sábado, 29 de janeiro de 2022

crônica da semana - O teste cigarrinho

 O teste

Alimento a ilusão de que, hoje em dia, as pessoas não fumam como antes. Esta minha opinião foi contestada dia desses, numa rodinha de conversa. Fumam sim, me afirmaram. Eu não percebo. Talvez seja ainda até uma aventura experimentada pelos jovens. A turma da minha geração, há muito largou mão dos traguinhos. E se há ainda este movimento na juventude, nem de longe lembra o aprisionamento que era este costume fumacento. Até vejo mesmo uma turminha jovem fumando, mas, um aqui, outro ali, poucas vezes ostentando carteiras cheias. Me parece que na mesma pisada que aceitam a experiência, a abandonam logo adiante.Torço pela ilusão.

Mamãe fumava Continental sem filtro. Trazia o vício dos cotidianos destemperados do seringal. Naqueles ermos do Acre, fumar era uma distração, um passa-tempo e um prazer compulsório.

De volta a Belém, com a filharada pra cuidar, a solidão, o preconceito e as incertezas, o hábito ganhou o caráter de um custo avolumado dentro de um orçamento doméstico assim, ó, de pequeno. Um vício duro de administrar e difícil de justificar junto a pessoas próximas que nos ajudavam na lida diária: não tinha dinheiro pra prover a casa, mas tinha para o cigarro, alfinetavam ao largo.

Preservou a amizade com o cigarrinho até quando a tosse e os sufocamentos permitiram. Antes, passara, com certa resistência ao Continental com filtro, aquele da carteira azul, muitas vezes possível, graças ao caderninho que tínhamos com seu Manoel, proprietário da taberna da esquina, que nos aviava com uma cara emburrada, mais para esconder a generosidade refletida no caderno das contas, que para nos constranger. A cada meia quarta aviada de um isso ou de um aquilo, com voz marcante, indagava: quei’ra mais? Era o sinal que o saldo no caderno garantia mais umas coisinhas. Cheirava rapé e tinha um bigodão de português.

Eu era um crítico da mamãe. Não aceitava o fato d’ela fumar e vez ou outra, ser hostilizada por acender um cigarro na frente de parentes ou amigos. Mas como minha mãe dizia, o futuro a Deus pertence. Não julgueis.

Deu-se o dito. Assim que me larguei no mundo para correr trecho, não resisti aos apelos. Fumei de tudo. Houve uma época, em Altamira que, confinado no mato, meu suprimento acabava e eu caia dicunforça no tabaco dos pequenos da minha equipe. Aprendi a tecer no abade e fazia uns cigarrinhos assim de jeitosos, justinhos, apertadinhos, parece que tinham vindo da fábrica. Para atenuar o baque nos pulmões, eu introduzia um filtro de algodão, quando não, o âmago da embaúba, que fazia, com muita eficácia, as vezes. Ô vício maldito! Dei um trabalho danado pra minha companheira, já em Belém, quando amarguei um período sem emprego e a ela coube a missão de bancar meus caprichos. Pecado mortal este. Um sofrimento. Passei poucas e boas por causa do cigarro. Do meio pro fim, recorri ao retalho, fiz tentativas de parar, usei marcas mais fortes para me intimidar, aquele, o Amigo. Em vão.

Quando larguei o vício, fiz um teste. Me expus ao melhor cigarro. É aquele que, numa festa, fica lá, em cima da mesa, abrigado em uma carteira farta, de ninguém, de todo mundo, só te esperando. Era uma comemoração na casa de amigos. Brinquei, tomei uma cervejinha, comi vatapá, camusquim, uns docinhos. Passei ene vezes pela mesinha e a carteira, só me tirando, se atirando atrevida pra cima de mim. Eu nem seu Souza. Não dei nem as horas. Estava curado. Este ano faz 26 anos que larguei o cigarro e hoje sou um não fumante chato, como o era com mamãe.

 

 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

sábado, 22 de janeiro de 2022

crônica da semana - no limite

 No limite

O poeta é nativo do marco da Primeira légua. Tem registros afetivos bem definidos por aquelas bandas. Eu que não sou besta nem nada, aproveitei para tirar dúvidas atávicas. Perguntei a ele se era justificado o temor de mamãe em não me deixar freqüentar as cacimbas alegando que o lugar era domínio da Matinta e dos encantados. Ele disse, ora se não! Morava pras bandas da Senador e de lá saía um caminho beirando a mata que chegava às cacimbas. A molecada se divertia nadando por lá, mas só até o guariba cantar. Antes de escurecer tinham que ir pra casa e em desabalada carreira pela pista da Dr. Freitas, com os cabelos ‘arrupiando’ de medo.

