terça-feira, 30 de julho de 2013

crônica remix- vamos a la plaia II

VAMOS A LA PLAIA (PARTE II)

O dia chega com aquele friozinho de bater o queixo. Uma neblina alvinha desce sobre a vegetação silenciosa, à beira da estrada. E lá se vem ele, o ônibus do piquenique, varando a brisa matinal de Atalaia. Um olhar alerta, atento às belezuras da natureza, desejoso das benesses do Atlântico, espreita. Uma voz excitada, explode num antegozo:
_ Chegaaamuuus!
É rápido que se instala o caos dentro do ônibus. O despertar é imediato. E cada um trata de dar um jeito de se aprontar para um dia de praia. Os mais práticos improvisam um biombo, lá na cozinha, onde as damas podem vestir-se com os seus duas-peças prafrentex. O tráfego no corredor do ônibus é intenso, e quem estava sentado sobre as latas dos pastéis tem que levantar ou arredar um tiquinho. Menino, então, é quem mais se mexe. Eita, coisa que rende, é menino! Fuçam de uma ponta a outra e no meio do caminho, embrenham-se numa acirrada luta pela posse da cadeirinha do cobrador.
Hum, hum! Já dá pra sentir o cheirinho do mar. O motorista manobra, estuda o ambiente e consegue uma sombra pai d’ égua pra estacionar. O organizador dá o bê-a-bá sobre o passeio e mais de uma vez, alerta para o horário de retorno...E liberou geral!
Os meninos são os pri. Descem em desabalada e ganham a areia em direção a água. “Segura na não de Fulana”, esgoela-se a mãe, arrastando-se pela fofura do solo, numa luta desigual entre as havaianas e a areia abundante. “Menino, pega na mão de Sicrana, se não...”, ameaça a outra, equilibrando-se com um guarda sol, uma frasqueira e uma panela de arroz. Mas nem adianta gastar saliva com a petizada. Elas já deram o primeiro mergulho e se danam a chapinhar na água rasa, soltar perdigotos salgadinhos, virar carambela na areia e a correr atrás do tralhoto, o peixe que risca a água “em pezinho, eraste!”.
É, mas o deus Netuno não está lá muito católico com os nossos veranistas. “Tá enchendo?” “Olha, cuidado que, aqui, a maré enche pela beirada”. “Tá enchendo?” Não, não tá enchendo. A maré tá na vazante e é melhor aproveitar logo, enquanto a água tá bem ali. Daqui a pouco as ondas vão bater recatadas e silenciosa lá longe, na baixamar.
Depois do mergulho, as pessoas vão peruar lá pras bandas do lago da Coca-cola, posar no alto das dunas, para as fotos, e catar conchinhas de pedra, nos lajeiros expostos. Os mais novos, lançam olhares pidões àquelas vizinhas mocinhas, que na rua, não dão papo pra ninguém. E lá pelo meio-dia, quando vão ao ‘mergulho pra almoçar’, a água já se escondeu lá atrás do estirãozão de areia úmida.
Depois do almoço, aquela morrinha. O Cortezano esquenta as orelhas e derruba uns quantos nas redes atadas aos pés de pau. Os meninos, ufa! Pirilampam, agora, à sombra. E né que os rapazinhos são correspondidos nos olhares e , de mãos dadas com as vizinhas metidas, arvoram-se num passeio até lá no fim, e ... ah, não! Não é que vai chover! Os deuses não estão mesmo muito aquele com nossos banhistas, e aquela nuvem pesadona desaba acabando com o namoro dos pequenos e com a graça do passeio.
Sob a chuva torrencial (ah, os deuses!), o organizador comanda a retirada. “Falta alguém, falta alguém?” E lá vem quem estava faltando, varando sob o pampeiro . O rosto vermelho, parecendo um tomatão. A barba, os pelos do peito e da barriga avantajada, tudo afarinhado, algo como a sucursal de um pirex de farofa; um dedo de cortezano, diluído num mundo de água da chuva, num copo de alumínio com os dizeres “ao querido papai”. “vumbora, homem, te avia, que o ônibus tá saindo”.
Ao grupo, juntam-se uns caronas, “até ali, na curva da castanheira”. Vão em pé. Os rapazinhos aninham-se no colo das vizinhas bronzeadas, que esquecerão deles tão logo cheguem nesta dita curva da castanheira. Os mais espaçosos se esticam nos bancos, desalojando companheiros de viagem, que têm que se atar pelo corredor (“depois a gente troca”). O organizador dá um ‘suspiro de alívio’, o motorista dá a partida deixando para trás os chuviscos cintilantes sobre a maravilhosa Salinas. Os meninos, incansáveis, digladiam-se pelo direito de sentar-se na cadeirinha do cobrador. E simbora pra casa. Antes de chegar em Belém, uma paradinha no Apeú, pra tirar o sal.


