sábado, 8 de janeiro de 2022

crônica da semana- as flores de plástico

 As flores de plástico não morrem

No dia 31 do ano me deu uma aperreação, dessas que dá no fim do ano quando a gente se vê ilhado, longe do mundo afetivo, dos queridos de coração, da tia estimada.

Combinei com a família. Faríamos uma surpresa na batida da campa. Sem muito contato, coisa de porta, por causa dos protocolos ainda necessários de proteção à pandemia. Só pra ver a tia de longe e deixar uma lembrancinha. Foi dia de folga, e dia de folga pra mim, é dia de caminhar, fazer a aeróbica. Acertei com minha patota que conjugaríamos as missões. Faríamos a caminhada, a visita surpresa. E nos adiantamos daqui da Pedreira pelos traçados oblíquos do Acampamento, até varar no Telégrafo. Ocorre que... choveu aquela nevinha de Natal com um atrasozinho de uma semana.

Ouvi do hio ao chio, do alfa ao ômega, por causa dessa minha arrumação de sair zanzando pelo canal do Galo plena solidão do final de ano com ruas desertas e água no cocuruto. Não dei nem as horas para as reclamações, embora, justas fossem. Tinha um quê de infância naquela caminhada. Reinava um Alfredo dalcidiandozinho dentro de mim naquela aventura. Mugia a vacaria na esquina da Timbó, fugia um reguinho do olho d’água dos lateritos, silencioso afluindo ao Galo pelas entranhas da Vileta, varriam as vassouras na Alvorada, lá em cima na Vila Isabel com Rosa Moreira.

Minha tia faz parte daquela legião de mães heroínas, que cuidam dos seus e dos outros. Houve de me acolher, me cuidar, me prover com um bico de pão todos os dias para a merenda da escola e o da passagem no Nova-Marambaia-Telégrafo também. Como? Me digam, como uma chuvinha doce, as ruas desertas, a direção incerta nos eixos do Acampamento me impediriam de fazer um mimo, mostrar meu afeto, meu carinho por minha tia? Mas quando, já!

A lembrancinha que escolhemos foi um pequeno vaso de flores. Houve uma trava operacional pra atravessar a Pedreira toda com um vaso na mão. Preciso de todos os componentes mecânicos funcionando na minha caminhada, tenho que mobilizar o sistema cardiovascular, ativar a respiração, usar as bombas de irrigação presentes na dinâmica corporal. Não podia ficar com os braços ocupados carregando o vaso. Veio a idéia de acomodá-lo às costas numa mochila. Beleza. Estava livre para metabolizar o O2.

Ocorre que aquela mochila nas costas animou a lembrança das flores de plástico. E era desse jeitinho mesmo.

Mamãe lutou muito para nos sustentar. E a atividade que me vem como a mais antiga e provedora de nossa subsistência era a confecção de flores de plástico. Eu mesmo fui várias vezes à Lobrás, à Grisólia comprar as peças. Prontas, a venda também era comigo. Mamãe levava fé. Era produto bom, afinal, as flores de plástico não morrem. Incentivava. Me deixava na entrada da vila com a recomendação de que eu expusesse as flores, fizesse um arranjo por fora da sacola para que todos vissem. Era dobrar a esquina e eu empurrava tudo pra dentro. Morria de vergonha de ser vendedor de rua. Mas tinha que vender. Optei por bater de porta em porta. Oferecia batonzinho da Avon, Cristian Gray, perfumes e flores de plástico. Mamãe sabia que eu escondia as flores. Uma vez, logo na saída da vila, um homem me parou e comprou tudo. Pra quê, ela viu e cravou: ‘não te disse, tem que mostrar’.

Na caminhada até a casa da tia, neste fim de ano, pus as flores na mochila e fechei o zíper. Ninguém sabia que eu carregava flores ali. A aeróbica esteve on. Mas olha, reinei em bater de porta em porta pelos traçados do Acampamento.

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