Aconteceu, no final do ano passado d’eu ir pela primeira vez na vida a uma sessão de cinema em shopping. Programação que não esteve em momento algum na minha pauta. Não por nada, é que, o que me apraz ainda são as salas tradicionais. As exibições da Estação, as sessões no Líbero ou no Olympia garantiam um quê de naturalidade e tradição aos meus programas de cinema. Recebi um convite do meu compadre, o poeta José Miguel Alves, e me animei.

Por causa dos cuidados com a pandemia, ele veio me pegar de carro, cedo em casa, o que resultou em um breve passeio aqui pelos limites da primeira légua patrimonial de Belém, marco que para nós quer dizer espaços freqüentados na infância e adolescência. Fomos ver “Marighela”. Apreciei o filme, fiz comparações incabíveis com o extraordinário livro do Mário Magalhães, mas, depois, desarmado da crítica expletiva, até verti lágrimas subversivas na cena final ao atestar que o hino nacional freqüentara grupos sociais outros, motivados por teorias revolucionárias, e bem diferentes destes do momento, movidos pela rasa filosofia do zap.

O melhor da aventura, no entanto, foi passar a tarde toda explorando a interseção Pedreira-Sacramenta com Miguel.

Dei providência e levei o poeta para ver aquela água que escorre constantemente, de dezembro a dezembro, ali no canto da Duque. Aleguei a possibilidade de ser o afloramento de algum curso d’água subterrâneo que há por ali. Meu compadre José, de conhecimento, salientou que antes, nos fundos do Lauro Sodré havia uma grande área alagada e que se dividia em alguns canais de pequenos igarapés no sentido da Pedreira. Com os aterros e a urbanização, pode ser, pode ser sim, este rego constante, a água procurando caminho até fluir pelo meio-fio da Duque.

Quando chegamos à Senador, rolou a emoção. Comentei que minha mãe tinha uma conhecida que morava naquele trecho de fronteira com a mata e que a tínhamos como vó Ana da Sacramenta. Criava muitos gatos, era velhinha, solitária e era atormentada pela aeronáutica que, foi-não-foi, a ameaçava de despejo daquele pedacinho de terra em que vivia. Era a última rua e Miguel a identificou como o traçado que define a praça Dorothy Stang atualmente. Ali, na esquina, José localizou uma mangueira que afirma ser a mesma em que ele catava manga antes de formar a grade no campinho que se espremia entre casinhas humildes ali perto. Recordou a luta do pai, a energia de minha mãe, provedores de nossas numerosas famílias, usinas dos bons ventos que nos trouxeram até aqui a esta encruzilhada de caminhos e tempos limitados, onde um deles nos leva a um programa jamais experimentado.

Nunca tinha ido ao cinema no shopping. Até que um dia, me animei...mas o melhor mesmo foi passar a tarde com meu compadre explorando a memória do marco da primeira légua de Belém.

domingo, 16 de janeiro de 2022

crônica da semana- a primeira noite

 A primeira noite de um homem

Eu estava no terraço do Manoel Pinto e, lá de cima, Belém era toda minha. Amei intensamente a cidade naquela noite.

Cabelos longos de cabocla franjando o esguio corpo no leito da Alcindo Cacela (sedutor horizonte de fuga da Pedreira) era Belém naquela noite nazarena. O largo do arraial era o beijo doce e prolongado nos escurinhos (de canto com o corredor de mangueiras). Era minha iniciação, a minha entrega aos caprichos e carinhos, aos zelos sazonais, aos ritmos de dança e contemplação. Era também a anunciação de um embrenhar-me sem regras entre canais e vielas, trilhas e varadouros com o reggae reinando na ladeira acanhada e despintada da passagem Secundino, nem primeira, nem alegre, nem triste. Poeta.

O transe no rodopio do carrossel, o algodão doce melando de melado minha alma, as bonecas de olhos de plástico descolando (misto de terror e esquisitice, na primeira noite). O largo era uma fatia destacada do bolo multigeográfico e sentimental. Belém. A Santa de olho no delírio ponta-cabeça que o Tira-prosa ensejava. Pronta para acudir o ser delirante que eu era. Alguém baldeou de lá a cá, certa vez, uma gosma translúcida e viscosa, mas não foi nesta minha primeira vez. Soube depois. Boatos maldosos do arraial, talvez? O Tira-prosa mudou de nome.

Minha primeira vez rapazinho autônomo. Sem mãos dadas com mamãe. Desafiando a paciência do cobrador do coletivo no mergulho acrobático por debaixo da borboleta, e um tilintar de agrado na mesinha coletora das passagens. Ousado. Mão no bolso, mão pro céu, caminhar entre as gentes, mãos erguidas pedindo bença pras torres da Basílica. Mãos segurando firmes no lombo do elefante orelhudo que me domava inocente rodando zonzo no carrossel.