sexta-feira, 26 de julho de 2013

crônica da seman - espinha de peixe

A espinha de peixe e a saudade
“Férias, tempo de ir com a família passear. Quando menina, ia para o interior, visitar os parentes, e me maravilhava à beira dos igarapés.
Os moleques saltavam de árvores altíssimas, dando cambalhotas no ar e caindo de cabeça nas profundezas da água escura, embriagando os olhos dos visitantes com tamanha coragem. Os tios levavam o peixe e davam o jeito de assá-lo aonde não tinha churrasqueira ou coisa parecida. Catavam os galhos secos para fazer o foguinho. Tudo muito simples e improvisado, mas o que não faltava era divertimento e um quê de aventura no ar. O rango era enriquecido com farinha, da baguda, e o almoço era servido.
Aquilo era minha visão de paraíso. Outro dia, essas lembranças invadiram minha mente devido a um ‘banquete’ parecido que mamãe fez em casa, mas não foi tão perfeito. Quando criança ela catava a espinha, e deixava tudo bem assim, no miudinho pra não acontecer nenhum acidente, pra não ter nada engatado na goela. Agora, eu que não me avie às delícias que guardam espinhas traiçoeiras pra ver. Só que nem adianta. A atenção é pouca. Acabei com uma espinha atravessada, lá na garganta. Os olhos já estavam lacrimejando de agonia quando clamei por um copo d'água bem cheio, mas não teve jeito. A infeliz continuou onde estava, sem me deixar respirar, e eu não sabia para qual santo rezar.
O bom de vir do interior é que lá se aprendem certas "marmotas" que a gente aqui da cidade, não faz nem idéia que existam. A angústia já desfilava assustadoramente pelo meu rosto quando recebi um conselho meio inusitado "Come farinha. Bastante. Que ela vai descer". Mas como? E se ficar com mais comida acumulada na grugumim? “É agora que morro”, pensei, mas estando com corpinho estranhinho encalacrado na garganta e a aflição tomando conta do meu espírito, mandei um punhado da baguda pra dentro. O caso é que não deu certo, permaneci com aquela sensação irritante de "vou morrer agora" por algum tempo, até que os movimentos peristálticos domassem aquela pilantra e a levassem para o estômago.
Refletindo sobre o caso passado, não deixei de perceber uma acentuada semelhança nos eventos (depois é claro, de lembrar da minha querida infância vivida à beiro dos rios e igarapés). 
Tal qual a espinha perigosa, a saudade quando é da braba, para no mesmo lugar. E para essa, não tem movimento peristáltico que dê jeito, que alivie a agonia, que elimine a tortura. Não tem punhado de farinha que amaine o desespero. São as piores sensações para se ter ali, bem por onde a comida passa, bem por onde o ar entra nos pulmões, bem por onde o sangue é bombeado para o resto do corpo. A saudade toma para si todo esse espaço e ainda chega no cocuruto, é parasita quase indomável, a sacana. O efeito é como aquele de se embalar de cabeça pra baixo na rede, como dizia minha avó, "o sangue desce todo para a cabeça".
Não gosto dessa conversa de saudade boa, Saudade é engavetamento em vias principais. Atrapalha o tráfego e dá uma dor de cabeça danada. Atinge todo o ser. O antídoto não é dos mais rápidos, mas o único disponível desde que eu me entendo por gente é o tempo. E olha que é do tipo efervescente. Com o tempo fazendo efeito essa dor latente vai se esvaindo. A fonte seca sem pressa, contando gota-a-gota. O tempo age parece bicho da seda tecendo. As palpitações acalmam-se, os sistemas digestivo e respiratório voltam a funcionar normalmente. E a gente se liberta daquele sufocamento. O tempo, tudo apazigua e afaga.”
Ainda de férias e contando com o auxílio luxuoso de Carol Brito. Sábado volto com mais de mil.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

