sábado, 31 de maio de 2014

crônica da semana- dia do geólogo

Invadindo o cariazal
Às vezes a gente ganhava a estrada de terra no rumo do não sei donde, e eu ficava apreciando a mata pela janela. Selva de verdade. Fechada, escura, misteriosa, intimidadora, trançada, sem fim. Me perdia em perguntas: quem é que se abala por essa mata a dentro, meu pai? Quem é o doido que desafia este emaranhado verde de encantos e incertezas e se embrenha nos ermos intrincados e inóspitos? E a resposta vinha imediata: eu mesmo, ora. Eu mesmo.
Lá no longe, o carro parava, eu arrumava as tralhas, alinhava a equipe, distribuía as tarefas e invadíamos o temido cariazal, qualquer que fosse a vontade ou intenção; fossem vagos ou inaudíveis, porosos ou agudizados, os desafios da floresta.
Da feita que destrambelhava e encarava a mata casta e indócil, algumas razões suportavam a decisão. A luta pela sobrevivência. Dessa nem se fala. É o dito e o certo. Uma profissão de onde se tira o sustento, o feijão e arroz diário.
Outros porqueres, porém emolduram a carreira de geólogo (ah, sim, não sou geólogo. Formei em Mineração, e na maior parte da minha vida profissional, atuei na área da pesquisa mineral e geologia. Daí a afinidade com a peleja. Durante anos, eu e os geólogos com quem trabalhei porfiamos ao par. Teimamos a dois. Também, porque até um dia desses, freqüentei, mas não concluí o curso de Geologia na Federal do Pará, tenho ligações, digamos assim, abissais, com o meio).
Tirando as necessidades do corpo, outras razões justificam o mergulho na mata densa. Um motivo bastante sólido é o fato de que nem tudo é fácil. O ouro, ainda mais hoje em dia, não está ali na esquina. Não raro, ocorre nos interiores dos interiores dos encaninhos secretos dos escondidos e tão e tanto espalhadinho e disperso, que demanda talentos e zelos para retirá-lo do ninho. Este é um componente forte na natureza do geólogo. É um fuçador, um procurador lógico que envolve boa parte do conhecimento que tem para decifrar as afetações, os caprichos com que a Terra guarda seus tesouros.
E põe conhecimento nisso. Geólogo tem que saber muita coisa. E isso eu comprovei no meu curso. Fiz uma disciplina chamada Estratigrafia (que no frigir dos ovos traduz-se numa maneira elegante e simpática de contar a história da Terra). Certo dia, o professor pôs uma imagem no data-show que mostrava um bonequinho com cara de desesperado e acima dele, um monte de balõezinhos com sinais de interrogação, de várias cores e tamanhos. Segundo meu professor, aquela imagem era uma homenagem às minhas dúvidas. Me senti mais lisonjeado do que pilheriado. Aquela era a representação do meu transe diante da matéria que me exigia saber da terra, do céu, do tempo passado, dos bichinhos extintos, das montanhas distantes, das praias perto, dos profundos do oceano e do raso dos lagos. Muita coisa. Um desvelo que se bem feito, me permitiria entender o porquê do carvão e a importância da samambaia na edificação do nosso planeta. Eu me desesperando para compreender aquilo... E eu me desesperando tal e qual o bonequinho do desenho...
Outro fator que tira o geólogo de órbita são os deleites que a natureza oferece, exclusivamente, àqueles que se arvoram a entrar na mata. Os afloramentos robustos, os grãos brilhosinhos e arredondados no rés dos paleovales soterrados. A beleza incontestável do mais humilde dos cristais de rocha. Eis alguns  indizíveis prazeres permitidos aos geólogos.

Ontem, 30 de maio, foi o dia do geólogo. Dia de tomar uma, porque geólogo bebe. Parabéns aos amigos novos, aos amigos antigos e ao meu filho Argelzinho que experimenta o primeiro semestre e as múltiplas interrogações...

