sábado, 17 de maio de 2014

crônica da semana - mobiliando

Mobiliário
Terminei, anterdonti, o livro O Nome da Rosa, uma obra belíssima que eu tava a fim de reler há uma pá de tempo. Novesfora a trama policialesca, na batida da campa da edição dei com os comentários finais do autor e prestei atenção, direitinho, à luz que ele lança sobre ato de escrever. Diz Umbero Eco, que para contar uma história, é preciso construir um mundo o mais mobiliado possível.
Tentando mobiliar: uma cidade encaixada na margem côncava de um meandro do rio Acre. Do outro lado, numa vaga do meandro, o Xapuri adiciona fraternalmente suas águas ao Acre e molda a harmonia entre os dois rios. A cidade contempla aquele encontro em meio ao bucolismo da areia espalhada pelo gracioso pontal que se estende pela orla. Logo acima, a pracinha guarda o busto do qual contam-se histórias inacreditáveis. Estendendo-se paralela à margem, a rua do Barbeiro é ponto de encontro, de luaus românticos, de caminhadas aeróbicas. É o traço central da cidade. Saindo dela rumos são tomados. Pode-se chegar ao centro comercial, à maternidade, à igreja de São Sebastião, à praça Plácido de Castro, à rua da Gaveta...
Dos filhos que mamãe teve, fui o único a nascer na maternidade. Todas as minhas quatro irmãs nasceram no seringal. Mamãe nunca me falou porque nasci na cidade e nem eu perguntei. Mas posso mobiliar aqui um motivo...
As chuvas de abril eram pesadas naquele ano da graça de 1963. A coleta do látex não rendia, os homens saíam de madrugada para cortar seringa, na ida punham as suas tigelas, mas o pampeiro não dava trégua. O aguaceiro derrubava o gotejo apurado e jogava a tigela lá longe. Era o tempo dela, da chuva. Não adiantava insistir. Os seringueiros então decidiram despachar as pélas que tinham e com o numerário da venda, prevenirem-se com víveres suficientes para o restante de inverno sem corte. Formaram o comboio. Minha mãe com a barriga por acolá, acomodou-se no caçuá sobreposto à mula mais forte e se adiantou na viagem, acompanhando a retirada de inverno. Aproveitaria a viagem para ficar na cidade, na  casa da vovó, que ficava  na rua da Gaveta. Os burros iam de não se aguentar, de tantas pélas e era um estirãozão de animais sem fim. O comboio subia barranco, descia barranco, baixava a carga para puxar os bichos do atoleiro, estendia lona, cozinhava, mas não parava muito tempo não. A viagem foi penosa e longa. Quando enfim, deram na boca do Xapuri, negociaram com os aviadores ali mesmo, do outro lado, toda a carga e atravessaram para o pontal. Uma legião de homens e mulheres um tanto barreados ganhou a escadinha uma após outro, saíram na praça, distribuíram-se pela rua do Barbeiro. Minha mãe correu para a rua da Gaveta para se aninhar num lar quentinho e esperar a dor.
Em 1963, o Acre, havia pouquinho, deixara de ser território e passara a Estado. Nascer num ano que termina em 3 desperta algumas curiosidades. Umberto Eco dá exemplo no livro, que três vezes, negou Jesus, Pedro. Coincidências, correspondências se apresentam a mim mais inertes e pueris. Três eram as posições capitais no jogo de petecas (pri, si tri). Não havia o quarto (ou o qua) nem o quinto (ou o quin). Após o tri, apenas o fona infinito. Três eram os alertas intimidadores “vou contar até três pra me contares com quem colaste na festa, senão vou te derrubar pra mamãe...um, dois e...e...”.
Em 1963, sob os auspícios de um Estado recém-criado minha mãe saiu de uma rua cujo nome poderia constar de uma história de trancoso e se aprumou no rumo dos rios irmãos.
Mobiliando: a dor do parto, rua da Gaveta, praça Plácido de Castro, igreja de São Sebastião, maternidade, eu.


2 comentários:

  1. Tenho uma plêiade de histórias desse Acre, quando morei em Feijó. Um dia, quem sabe, eu conto.

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  2. Oi Raimundo,

    Enfim entendi as regras do jogo de peteca e o que o tal do "fona". Incrível como lembras tudo com detalhes. É muito gostoso ler tuas crônicas. Achei muito bacana também o final, ou melhor, a "peregrinação" que culminou com a tua chegada.
    Parabéns pra nós, que fomos agraciados com a tua autenticidade!
    Um abraço.

    Att., Deizi Lorena

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