sábado, 3 de maio de 2014

crônica da semana -o trabalho

A cratera da Tito Franco (ou o trabalho enobrece o homem)
A primeira televisão que tivemos em casa (uma caixa que parecia um rádio, com uns botões assim grandões para ajustar volume e brilho mais um seletor de canal que fazia tec tec tec quando girado) eu comprei com o recurso oriundo das gorjetas mais rechonchudas que vinham do meu trabalho. Aquelas das entregas nas casas.
A minha estréia na rua foi de um risco absurdo. O pegador do carrinho ficava muito alto, acima dos meus ombros e era ali todo o controle da carga: equilíbrio, distribuição de peso, velocidade nos movimentos. Para poder alcançar as alças eu tive que deitar bem o carrinho, a borda veio à altura do meu peito e aí já viu, eu tinha que sustentar no braço todo o peso. Essa força concentrada em cima de mim era tão grande que todos os outros controles foram pras cucuias. Saí assim mesmo. Zambeteando pela Almirante Barroso. Corri um perigo danado no meio do trânsito ainda acanhado da antiga Tito Franco. Peguei muito carão dos motoras. Fui tareando até a casa do freguês, peguei minha graninha, voltei com o carrinho vazio, mas ainda sem muito controle. Os meninos foram fuxicar pra minha chefe o desastre que foi minha saída e depois dessa experiência, fui proibido de pilotar os carrinhos de compras na rua. Com o meu confinamento aos limites do estacionamento, os meus dinheirinhos de gorjeta desmilinguiram-se vertiginosamente.
O normal era a gente embalar e levar os paneiros no táxi; no carro do barão, no estacionamento. Até ali, rolava uma grana mínima, resultante de um acordo tácito baseado no bom senso. Pintava 1 cruzeirinho, dois...não mais que três. Uma gorjeta maior rolava quando a gente saía para levar as compras na casa do freguês. Era nessa hora que eu me embananava. Meu aperreio começava ali mesmo no salão do supermercado. Como não conseguia colocar os paneiros dentro do carrinho, chamava um dos meninos para me ajudar. Às vezes, até o freguês dava uma força.
Foi o meu primeiro emprego com carteira assinada. Tinha exatos 12 anos. Penso que naquele tempo não tinha o ECA ou um mecanismo de proteção social (assim da envergadura das bolsas que ora grassam) ao menor, que o desencantasse do mundo do trabalho. E antes que brados se levantem contra a conivência da minha santa mãezinha com a minha situação de petiz trabalhador, saio por ela. Sempre por ela. Culpa ou dolo nenhum teve. Houve de nos virarmos, o mundo pedia uma rima.
Mas eu era muito pequenininho. Franzino. Ficava olhando os meus colegas de trabalho, o Amujaci, o Beto, o Guarda-Mirim, o Fraza, o Beco; o Sabazinho, filho do seu Sabá. Eram ali, de parelha comigo na idade, mas, olha, estavam bem mais taludos, exibiam os músculos, as veias tufadas no braço. Eu, nem...Só a casqueta, dava pra contar as costelas. Mas não abria não. Encarava as paradas.

Eu era moleque que vivia o mundo do trabalho, mas não deixava de ter meus repentes de criança. Uma vez inventei uma dor não sei onde e dei nó. Faltei ao trabalho só pra ver um episódio imperdível de Daniel Boone. Outra vez saí do trabalho chorando, peguei o Jurunas-Conceição chorando e cheguei em casa chorando porque meus colegas maiores e mais fortes levaram toda a minha grana, ao final do expediente, num jogo de bate com figurinhas da Copa. Me alfobitaram, me deixaram na pira, mas foi roubando. Passavam cuspe na mão pra virar a figurinhas. Só que eu percebi. Reclamei e me deram um samba. Neste dia, procurei uma cratera na Almirante Barroso, pra me enterrar, mas mudei de idéia porque mais logo tinha que trabalhar de novo. Meu mundo, minha rima para Raimundo exigia.

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