sábado, 24 de maio de 2014

crônica da semana sinalzinho

Sinalzinho (ou O ‘esconderismo’ secreto)
As tardes eram sempre sonolentas naquela época. E quentes. Não sei se é certo falar dos tempos atuais como sendo de aquecimento. Abafada era a fila que se formava (na sombra, heim!) da igreja Aparecida antes de começar a aula, naqueles idos pedreirenses de setenta e poucos.
Eu chegava ali ainda na maior momó. Ia me arrastando. Morava perto, na Marquês (morava ao pegado de uma menina lindona que um dia seria Miss Pará), mas aquele estirãozinho até a escola era para mim, sob o luar das duas da tarde, uma provação. Quando via a nesga de sombra ao lado da igreja, me aninhava por ali ainda  preguiçosinho já me valendo da lei ‘do menor para o maior’. Era um dos pri da fila e garantia um lugar que batia até um ventinho, um corrupio enganoso, morninho que se formava no leito da Pedro Miranda quando os carros passavam, mas que me serviam de valência e me davam a impressão de conforto. Meu sapato Durabel é que não se confortava. Fervia com o calor e rimava um mel suorento dos meus pés, na inquietante espera da batida da campa de entrada.
Alguém, dos grandes de casa, sempre ia me deixar. Mamãe tinha medo. Todos nós tínhamos medo do Sinalzinho.
Era quase uma lenda, mas ao contrário de personagens marginais romanceados ou de gatunos encantados que entravam na nossa casa pelo buraco da fechadura, Sinalzinho não ativava meu medo pelo que tinha de mistério. Temia-o pelo que poderia ser a mais cristalina realidade. Falava-se que ele era mau. Articulador. Pensador. Bandido que ninguém pegava. Era do tipo que engendrava grandes crimes, feitos audaciosos, ações estupendas. Os rumores sentenciavam: andava armado até os dentes. Era valente. Era respeitado. Eu tinha medo que me pelava do Sinalzinho.
Rolava uma conversa que ele tinha um ‘esconderismo’ secreto ali pela Angustura, pertinho de casa. Era o meu trajeto para a escola. Uma caminhada que ia me deixar bem em frente ao portão da Aparecida. Por causa desses boatos, minha mãe mudou meu rumo e passamos a andar pela Barão (foi aí que eu conheci a sombrinha bacana na lateral da igreja e fiz dali o meu ponto de espera. Quando vi, toda a molecada estava esperando meio de lado a batida da campa, ninguém mais ficou torrando no sol, em  frente ao portão. Há medos que vêm para o bem).
Naquele tempo, A Patrulha da Cidade tocava o clima nos pormenores assustadores do mundo cão. A gente, em casa, é claro, ficava na liga do programa. Intimidados e ao mesmo tempo deslumbrados com a ousadia do Sinal. Feitos feéricos eram atribuídos ao Sinalzinho. Confrontos com a polícia militar. Refregas com a elite da polícia civil. Tira-cismas com quadrilhas adversárias. De todos os enfrentamentos, Sinalzinho saía ileso, pronto pra outra. A cidade apavorada rezava para não tê-lo por perto. E ele ali, no ‘esconderismo secreto’ detrás do restaurante do Goiano, na Angustura, segredavam aqui e ali, pra um e pra outro, as alcoviteiras da área. Eu que não ia pagar pra ver. Acatei de prima a mudança de itinerário que minha mãe fez e achava até legal aquela caminhada pela Barão do triunfo, a rua que tinha uma fieira de postes no meio.

A temperatura era altíssima ali pelos arredores da Aparecida naquele início dos anos 70. A imprensa noticiou, a Patrulha da Cidade alardeou que Sinalzinho havia caído. Embora a ameaça tenha passado, continuei no meu trajeto pela Barão sentindo o vento morninho do corrupio, esperando a campa bater, na minha sombrinha. Anos mais tarde, já trabalhando de boy no supermercado, fui companheiro de um garoto que tinha um sinal expressivo no rosto. Deste, eu não tinha medo.