crônica remix - vamos a la playa

VAMOS A LA PRAIA (PARTE I)


Duvido que histórias como esta aconteçam agora. Hoje em dia o acesso às praias é muito mais fácil. Há suporte confiável de alimentação e estadia a preços até em conta nos balneários, mil e uma ofertas de transporte e trios para divertir a galera. Mas naquele tempo, ah, naquele tempo, recorríamos ao piquenique:
Não era qualquer pessoa que bancava o passeio. Tinha que ser animado e obstinado para a promoção. Na nossa rua, havia sempre um desses dado ao negócio da diversão, e bem antes da data do passeio ele já tinha o apurado, com a venda dos cartões. O suficiente para fechar com a empresa de ônibus que fazia o frete.
A maioria dos integrantes do passeio era ali da rua mesmo, mas havia aqueles que vinham de longe, convidados pelo amigo do amigo e já chegavam com o cartãozinho (já pago) em punho. Na verdade, quem garantia o apurado mesmo era esse povo convidado. Recebiam o cartão do passeio e eram estimulados a participar mediante o pagamento em breve tempo. O povo da rua ficava sempre para a última hora ou em haver, com a grana.
Na véspera da viagem, a concentração era na casa do organizador. Ninguém dormia, ansiosos por embarcar para os verdes mares do litoral. Salinas era o destino preferido, seguido de perto por Marudá. Percorríamos tamanha distância em busca do prazer de águas salgadas, mesmo porque, Mosqueiro, aqui pertinho e com o atrativo de usufruirmos do charme do Getúlio Vargas, não nos oferecia esta qualidade. A distância implicava na saída bem cedinho de Belém. Um bingo, para passar o tempo, a um Cabral a rodada; os pastéis a fritar na banha quente e a encher as latas enfileiradas (serão vendidos pelo organizador, ele tem o monopólio das vendas, e a bem da verdade, pelo esforço, tem esse direito); as pessoas chegando com sacolas e frasqueiras acondicionando o frango assado e a farofa de miúdo. Os ‘fanchões’ apareciam orgulhosos, exibindo seus ‘inguinadores’ coloridos e o cerol infalível, puro aço-do-pico de cor lilás. A molecada, espertíssima àquela hora da noite, fazendo firulas com suas curiquetas tecidas em papel de pão e alçadas ao vento pela leveza da linha Corrente Laranja. Uma tubadora aqui, um pandeiro ali, de par com uma lata de óleo Paturi travestida de tamborim e uma lata de Skol, dali em diante, requisitadíssima como ganzá, e o samba de Xavante animando o pessoal da calçada.
E dá meia-noite, e arruma mais feijão para marcar o bingo, que chegou mais gente. E tome pastel a abarrotar as latas. E passa da uma e “ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, está chegando a hora”. E já estamos a mais de três e meia e este ônibus que não chega! E lá o organizador se danava atrás de um telefone público (que ali na Pedreira de dantes, só no Carisma, no Pisco e no bar Pedra Noventa), ligar para a garagem. E a resposta vem alentadora: o ônibus está a caminho. Últimas providências. O organizador vai às prestações de contas. Faz a lista e confere os cartões. Quem falta pagar (que a gente já sabe quem é), jura de pé junto que amanhã, como sem falta. Mas este tanto já faz parte do lucro do organizador e ele libera na certeza que vizinho que tem com que me pague, não me deve nada. E daqui em diante, tudo é festa, que o ônibus já chegou.