Eu vestia calça comprida, na minha primeira noite, porque mamãe disse que já era a hora de andar sozinho e deixar o short só pras coisas vulgares. Tinha uns cruzeiros novos e as moedas do cobrador. Ainda passei pelo trabalho da mamãe. Ela me atendeu com um pastel folheado e um Guarasuco. Anotou tudo no caderninho de ‘em a ver’ que guardada na gaveta e que registrava os débitos que ela fazia na casa pois, ora pois-pois, o português dono da padaria não dava ponto sem nó. Minha camisa tinha a gola esticada, o que me fazia ficar penso para um lado. Pode ser que não, que não influenciasse meu centro de massa, mas eu me sentia assim, penso por causa daquele balãozinho que a gola dava pro lado. E foi assim, flutuando lateralmente, inebriado pela minha primeira noite que perdi a pureza acreana, o medo menino, o encabulamento suburbano, a lembrança intimidadora dos alagados da minha rua onde eu catava pedrinhas redondas e matinhos que faziam menção de pequenas flechas, aquelas que me supriam de máximo poder quando eu era índio e porfiava de camonhabói com os moleques da minha patota. Caminhava para um encontro definitivo, sem retorno, com uma paixão de vida toda.

Depois de dar uma volta no carrossel em cima daquele elefante dócil e orelhudo, e de me ver alucinado me breando com um palitão de algodão doce, não sei como fui parar no Manoel Pinto. Subi ao terraço como se não houvesse amanhã. Todas as portas se afastaram lascivas para o lado e o homenzinho venceu o desafio de 26 andares de escada. Pendido à gola da camisa. Todo composto na calça comprida. Desencabulado. A primeira noite. Mais um lance de escada, o terraço. E, lá de cima, Belém era toda minha.

 

sábado, 8 de janeiro de 2022

crônica da semana- as flores de plástico

 As flores de plástico não morrem

No dia 31 do ano me deu uma aperreação, dessas que dá no fim do ano quando a gente se vê ilhado, longe do mundo afetivo, dos queridos de coração, da tia estimada.

Combinei com a família. Faríamos uma surpresa na batida da campa. Sem muito contato, coisa de porta, por causa dos protocolos ainda necessários de proteção à pandemia. Só pra ver a tia de longe e deixar uma lembrancinha. Foi dia de folga, e dia de folga pra mim, é dia de caminhar, fazer a aeróbica. Acertei com minha patota que conjugaríamos as missões. Faríamos a caminhada, a visita surpresa. E nos adiantamos daqui da Pedreira pelos traçados oblíquos do Acampamento, até varar no Telégrafo. Ocorre que... choveu aquela nevinha de Natal com um atrasozinho de uma semana.

Ouvi do hio ao chio, do alfa ao ômega, por causa dessa minha arrumação de sair zanzando pelo canal do Galo plena solidão do final de ano com ruas desertas e água no cocuruto. Não dei nem as horas para as reclamações, embora, justas fossem. Tinha um quê de infância naquela caminhada. Reinava um Alfredo dalcidiandozinho dentro de mim naquela aventura. Mugia a vacaria na esquina da Timbó, fugia um reguinho do olho d’água dos lateritos, silencioso afluindo ao Galo pelas entranhas da Vileta, varriam as vassouras na Alvorada, lá em cima na Vila Isabel com Rosa Moreira.

Minha tia faz parte daquela legião de mães heroínas, que cuidam dos seus e dos outros. Houve de me acolher, me cuidar, me prover com um bico de pão todos os dias para a merenda da escola e o da passagem no Nova-Marambaia-Telégrafo também. Como? Me digam, como uma chuvinha doce, as ruas desertas, a direção incerta nos eixos do Acampamento me impediriam de fazer um mimo, mostrar meu afeto, meu carinho por minha tia? Mas quando, já!

A lembrancinha que escolhemos foi um pequeno vaso de flores. Houve uma trava operacional pra atravessar a Pedreira toda com um vaso na mão. Preciso de todos os componentes mecânicos funcionando na minha caminhada, tenho que mobilizar o sistema cardiovascular, ativar a respiração, usar as bombas de irrigação presentes na dinâmica corporal. Não podia ficar com os braços ocupados carregando o vaso. Veio a idéia de acomodá-lo às costas numa mochila. Beleza. Estava livre para metabolizar o O2.

Ocorre que aquela mochila nas costas animou a lembrança das flores de plástico. E era desse jeitinho mesmo.