quinta-feira, 22 de maio de 2014

crônica remix - seu barroso

Inimigo meu
Até na guerra há uma lei. Há aquela imposição de se ter a certeza do confronto. Mesmo que haja diferença de forças ou derrotados prévios, há tênues contornos éticos delimitando a selvageria das guerras (a devolução do corpo do guerreiro Heitor para um funeral digno, como herói de Tróia, é uma prova dramática de como, mesmo na guerra, se pode respeitar os valores, a honra e os sentimentos do inimigo).
Sei de casos de embates na região do Xingu, em que os índios expunham a cabeça do inimigo no meio da aldeia. Esta cerimônia queria dizer que aquele combatente havia sido muito forte. O rito ilustrava a valentia do adversário. Era um reconhecimento dos valores do oponente.
Se o índio sabe que seu adversário é forte e se os gregos reconheceram a Heitor o direito de ser velado pelos seus pares, intui-se a concessão do confronto aberto. O enfrentamento mesmo que feroz, é justo. Mirar-se face-a-face é pressuposto do bom combate. Dá a chance de estratégias e defesas. A tocaia, não. A emboscada ardilosa, não. A surpresa desleal não. A tocaia é a tradução da covardia. Quem usa deste expediente para aniquilar seus inimigos, mesmo que os mate, os destrua, entra para a história como um assassino ordinário, vulgar (sequer ilustra um banquete, porque, como afirmavam os antropófagos, “não se devora corvarde”).
Eu sempre tive bem clara a figura do bom inimigo. Já os tive de ruma. É aquele que se anuncia. Que esbraveja. Rosna na tua frente. Atêm-se a parvoíces, a macaquices. Mostram logo os dentes. São límpidos e claros. Melhor tê-los a eles, do que os silenciosos, do que os dissimulados. Do que aqueles que te esperam na curva.
Tive um maravilhoso inimigo. Seu Barroso. Era empreendedor em Altamira. Tínhamos opiniões diversas até quanto à cor do céu. Por aí a gente tira. Vivíamos nos arengando. Mas nos respeitávamos horrores. Ai de que quem falasse mal de seu Barroso perto de mim.
Era o tempo da primeira candidatura do Lula. Seu Barroso, que era ‘direitão’, tinha uma queda pelo pessoal da UDR e achincalhava o Caiado dizendo que ele, o Ronaldo Caiado, ora veja, era um socialistazinho enrustido. Meu Deus!
Seu Barroso era da nossa turminha. Gente da mineração, administradores, secretárias, geólogos, empresários. Uma galera plural e bastante ativa. Nosso point era o restaurante do Carioca, um cara de muita coragem porque nos fiava a conta, mesmo naquela época, com a inflação batendo os 80% ao mês. Era gente da gente, o dono do restaurante. Houve, de tão acaloradas e iminentes que estavam as nossas discussões, de o Carioca deixar a chave do bar com a gente e ir pra casa. Amanhecíamos ali, nos enfrentando e, na contradição, procurando um rumo para o Brasil.
No calor da hora, Seu Barroso era bem objetivo. Dizia que se ele fosse para o poder, eu tava ferrado. Não acabaria comigo de prima. Segundo ele, me poria pendurado numa árvore e todo dia tiraria um pedacinho de mim. Comunista, segundo ele, tinha que ser tratado dessa forma. Eu por mim, atava-me ao poder justiceiro das revoluções. Rebatia que o colocaria no paredão e pronto. E assim, íamos nos prometendo, nos admirando um ao outro. Seu Barroso me desafiava. Eu era um bebê de vinte e poucos anos e ele assegurava que eu não teria responsabilidade depois de uma noite de gandaia. Quite. Tomávamos todas e às sete e meia da manhã eu passava no escritório dele para um café, antes do trampo. Só pra provar que o Brasil ficaria em boas mãos com gente da minha laia.

O Brasil não precisou que eu e seu Barroso nos exterminássemos. Por isso ele é umas das minhas mais estimadas lembranças. Entretanto, no Pará, gente estúpida ainda há, sem coragem de mostrar-se para o combate, que mata de tocaia.