E na madrugada distante daquele julho, o ônibus ganhava a BR. As crianças ainda iriam para baixo do banco a cada passada por um posto da Polícia Rodoviária. Os pastéis sairiam logo em Castanhal, acompanhando um café simples. No meio do caminho, uma ou outra parada para aqueles que estavam apertados e precisavam ver o ‘Miguel’. No mais, um sono pra sonhar com o brilho infinito das areias de Atalaia.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

crônica da semana- cadeira de

Cadeira de balanço
Ela é aluna do curso de Geofísica na UFPA. Topei com ela, há coisa de um ano, no show do Beatles Forever. Estava junto com meus amigos da Geologia. Depois, sob a égide da poesia, fomos nos encontrando, nos tornando mais próximos, amalgamados pelas palavras. É dessas jovens estudantes que se batem com os cálculos da Física e perdem noites tentando decifrar os mistérios magnéticos da Terra. Mas é, também, sem resistência alguma, atraída pelas linhas de forças das rimas. Ainda bem, porque nos brinda com pérolas da sua lavra. Faz versos. Tem um blog (que já conta, inclusive, com mais de 5.000 acessos. Dá uma espiada lá http://prosasoltaversolivre.blogspot.com.br/) e traduz, na sua escrita, o olhar curioso em emblemas, símbolos, dizeres e sentimentos sobre as nossas angústias mais cotidianas ou sobre os nossos prazeres fugazes (ainda sobre o olhar, acrescento outro talento: quando tem uma máquina fotográfica, até dessas de celular mesmo, na mão, faz umas fotos perturbadoras). Como estou de férias aqui em Algodoal, pedi emprestado pr’ela um texto em prosa para aquilatar a coluna. Senhoras e senhores, Caroline Porto Brito:
“Ainda não havia entendido por que os homens perdem a sanidade por algumas mulheres. Alugam garçons em bares, contam sobre separações e abandonos. Tentam afogar lembranças (despudoradas e insensatas) da amada nos copos de cachaça...
Chegava da escola pontualmente à meia hora, e naquele dia, quando a vi trancar o portão da casa em frente, sabia: era vizinha nova. Desceu a rua no rumo da parada de ônibus, apressada. Trajando um vestidinho amarelo canário, uma sandália de dedo. Sua bolsa era tiracolo, e nos braços cadernos junto ao corpo. Não notou seu admirador, parado bobamente do outro lado da rua. Então, ali estava a causa. A explicação para a perdição destinada ao menino que ainda colecionava figurinhas (foram cinco minutos arrebatadores).
Caminhava rápido, como quem está atrasada para algo importante, e ainda assim, possuía uma leveza de bailarina. Os cabelos cacheados e propositadamente bagunçados enraizavam a herança pura de povo sofredor. O decote quadrado, tão contido quanto a expressão em seu rosto revelava apenas os seios firmes de menina-moça, o vestido meio rodado e de pano fino, moldava o corpo curvilíneo daquela que afloraria meu gostar. Hoje velho e nostálgico, homem viúvo vivendo na casa do filho, não encontro motivos para ela ter me namorado alguns meses depois... 
Não durou muito a reciprocidade do gostar. No ano que se seguiu teve que voltar para Bragança, morar com a mãe que caiu de cama muito adoentada. Seu suspiro de boneca de pano rasgada selou o dia da partida, nos fizemos em choradeiras, em promessas de amor eterno, que claro, não cumprimos. 

