sábado, 22 de janeiro de 2022

crônica da semana - no limite

 No limite

O poeta é nativo do marco da Primeira légua. Tem registros afetivos bem definidos por aquelas bandas. Eu que não sou besta nem nada, aproveitei para tirar dúvidas atávicas. Perguntei a ele se era justificado o temor de mamãe em não me deixar freqüentar as cacimbas alegando que o lugar era domínio da Matinta e dos encantados. Ele disse, ora se não! Morava pras bandas da Senador e de lá saía um caminho beirando a mata que chegava às cacimbas. A molecada se divertia nadando por lá, mas só até o guariba cantar. Antes de escurecer tinham que ir pra casa e em desabalada carreira pela pista da Dr. Freitas, com os cabelos ‘arrupiando’ de medo.

Aconteceu, no final do ano passado d’eu ir pela primeira vez na vida a uma sessão de cinema em shopping. Programação que não esteve em momento algum na minha pauta. Não por nada, é que, o que me apraz ainda são as salas tradicionais. As exibições da Estação, as sessões no Líbero ou no Olympia garantiam um quê de naturalidade e tradição aos meus programas de cinema. Recebi um convite do meu compadre, o poeta José Miguel Alves, e me animei.

Por causa dos cuidados com a pandemia, ele veio me pegar de carro, cedo em casa, o que resultou em um breve passeio aqui pelos limites da primeira légua patrimonial de Belém, marco que para nós quer dizer espaços freqüentados na infância e adolescência. Fomos ver “Marighela”. Apreciei o filme, fiz comparações incabíveis com o extraordinário livro do Mário Magalhães, mas, depois, desarmado da crítica expletiva, até verti lágrimas subversivas na cena final ao atestar que o hino nacional freqüentara grupos sociais outros, motivados por teorias revolucionárias, e bem diferentes destes do momento, movidos pela rasa filosofia do zap.

O melhor da aventura, no entanto, foi passar a tarde toda explorando a interseção Pedreira-Sacramenta com Miguel.

Dei providência e levei o poeta para ver aquela água que escorre constantemente, de dezembro a dezembro, ali no canto da Duque. Aleguei a possibilidade de ser o afloramento de algum curso d’água subterrâneo que há por ali. Meu compadre José, de conhecimento, salientou que antes, nos fundos do Lauro Sodré havia uma grande área alagada e que se dividia em alguns canais de pequenos igarapés no sentido da Pedreira. Com os aterros e a urbanização, pode ser, pode ser sim, este rego constante, a água procurando caminho até fluir pelo meio-fio da Duque.

Quando chegamos à Senador, rolou a emoção. Comentei que minha mãe tinha uma conhecida que morava naquele trecho de fronteira com a mata e que a tínhamos como vó Ana da Sacramenta. Criava muitos gatos, era velhinha, solitária e era atormentada pela aeronáutica que, foi-não-foi, a ameaçava de despejo daquele pedacinho de terra em que vivia. Era a última rua e Miguel a identificou como o traçado que define a praça Dorothy Stang atualmente. Ali, na esquina, José localizou uma mangueira que afirma ser a mesma em que ele catava manga antes de formar a grade no campinho que se espremia entre casinhas humildes ali perto. Recordou a luta do pai, a energia de minha mãe, provedores de nossas numerosas famílias, usinas dos bons ventos que nos trouxeram até aqui a esta encruzilhada de caminhos e tempos limitados, onde um deles nos leva a um programa jamais experimentado.

Nunca tinha ido ao cinema no shopping. Até que um dia, me animei...mas o melhor mesmo foi passar a tarde com meu compadre explorando a memória do marco da primeira légua de Belém.

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