sábado, 17 de maio de 2014

crônica da semana - mobiliando

Mobiliário
Terminei, anterdonti, o livro O Nome da Rosa, uma obra belíssima que eu tava a fim de reler há uma pá de tempo. Novesfora a trama policialesca, na batida da campa da edição dei com os comentários finais do autor e prestei atenção, direitinho, à luz que ele lança sobre ato de escrever. Diz Umbero Eco, que para contar uma história, é preciso construir um mundo o mais mobiliado possível.
Tentando mobiliar: uma cidade encaixada na margem côncava de um meandro do rio Acre. Do outro lado, numa vaga do meandro, o Xapuri adiciona fraternalmente suas águas ao Acre e molda a harmonia entre os dois rios. A cidade contempla aquele encontro em meio ao bucolismo da areia espalhada pelo gracioso pontal que se estende pela orla. Logo acima, a pracinha guarda o busto do qual contam-se histórias inacreditáveis. Estendendo-se paralela à margem, a rua do Barbeiro é ponto de encontro, de luaus românticos, de caminhadas aeróbicas. É o traço central da cidade. Saindo dela rumos são tomados. Pode-se chegar ao centro comercial, à maternidade, à igreja de São Sebastião, à praça Plácido de Castro, à rua da Gaveta...
Dos filhos que mamãe teve, fui o único a nascer na maternidade. Todas as minhas quatro irmãs nasceram no seringal. Mamãe nunca me falou porque nasci na cidade e nem eu perguntei. Mas posso mobiliar aqui um motivo...
As chuvas de abril eram pesadas naquele ano da graça de 1963. A coleta do látex não rendia, os homens saíam de madrugada para cortar seringa, na ida punham as suas tigelas, mas o pampeiro não dava trégua. O aguaceiro derrubava o gotejo apurado e jogava a tigela lá longe. Era o tempo dela, da chuva. Não adiantava insistir. Os seringueiros então decidiram despachar as pélas que tinham e com o numerário da venda, prevenirem-se com víveres suficientes para o restante de inverno sem corte. Formaram o comboio. Minha mãe com a barriga por acolá, acomodou-se no caçuá sobreposto à mula mais forte e se adiantou na viagem, acompanhando a retirada de inverno. Aproveitaria a viagem para ficar na cidade, na  casa da vovó, que ficava  na rua da Gaveta. Os burros iam de não se aguentar, de tantas pélas e era um estirãozão de animais sem fim. O comboio subia barranco, descia barranco, baixava a carga para puxar os bichos do atoleiro, estendia lona, cozinhava, mas não parava muito tempo não. A viagem foi penosa e longa. Quando enfim, deram na boca do Xapuri, negociaram com os aviadores ali mesmo, do outro lado, toda a carga e atravessaram para o pontal. Uma legião de homens e mulheres um tanto barreados ganhou a escadinha uma após outro, saíram na praça, distribuíram-se pela rua do Barbeiro. Minha mãe correu para a rua da Gaveta para se aninhar num lar quentinho e esperar a dor.
Em 1963, o Acre, havia pouquinho, deixara de ser território e passara a Estado. Nascer num ano que termina em 3 desperta algumas curiosidades. Umberto Eco dá exemplo no livro, que três vezes, negou Jesus, Pedro. Coincidências, correspondências se apresentam a mim mais inertes e pueris. Três eram as posições capitais no jogo de petecas (pri, si tri). Não havia o quarto (ou o qua) nem o quinto (ou o quin). Após o tri, apenas o fona infinito. Três eram os alertas intimidadores “vou contar até três pra me contares com quem colaste na festa, senão vou te derrubar pra mamãe...um, dois e...e...”.
Em 1963, sob os auspícios de um Estado recém-criado minha mãe saiu de uma rua cujo nome poderia constar de uma história de trancoso e se aprumou no rumo dos rios irmãos.
Mobiliando: a dor do parto, rua da Gaveta, praça Plácido de Castro, igreja de São Sebastião, maternidade, eu.


quarta-feira, 14 de maio de 2014

crônica remix - salve 14 de maio

Um Beijo e Um Abraço

Um beijo e um abraço é o presente que sempre peço no Dia dos Pais, ou no Natal, ou no dia do aniversário.
Ensaio com os meus filhos os passos que me foram ensinados pela minha mãe: não quero nada de nada. Coisas como aquele velho par de meias bege ou a obsoleta caixa de lenços quadriculados, não. Ou um sapato pai d’égua, de fivela doirada no ladinho, não. Ou um jogo de toalhas compradas no mais chique armarinho da Pedreira, não. Nem o profuso celular. Quero só, mesmo, é o amor e o carinho de meus meninos.
Não que eu exagere na conduta franciscana. Nada disso. Eu até que gosto de uma sofisticaçãozinha aqui e outra ali, de quando em vez: uma rodada de chope e bolinhos de bacalhau num cantinho refrigerado do shopping, ou o bom disco do Buena Vista Social Club, embrulhado em papel de presente, pra completar a festa. De vez em quando, mas que não me venha a reboque de simbolismos, que não me venha substituindo sentimentos. As minhas frugais vontades são heranças deixadas pela minha mãe, ah, a minha mãe...
Passei dez anos andando por esta Amazônia exuberante, cavucando meios de vida. A minha mãe sempre ali, longe aos olhos, mas pertinho, com a sua bênção.
E no dia do meu aniversário, em especial, ela reproduzia  aquela  crença de um presente ser sempre diferente de bens materiais, e exercitava esta profissão de fé  com uma cartinha ( pura emoção para mim, lá no longe), que iniciava sempre assim “ Salve 14 de maio, dia em que recebi de Deus o meu maior presente: meu filho...e parari, parará”
Neste instantinho só, a minha mãe me derrubava. Lá no ermo amazônico em que eu estivesse, me recolhia pávulo às ternas lembranças daquela mulher franzina e portentosa que daquele jeitinho, sem recatos ou timidez declarava sua paixão. E, orgulhoso, pendia eu, inerte, vencido pela enorme saudade da mamãe, para um canto solitário do meu coração a debulhar lágrimas distantes.
Mas o tempo, heim. Implacável a rotinizar as mais puras intenções. Nos anos seguintes a cartinha se repetia inadivertidamente: “Salve 14 de maio...” E assim, pelos dez anos que viramundiei por aí. E eu nunca que reclamei. Eu, heim, Deus te livre e guarde, nem pensar! Sempre fiz a maior questão de receber os escritinhos meigos da mamãe, no padrão dia- do- nevessário. E a sensação era sempre a mesma. A de filhinho queridinho, amamãezado. Distante. Pertinho. Sozinho no mundo, mas com a certeza da bênção maternal a me confortar.
Aprendi, então, com minha mãe (porque ela fazia questão de explicar direitinho pra gente, quando perguntada sobre qual presentinho desejaria ganhar, o quê lhe bastava, realmente) a pedir um beijo, um abraço e muita paz em qualquer ocasião. Aprendi o quanto um gesto simples se traduz em amor imenso, quando, perdido pelas selvas amazônicas eu era encontrado pelas palavras carinhosas, sinceras, abrigadas no aconchego de sua cartinha. Que iniciava, invariavelmente, desse jeitinho: “Salve 14 de maio...”