Não entendo por que a visito todos os dias em meus pensamentos, (me sinto até culpado, de fato, por não pensar na mulher- a outra- com quem dividi anos de minha vida) e a memória já enfraquecida não conserva mais imagens de cada segundo ao lado dela, a idade faz jus à fama. Sobraram-me alguns instantes, literalmente, são segundos que aparecem manchados, como fotos antigas que acabaram ficando amareladas e eivadas. O som da voz tornou-se agora estalidos de beijos quase esquecidos. Mas a primeira vez que a vi... Ah! isso não esqueço, foram cinco minutos de felicidade instantânea. Não foi paixão à primeira vista, não. Esse negócio não existe. Foi feitiço característico daquela que com certeza era descendente de Iara. E, despudoradamente, insensatamente, penso nela, todo dia, à tardinha, quando sento na minha cadeira de balanço.”

quarta-feira, 17 de julho de 2013

Crônica remix- Domingos

Domingos Assmar
Eu gostava muito de ouvir minha mãe falar da viagem que fizemos, de navio, do Acre até Belém. Ela falava com um certo orgulho, com uma exatidão acalorada e até com uma incontida emoção sobre aqueles  dias em que  deslizamos suave sobre o leito fúlgido do Amazonas, abrigados nas comodidades e confortos do navio Domingos Assmar.
O nome do navio nunca saiu da minha cabeça. Aqui e ali, quando me pego em uma prosa sobre a diáspora desta pequena fatia dos sodreres acreanos, encontro o nome Domingos Assmar na memória.
Por aqueles dias eu era um bebê batendo em retirada de um sonho ocidental. Tudo para mim, na viagem, era muito extravagante, extraordinário. Para quem tinha acompanhado a irmã caçula, um anjinho que não suportou as dores do mundo, ser acomodada numa caixa de sapatos e ser enterrada ao pé de uma seringueira, aquele mundo de luzes piscando lá embaixo, na cidade de Rio Branco, sim, aquilo sim é que era uma grande fantasia, um iluminado absurdo. A cidade era uma pretensão luxuriante, um irresistível desafio.
No pernoite na capital do Acre, mamãe nos alertava que se não nos comportássemos, não íamos ver televisão, quando chegássemos a Belém. Um ralho atemporal, futurista para quem sequer sabia o que vinha a ser televisão. Para quem a planura do mundo se alastrava sem fim pelas ondas curtas e certeiras do rádio. Nada mais que isso.
Não mais que pequenas sensações, raras sonoridades embarcaram comigo no porto de Rio Branco e se esconderam inertes num acanhado camarote do Domingos Assmar, por aqueles dias.
Foi uma viagem longa. Quando a gente é criança, nos subordinamos a uma escala distorcida de tempo e espaço: o tampo de uma mesa é inalcançável, o nosso pai é um grandalhão, passamos dois por uma mesma porta. Um dia parece dois. Um rio, mar. E eu achei, durante algum tempo, que aquela viagem havia demorado uns oito, nove meses, um ano...
Mas a gente vai crescendo (no meu caso até o limite de metro e meio, observo). As dimensões vão se ajustando e a gente já bate aqui, ó, além do ombro do pai, e percebe que o pai nem é tão alto assim. Dias e noites são bem mais definidos e as coisas passam a estar ao alcance das mãos (nem todas, constatamos indignados. Nem todas). E agora acho que aquela viagem nem durou tanto tempo assim, ainda mais de descida...
Quando vencemos as águas afoitas da baía do Marajó (ego incivilizado do rio Acre) e irrompemos sobre Belém, a batuta da minha mãe elevava-se insistentemente, agressivamente, ameaçadoramente a reger repetidas vezes a regra ‘se não se comportarem, não vão ver televisão’.
Deixamos o Domingos Assmar para trás. Pegamos um táxi Aero-Willis (outra coisa diferente de rádio) e fomos dar na Pedreira com malas e bagagens.
Naquela casa da Marquês de Herval, conheci aquela caixa encantada chamada televisão e, sabe, nem fiz tanta questão de ser um menino comportado. Preferi os quintais tomados de camapu.
Domingos Assmar foi o patriarca de uma família de imigrantes sírio-libaneses que se instalou no Acre e fez fortuna nos tempos áureos da borracha. Fundou a poderosa Casa Irmãos Assmar em Rio Branco, especializada nos ditos ‘aviamentos em geral’ e acumulou um imenso patrimônio.
Não sei se o navio era de propriedade da família...Tudo indica, tudo indica, né? O dinheiro da borracha comprava muita coisa.
Nesta minha batidinha diária entre Barcarena e Belém, tenho visto o velho e carcomido navio Domingos Assmar fundeado no porto do Arapari. Deteriorado, gasto pelo tempo. Abandonado na sua quietude.