Mamãe lutou muito para nos sustentar. E a atividade que me vem como a mais antiga e provedora de nossa subsistência era a confecção de flores de plástico. Eu mesmo fui várias vezes à Lobrás, à Grisólia comprar as peças. Prontas, a venda também era comigo. Mamãe levava fé. Era produto bom, afinal, as flores de plástico não morrem. Incentivava. Me deixava na entrada da vila com a recomendação de que eu expusesse as flores, fizesse um arranjo por fora da sacola para que todos vissem. Era dobrar a esquina e eu empurrava tudo pra dentro. Morria de vergonha de ser vendedor de rua. Mas tinha que vender. Optei por bater de porta em porta. Oferecia batonzinho da Avon, Cristian Gray, perfumes e flores de plástico. Mamãe sabia que eu escondia as flores. Uma vez, logo na saída da vila, um homem me parou e comprou tudo. Pra quê, ela viu e cravou: ‘não te disse, tem que mostrar’.

Na caminhada até a casa da tia, neste fim de ano, pus as flores na mochila e fechei o zíper. Ninguém sabia que eu carregava flores ali. A aeróbica esteve on. Mas olha, reinei em bater de porta em porta pelos traçados do Acampamento.

sábado, 1 de janeiro de 2022

crônica da semana - primeira dose

 A primeira dose a gente não esquece

Ao voltar pra casa, depois da vacina, senti como aquela frase era forte e verdadeira em mim...

Uma chuvinha fina molhava a manhã. Antes, uns dois ou três dias, estava bem dedilhando palavras soltas no computador quando fui informado pela família que a data da minha primeira dose estava assegurada. Entraria na lista de pessoas com comorbidades. Catei meus laudos e me arrumei naquela manhã. Seria a primeira vacina da família. Este detalhe me entristecia. Boa parte dos países do top do Brasil já estava vacinando desde dezembro. Aqui, a negação, o boicote, o sadismo, os subterrâneos de negociações suspeitas retardavam a aplicação das primeiras doses. Em maio a campanha caminhava a passos curtos (como hoje, já na biqueira de outro ano, ainda é um custo chegar a 70% da população com as duas doses)...

Tornei às duras batalhas que enfrentei na época de militância sindical: abraçava as causas com toda força que eu tinha. Quando me encontrava com a categoria, sem romantismos ou determinismos, procurava envolver os trabalhadores no fervor que tomava conta de nós em horas de difíceis decisões. Nunca levava o sentimento de derrota prévio, mesmo diante de cenários desfavoráveis. Para nos animar coletivamente, as vezes que eu pegava o microfone, fazia questão de recitar uma frase de incentivo. Potente. Destemida. Moldada à metáfora, mas reveladora: “Vamos cair. Vamos morrer. Mas antes de morrer, nós vamos viver!” Esta frase esteve na base de todas as lutas que realizamos na caminhada por direitos e dignidade no trabalho...

...Desde o início da pandemia, foi uma das poucas vezes que saí de casa. Minha filha me acompanhou. Mais nervosa e emocionada que eu. Parecia mesmo que eu era uma pessoa frágil, moribunda, que exigia cuidados refinados ao sair de casa. Na real, era assim mesmo que eu me sentia. Sem a vacina, parecia que, por uma débil lufada de ar, seria abatido. Ao mínimo descuido com os protocolos, deixaria o coração e um bocado de coronárias obstruídas ao alcance do vírus.

Naquele 6 de maio, sob o céu nublado, uma aglomeração doce, uma ansiedade molhada, e minha filha cheia de cuidados, eu, que caindo estava, levantei. Veio a agulhada tão desejada. Consegui fazer uma saudação ao SUS, aos profissionais da saúde e nada mais agüentei falar. Caí no choro. No silêncio da minha emoção, de dentro das minhas mais otimistas memórias me veio a frase de luta, de resistência. Antes, antes da negação, da intolerância, dos ataques vis, do deboche que o sofrimento de muitos inspirou em uma malta infame que destrói o país; tive certeza que dali, daquela agulhada em diante, iria viver, antes de morrer. Voltaria ao front. Me ofereceria ao combate com todas as minhas forças. Igual aos tempos de dirigente sindical, a frase que me animava e dava sustância aos meus companheiros, ressurgia energizada.

A primeira dose, para mim, significou esperança. Em verdade foi vitória da humanidade sobre um inimigo de muitas faces. Recebi minha carteirinha e considerei ser possível voltar ao trabalho, cantar Chico Buarque com Mateus Benassuly; Beatles com Susi e Válber. Visitar meu compadrezito e comer aquela tapioca maravilhosa no café da manhã. Almoçar com a Lu, no mercado Bolonha, zanzar pelo Ver-o-Peso nas tardes de sábado, passar o fim de semana com meu filhinho na Nova Belém (respeitando os protocolos, obviamente).

Salve 6 de maio! Viva o SUS. Viva a ciência. Formemos no front, e que venha o ano novo. Sim, vamos viver!