PS. Esta crônica é de 2006, tempo em que eu era bestão e não queria nada de presente. Agora, quero sim. Quem quiser se habilitar...

Sabe o que eu quero? Sabe as erveiras do Ver-o-Peso, todas elas têm um feixe de vidrinhos coloridos pendurados nas barracas com essência de tudo em quanto (mas é do vidrinho, e não da garrafinha. Aqueles vidrinhos pequenininhos de injeção, sabe?). Pois é, queria uma fieira daquela completinha. E nem é custoso. Sei que valho um tantinho mais, mas, cada um dos amigos entra com dois, três vidrinhos (que dá aí, um e cinqüenta, dois reais pra cada) com cores diferentes e pronto, já me dou por feliz. Sei que as essências são importantes (dizque tem uns chamas pai d’égua, lá no meio), mas não é, propriamente isso que me atrai (mas sabe, também, também). O que me atrai é a cor. Taí, de presente quero um beijo, um abraço, paz e muita cor nesta vida que anda meio plúmbea.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

As mãos

AS MÃOS

No passado 
Havia as redes
Bem próximas
Eu te embalava
Era como uma brincadeira:
“Dá cá tua mão”

As tuas mãos
De encontro
Às minhas
Momentos assim
Eram um prazer
Cantarolando uma canção de ninar
Cantarolando A Rosa
Do Pixinguinha

As redes bem próximas
E eu te embalando
Tão bom tocar tuas mãos
Brilhantes mãos de fogo
Bravas mãos de ferro
Doces e musicais
Belas mãos de mãe

No passado tuas mãos eram vigorosas
Quase fortes
De película fina e transparente
Exibindo flores de sangue vivo
Mãos recheadas de jovens intenções
Mãos de um matiz vermelho-rosado
E contornos perfeitos

As tuas mãos
No passado eram o endereço
Do teu sorriso
A beleza perdida de tua face materna
Tão bom tocar tuas mãos
E não sentir medos exagerados
No passado

As nossas redes próximas
Como uma gostosa brincadeira
“Dá cá tua mão”
No passado

Hoje tento reconhecer velhos sinais:
As tuas mãos de encontro às minhas
Hoje
Quero te embalar
Mas tu não estás.