Comportado...Comportado. Ouvindo sonhos. Nada mais que isso.

segunda-feira, 15 de julho de 2013

crônica remix- gerundismos

Gerundismos, infinitivismos e aporrinhações
- Bom dia, Bárbara, em que posso estar ajudando?
- Bom dia, eu quero trocar de plano.
- Temos que estar confirmando seus dados: nome completo, endereço...
- Vai lá: Raimundo Nonato...
- Pode dizer o motivo que está levando o senhor a estar querendo trocar de plano?
- (De prima, fui gentil. Disse que era coisinha pouca, pra ver se o troço andava).Tô a fim de trocar de aparelho e ...
- Temos um departamento para casos de troca. Aguarde um instante que eu vou estar transferindo o senhor...
- (Silêncio). (Silêncio).
Espera... Espera... Alguém, enfim, desencanta.
- Bom dia, Cláudia, posso estar ajudando em algo?
- Cláudia, quero estar trocando de plano.
- Senhor, Para continuar o atendimento, vou estar precisando confirmar seus dados...
- Raimundo Nonato...
- Senhor, para estar efetuando a troca de plano eu vou precisar estar transferindo o senhor para a PA de movimentação. Aguarde.
- ?
Demora um século para que uma aplicada voz masculina se habilite:
- Boa tarde, Emerson, em que posso estar ajudando?
- Olha, meu filho, eu já falei com a Cláudia. Quero trocar de plano.
- Senhor, para continuar...vou precisar estar conferindo alguns dados...
- Mas eu já falei tudo isso para a Cláudia...
- Sinto muito, senhor, mas é o procedimento...
- Vai lá: Raaaaaaaiiiiimuuuundo Nooooonaaaato...
- O senhor pode estar nos dizendo o motivo da troca do plano?
- É que eu não confio neste plano, nesta operadora (aqui já rolam os reais motivos). Não confio no mundo (e o desespero). A conta chega sempre atrasada, o site na internet para acompanhar saldo nunca está no ar, a minha conta veio deste tamanho, e eu não vou pagar! Quero mudar pra cartão.
- Ah, então, o senhor quer fazer uma migração de plano. Eu vou estar transferindo o senhor para...
- Mas não é aí, seu píí!?
E ninguém mais volta a falar. Cai a ligação.
Tento...
- “No momento todos os nossos atendentes estão ocupados. Aguarde”.
- Atenda, seu píí!
- “...Aguarde.”
E foi nesta batidinha o dia todo. Lá pra de noitinha:
- Boa noite, Aline, em que posso estar ajudando?
- Aline, eu queria trocar de plano, mas me deixaram três horas e poucas esperando na linha e nada. Já falei com um, falei com outro. Ninguém resolve. Agora, quero cancelar o telefone.
- Senhor, para cancelamento, vou estar precisando atualizar algumas informações suas: nome, endereço...
- Mas eu já disse o meu nome! Vocês já sabem tudo de mim. Olha, moça, eu só quero acabar com este sofrimento. Cancela a minha linha, por favor!
- Este é o procedimento. Para sua segurança, o senhor deve estar passando os seus dados.
- Raaaaaaimundo Nonaaaaaaaato...
- Obrigado, senhor, pela compreensão. Para esta operação, o senhor deve estar abrindo um protocolo junto ao setor de cancelamento. Vou estar transferindo...
- Píí!
- Silêncio... “Aguarde”.
Depois de um mês de aporrinhações:
- Bom dia, Carla, em que posso estar...
- Quero cancelar a minha linha.
- Senhor, preciso estar confirmando os seus dados...
- Ra-i-mun-do   No-na-to...
- Senhor, para cancelar a linha, o senhor deve estar falando de um outro aparelho.
- Mas por quê?
- É o procedimento. Como o senhor está falando do próprio aparelho, o senhor tem que falar com a PA gerenciadora. Aguarde que vou tentar estar transferindo o senhor para a área responsável.
- Não! Não!
- Silêncio.
- Píí!

