autoria está na página 43 do livro que repousa ali na estante há bons trinta e poucos anos.
“O amor já era. Felicidade voou. O egoísmo impera”. O Brasil camba ladeira abaixo nos índices de civilidade, de honestidade e ocupação. Somamos quase 13 milhões de desempregados. Carecemos de direitos e os poucos que temos estão sendo devagarinho mergulhados num incerto horizonte. A justiça grande, de cúpula, às cegas, fere, indefere, tutela, abandona. Mas nós, cá embaixo, mesmo no aperto, resistimos. Nos quedemos ao justo, ao direito. O que é de César, a César. O que é de Nezir, a Nezir. Está na página 43.



segunda-feira, 2 de abril de 2018

                               Vila Bolonha