sábado, 10 de maio de 2014

crônica da semana- petisqueiro

Os sinais e o petisqueiro
Um pecado, tenho em mim, e vivo me pegando com tudo quanto é santo e tenho porque tenho encarreirado desobrigas nas ordens e nos tempos de penitências, pra me livrar dele. Aconteceu: já dei um utensílio de cozinha, para minha mãe, de presente, no dia das mães.
Não foi uma panela, nem um escorredor de macarrão, mas teve ali, na biqueira de indelicadeza com ambos. Foi um ralador com várias funções ‘Kimbar’ (acho que era essa a marca). Pra falar a verdade, eu dei mesmo, porque me engracei da peça (não dizem por aí que a gente dá de presente aquilo que gostaria de ganhar?). Naquela época não se empregava ainda o termo multiuso, para essas invencionices práticas multifuncionais. Mas era um belengodengo versátil e simpático. Tratava-se de uma placa metálica estreitinha com um extremo fazendo as vezes de abridor de garrafa; no outro lado, uma ponta gradativamente adelgaçada terminada em gumes duplos e uma fenda saliente no meio. Ao longo da peça, perfazendo boa parte da área de uso, um ralo de malha fina e ainda, antes do abridor de garrafa, uma outra fenda com a aba saliente, dizque,  para descascar legumes. Estava acondicionado em um platiquinho justo colado a um cartão duro com dizeres maravilhosos sobre aquele artefato e a marca exposta no alto em vermelho. Na parte coberta pelo plástico a gente percebia bolhas de ar pequenas, pressurizadas, e aquela textura dava à embalagem uma tez granulada boa de pegar, boa de passar o dedo. Éraste! Coisa de menino besta: endoideci. Comprei com toda a boa vontade para presentear minha mãe num segundo domingo de um maio distante, mas nem um pouquinho indulgente.
Minha mãe, santinha que era, deve ter recebido o presente com agrado, dando os devidos descontos à minha inocência. Arrisco até dizer que fez uso do berimbelo por algum tempo, depois deitou-o n’algum canto esquecido do petisqueiro. Discreta e indiretamente deixou revelar, sem tanta dor, o verdadeiro ‘apreço’ que tinha por aquele presente. Anos depois, já taludinho, alfabetizado e iniciado no beabá politicamente correto, percebi a gafe. Mamãe não merecia aquilo. Mas tenho um atenuante para tamanha grosseira. Ela, com a mesma tez e traço, não mais ocorreria. Como se tocado por uma varinha provedora, não mais voltei a lançar mão de regalos funcionais. Quedei-me ao viés estético, cuidador. Assim, de um ano para outro, dei de presentear a mamãe com mimos que realçassem e valorizassem a mulher que ela era. Que lhe ativasse a vaidade. Um sapato, um batom. Uma bolsa. Uma blusa florada. Uma lavanda leve. Certo dia, dei-lhe um poema e a partir daí, desandei a presentear-lhe com sentimentos verdadeiros, carinhos, dengos, confissões apaixonadas, delações de saudades, e drásticas reconciliações caso urgissem (estes, os melhores presentes, porque nada melhor há do que viver sem zangas ou faltas com a mãe da gente).  
Logo que tornei da leseira que cometi, fui tateando um jeito de superar o trauma do ‘Kimbar’. Se não com presentes doirados ou de realce, ao menos saí daquela coisa de obsequiar minha mamãe tendo como base o perfil de dona-de-casa obreira. Não sei se consegui. Minha mãe não ligava pra essas coisas, ou pelo menos, não demonstrava de prima, pesar ou contentamento. O petisqueiro deteriorou-se e não mais houve sinais escondidinhos na casa que aludisse ao humor de mamãe. Tenho a impressão que nos acertamos, porém.
Amanhã, dia das mães, minha mãe não está mais entre nós, mas vai ganhar um poema, vou cantar, vou cantar pra ela e procurar sinais, buscar sinais no céu de maio (ou talvez em mim mesmo) de seu contentamento.


quarta-feira, 7 de maio de 2014

crônica remix - tapinha

Ai, meu pai! Quereria sentar aqui nesta quarta-feira e escrever uma crônica “alegre, falando palavras boas de falar: luz de vela... barco, terra, mar... sol, lua...mãe, irmã, mulher”. Preferiria prosear sobre beijo na boca, carinho, cuticuti, tecoteco, ticotico, nheconheco.
Fico só na vontade.
A nossa verve, o nosso instinto, o nosso calibre de mamífero, estes últimos dias, têm nos aprontado cada arrumação. E uma, maior que a outra, mais chocante, mais apavorante que a outra. Éraste! chega a gente amofina.
Que droga! agora, na largada do terceiro milênio, parece que estamos dando uma guinada no rumo da nossa pré-história de urros e grunhidos. Parece que estamos querendo voltar a ser rudes macaquinhos.
A primeira cena do filme “2001, Uma Odisséia no Espaço” nos mostra uma batalha entre os homens primitivos. Os gorilas se enfrentam ferozmente para garantir a posse de um pequeno lago. Nesta seqüência, o filme revela uma descoberta decisiva para a polarização do poder tribal. Um dos hominídeos percebe que pode manipular pedaços de ossos de grandes animais e utilizá-los como arma. E assim, com este argumento tecnológico, consegue subjugar o adversário. O desfecho da batalha se dá com o macaco golpeando o inimigo com o pedaço de osso, descontroladamente, desregradamente. O outro macaco já nem resiste mais. Já não dá mais sinal de vida, largado inerte, sobre o lajedo, mas o macaco vencedor continua triturando o adversário violentamente, raivosamente com aquele ossão.
Isso foi mais ou menos o que aconteceu dias atrás lá no Tapanã.
O que me assusta mais, o que me constrange e o que me abate é que cenas de violência urbana sejam tratadas como cults cinematográficos e dêem mais ibope do que a batalha inventada pelo Arthur Clarke.
Hoje em dia, o negócio é no bruto mesmo.
Tenho topado com gente do meu convívio, que tem gravado da internet, tem registrado no celular, as mais bizarras cenas de violência. Chegam ao cúmulo de fazer rodinha para exibir os últimos lances de barbárie.
A certeza é que a insensatez, a brutalidade, a insanidade, a degenerescência da natureza humana têm enorme repercussão no meio da nossa sociedade. Tratamos golpes certeiros, potentes, mutiladores, poderosos, como se fossem um tapinha. (um tapinha humilhante, que leva a morte). Um tapinha que, ah, não dói nadica na nossa consciência.
Alguém até puxou um assunto comigo, sobre a última. Uma que tá na internet. Uma em que um cidadão esmigalha outro sem maiores culpas. Eu dei para trás rapidamente. Deus me livre e guarde, cara! Me mostra aí, no teu celular, uma coisa qualquer sobre futebol. Até mesmo sobre o sofrimento do meu bicola. Ou não, manda aí, um vídeo saliente. Qualquer um...Aquele da Cicarelli (eu tô do lado é da Cicciolina), aquele da Cicareeeelli, cara! Mostra uma praia linda e um anoitecer estrelado. Mostra aí, no teu celular, cenas de amor. De diversão, de resistência e de revolução. Mostra aí, reuniõezinhas de família e um barco navegando ao longe pela baía do Guajará. Mostra daquele jeito que todo mundo grava mesmo: uma imagem indefinível, turva, escura, mas inócua. Uma imagem que não agride, que não maltrata senão pela falta de nitidez.

