sábado, 10 de maio de 2014

crônica da semana- petisqueiro

Os sinais e o petisqueiro
Um pecado, tenho em mim, e vivo me pegando com tudo quanto é santo e tenho porque tenho encarreirado desobrigas nas ordens e nos tempos de penitências, pra me livrar dele. Aconteceu: já dei um utensílio de cozinha, para minha mãe, de presente, no dia das mães.
Não foi uma panela, nem um escorredor de macarrão, mas teve ali, na biqueira de indelicadeza com ambos. Foi um ralador com várias funções ‘Kimbar’ (acho que era essa a marca). Pra falar a verdade, eu dei mesmo, porque me engracei da peça (não dizem por aí que a gente dá de presente aquilo que gostaria de ganhar?). Naquela época não se empregava ainda o termo multiuso, para essas invencionices práticas multifuncionais. Mas era um belengodengo versátil e simpático. Tratava-se de uma placa metálica estreitinha com um extremo fazendo as vezes de abridor de garrafa; no outro lado, uma ponta gradativamente adelgaçada terminada em gumes duplos e uma fenda saliente no meio. Ao longo da peça, perfazendo boa parte da área de uso, um ralo de malha fina e ainda, antes do abridor de garrafa, uma outra fenda com a aba saliente, dizque,  para descascar legumes. Estava acondicionado em um platiquinho justo colado a um cartão duro com dizeres maravilhosos sobre aquele artefato e a marca exposta no alto em vermelho. Na parte coberta pelo plástico a gente percebia bolhas de ar pequenas, pressurizadas, e aquela textura dava à embalagem uma tez granulada boa de pegar, boa de passar o dedo. Éraste! Coisa de menino besta: endoideci. Comprei com toda a boa vontade para presentear minha mãe num segundo domingo de um maio distante, mas nem um pouquinho indulgente.
Minha mãe, santinha que era, deve ter recebido o presente com agrado, dando os devidos descontos à minha inocência. Arrisco até dizer que fez uso do berimbelo por algum tempo, depois deitou-o n’algum canto esquecido do petisqueiro. Discreta e indiretamente deixou revelar, sem tanta dor, o verdadeiro ‘apreço’ que tinha por aquele presente. Anos depois, já taludinho, alfabetizado e iniciado no beabá politicamente correto, percebi a gafe. Mamãe não merecia aquilo. Mas tenho um atenuante para tamanha grosseira. Ela, com a mesma tez e traço, não mais ocorreria. Como se tocado por uma varinha provedora, não mais voltei a lançar mão de regalos funcionais. Quedei-me ao viés estético, cuidador. Assim, de um ano para outro, dei de presentear a mamãe com mimos que realçassem e valorizassem a mulher que ela era. Que lhe ativasse a vaidade. Um sapato, um batom. Uma bolsa. Uma blusa florada. Uma lavanda leve. Certo dia, dei-lhe um poema e a partir daí, desandei a presentear-lhe com sentimentos verdadeiros, carinhos, dengos, confissões apaixonadas, delações de saudades, e drásticas reconciliações caso urgissem (estes, os melhores presentes, porque nada melhor há do que viver sem zangas ou faltas com a mãe da gente).  
Logo que tornei da leseira que cometi, fui tateando um jeito de superar o trauma do ‘Kimbar’. Se não com presentes doirados ou de realce, ao menos saí daquela coisa de obsequiar minha mamãe tendo como base o perfil de dona-de-casa obreira. Não sei se consegui. Minha mãe não ligava pra essas coisas, ou pelo menos, não demonstrava de prima, pesar ou contentamento. O petisqueiro deteriorou-se e não mais houve sinais escondidinhos na casa que aludisse ao humor de mamãe. Tenho a impressão que nos acertamos, porém.
Amanhã, dia das mães, minha mãe não está mais entre nós, mas vai ganhar um poema, vou cantar, vou cantar pra ela e procurar sinais, buscar sinais no céu de maio (ou talvez em mim mesmo) de seu contentamento.


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