Mas de gente sendo vilipendiada, não. De gente sendo submetida, Por favor, não! Deixa pra lá, cara. Deixa que a arte previdente, reveladora, profética de Arthur Clarke cuida disso. Cuida da rispidez e da irracionalidade. Cuida, com tal zelo, como se fosse um aviso...Vindo do tempo dos macacos.

sábado, 3 de maio de 2014

crônica da semana -o trabalho

A cratera da Tito Franco (ou o trabalho enobrece o homem)
A primeira televisão que tivemos em casa (uma caixa que parecia um rádio, com uns botões assim grandões para ajustar volume e brilho mais um seletor de canal que fazia tec tec tec quando girado) eu comprei com o recurso oriundo das gorjetas mais rechonchudas que vinham do meu trabalho. Aquelas das entregas nas casas.
A minha estréia na rua foi de um risco absurdo. O pegador do carrinho ficava muito alto, acima dos meus ombros e era ali todo o controle da carga: equilíbrio, distribuição de peso, velocidade nos movimentos. Para poder alcançar as alças eu tive que deitar bem o carrinho, a borda veio à altura do meu peito e aí já viu, eu tinha que sustentar no braço todo o peso. Essa força concentrada em cima de mim era tão grande que todos os outros controles foram pras cucuias. Saí assim mesmo. Zambeteando pela Almirante Barroso. Corri um perigo danado no meio do trânsito ainda acanhado da antiga Tito Franco. Peguei muito carão dos motoras. Fui tareando até a casa do freguês, peguei minha graninha, voltei com o carrinho vazio, mas ainda sem muito controle. Os meninos foram fuxicar pra minha chefe o desastre que foi minha saída e depois dessa experiência, fui proibido de pilotar os carrinhos de compras na rua. Com o meu confinamento aos limites do estacionamento, os meus dinheirinhos de gorjeta desmilinguiram-se vertiginosamente.
O normal era a gente embalar e levar os paneiros no táxi; no carro do barão, no estacionamento. Até ali, rolava uma grana mínima, resultante de um acordo tácito baseado no bom senso. Pintava 1 cruzeirinho, dois...não mais que três. Uma gorjeta maior rolava quando a gente saía para levar as compras na casa do freguês. Era nessa hora que eu me embananava. Meu aperreio começava ali mesmo no salão do supermercado. Como não conseguia colocar os paneiros dentro do carrinho, chamava um dos meninos para me ajudar. Às vezes, até o freguês dava uma força.
Foi o meu primeiro emprego com carteira assinada. Tinha exatos 12 anos. Penso que naquele tempo não tinha o ECA ou um mecanismo de proteção social (assim da envergadura das bolsas que ora grassam) ao menor, que o desencantasse do mundo do trabalho. E antes que brados se levantem contra a conivência da minha santa mãezinha com a minha situação de petiz trabalhador, saio por ela. Sempre por ela. Culpa ou dolo nenhum teve. Houve de nos virarmos, o mundo pedia uma rima.
Mas eu era muito pequenininho. Franzino. Ficava olhando os meus colegas de trabalho, o Amujaci, o Beto, o Guarda-Mirim, o Fraza, o Beco; o Sabazinho, filho do seu Sabá. Eram ali, de parelha comigo na idade, mas, olha, estavam bem mais taludos, exibiam os músculos, as veias tufadas no braço. Eu, nem...Só a casqueta, dava pra contar as costelas. Mas não abria não. Encarava as paradas.

Eu era moleque que vivia o mundo do trabalho, mas não deixava de ter meus repentes de criança. Uma vez inventei uma dor não sei onde e dei nó. Faltei ao trabalho só pra ver um episódio imperdível de Daniel Boone. Outra vez saí do trabalho chorando, peguei o Jurunas-Conceição chorando e cheguei em casa chorando porque meus colegas maiores e mais fortes levaram toda a minha grana, ao final do expediente, num jogo de bate com figurinhas da Copa. Me alfobitaram, me deixaram na pira, mas foi roubando. Passavam cuspe na mão pra virar a figurinhas. Só que eu percebi. Reclamei e me deram um samba. Neste dia, procurei uma cratera na Almirante Barroso, pra me enterrar, mas mudei de idéia porque mais logo tinha que trabalhar de novo. Meu mundo, minha rima para Raimundo exigia.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Crônica remix - trabalho

O Trabalho Dignifica o Homem
Sempre trabalhei. Comecei com 9, 10 anos, por aí. Primeiro foi num escritório de advocacia. Minha mãe conseguiu com uma amiga, que eu fosse para a lida no relevante papel de ajudante de office-boy. Só fui um dia. O patrão estressou com um cliente e eu entrei na hora exata, com o cafezinho. O homem ralhou de lá e eu me tremi todo de bandeja na mão. Larguei tudo na copa e saí chorando. Passei pela secretária, a dita amiga da minha mãe, que não dei nem as horas pr’ela. Fui chorando desde o escritório, na Santo Antônio, até a minha casa na vila Três irmãos, lá na Visconde.
Minha mãe estranhou a minha chegada assim, de olhos vermelhos e quando perguntado, respondi que não ia mais voltar para aquele lugar porque o homem tinha gritado comigo.
É claro que aquilo foi mais melindro da infância, do que uma agressão desleal. O advogado não tava nem aí pra mim, naquela hora. Alterou a voz numa daquelas discussões normais do ofício. Depois mandou me chamar dizendo que tudo tinha sido um mal entendido. Mas quede que fui? Fiquei impressionado.
Tratei, porém, de apagar o trauma. A situação não dava tempo para depressões ou reflexões aprofundadas.
Com o dinheiro da indenização (sim, ainda fui remunerado pelo meu dia de chiliquito no escritório) mamãe comprou uma geladeirinha e n’outro dia, lá s’estava eu pegando o estirão da Visconde até o campo do Areal com um capital inicial de 20 picolés.
Eu sempre fui muito tímido, meio envergonhado e muito sem graça. Não tenho tino para a venda (apesar de, inexplicavelmente, ter vivido desta atividade durante um bom tempo) e odiava ser colocado em evidência na minha luta com o picolé. Detestava quando gritavam por mim, lá do outro lado da rua “ei, picolezeiro, vem cá. De que é que tem?” Ah, eu ficava piriricas com aquilo. Mas fazia a venda. Baixava a cabeça e ia de encontro aos fregueses, repetindo para mim mesmo “picolezeiro é a mãe. Picolezeiro é...”
Para mim, a coisa tinha que ser no silêncio, sem alarde. Por causa disso, e já com uma geladeira maior, me estabeleci impávido entre o unheiro e o bombonzeiro, na calçada do Alzira Pernambuco. E, com singular recato, por lá fiquei um tempo, ganhando o meu, até que apareceu a oportunidade de trabalhar como empacotador no Carisma em frente ao campo do Remo.
Quando eu fui trabalhar no supermercado, eu era deste tamanhinho. Olha só, hoje, após previdentes proteínas e alguns vidros de Calcigenol, eu tô com metro e cinqüenta e um, que dirá, na época do pão e meio para quatro, no jantar! Era um custo para mim, dar conta daqueles paneiros ainda mais quando tinha que levar nas casas. Eu não alcançava o carrinho. Os meus colegas é que arrumavam a carga pra mim e de lá eu saía me batendo errante pela Almirante Barroso. Os fregueses é que me ajudavam, davam uma força (além da gorjeta), quando ela me faltava.
(O melhor de trabalhar no Carisma - depois, Pão de Açúcar - era que em dias de jogos, sempre dava pra gente pegar os 15 finais, lá no Baenão).
Este meu período de batalho, na tenra infância, reproduz, com certa crueza, a idéia primeira que se formou sobre o trabalho. No início trabalho significava sofrimento, dor. A própria palavra deriva do substantivo latino tripalium que era o termo usado para designar um aparelho de tortura. Credo!
E às vezes, o trabalho se impõe realmente como um fardo pesado (igual aos paneiros do Carisma), mas a história trata de reestruturar as idéias.
O trabalho é um dom. Tenho pra mim, que por causa do trabalho é que freqüento esta e não outra página deste jornal.