E são tantas e profundas as irritações turbinadas pelas incontidas profanações das formas nominais do verbo.

sábado, 6 de julho de 2013

crônica da semana- tio tadeu

No Pavulagem tá faltando ele
Quem poderia imaginar que naquele fogfog, naquele pulapula, naquele descai prum lado, desliza pro outro de coreografias do Arrastão junino do Pavulagem, por uns instantes, alguém chorou?
O que torna é que meu tio Tadeu era o irmão mais velho da mamãe. Era um auto-didata. Migrou para o Acre, jovem, na diáspora que meu avô fez sob a égide do IBGE. Animou-se com aquele ermo amazônico e de lá trouxe boas lembranças.
Enquanto minha mãe construía o clã dos Sodreres no seringal São Miguel, toda a família regressava a Belém. Meu tio Tadeu veio junto e durante muitos anos sofreria de saudade do Acre. Em Belém, realizou-se no ramo das relações públicas, gerenciou segmentos operacionais, representou empresas no comércio varejista e naquele segmento industrial incipiente na Belém dos anos 60. Não cursou universidade, mas tinha facilidade em aprender, destreza na comunicação, uma certa pose e a retórica séria e eficaz do bom vendedor. Era bonito, ou como se dizia, ‘bem apessoado’, se vestia com esmero, tinha um cuidado com a imagem. Entendia que se relacionar com pessoas exigia postura e severidade na apresentação.
E assim, deste mesmo jeitinho, centrado, reto, era como tio. A família o tinha como exemplo. Era referência pra tudo em quanto. Qualquer crisezinha corria-se para o Telégrafo para saber a opinião (ou a decisão do Tadeu). Era respeitado. E com muita justiça, afinal, chegando do Acre, fez a vida com seus próprios esforços, alcançou o status de profissional, tinha casa própria, era um vencedor. Valia sempre a pena, ouvi-lo.
E, acima de tudo, era o tio dos Sodreres acreaninhos que do Xapuri, também vieram dar aqui.
Esta é a lembrança mais agradável e familiar que tenho de Tadeu. Ele tinha uma lambreta e, embora tivesse já os quatro filhos, não esquecia os acreaninhos filhos da Luzia. Nos domingos descia para a Pedreira e nos pegava a todos para dar uma volta com ele. Nos ajeitávamos, à frente dele, meio que colados ao guidon e fazíamos um trajeto diverso entre a piçarra da Marquês e o asfalto da Lomas Valentina. Na pista era mais legal. Ele acelerava e a sensação de velocidade era estonteante (por isso que ele levava a gente ali na frente, para simular a condução, como se a nós coubesse o domínio da lambreta. E a gente ajudava com um vrummmm onomatopaico feliz de criança).
Cheguei a morar com o tio Tadeu um tempo. Foi a experiência mais próxima de ter um pai, que me aconteceu. Eu o via sair de manhã cedo, chegar só à noite. Percebia o ritual do final de semana: a feira de sábado, o jornal na poltrona, no domingo. Compartilhava com os meus primos das horas de silêncio e do criterioso contato com ele. Era um pai tradicional.
Mas que reconhecia o poder do tempo. Tirou de letra e aceitou a guitarra estridente dos meninos, quedou-se à corujice de ser avô, admitiu a beleza da vida fora dos conceitos, das obrigações e do trabalho. Por muitas vezes, vi meu tio rindo e fazendo rir, subjugando aquela seriedade que lhe distinguia.
Nos últimos anos, sempre o encontrava no Arrastão do Pavulagem. Meu tio Tadeu, como de costume, bem vestido, postura ereta, andar distinto. Mãos dadas com minha tia Ana. Um leve sorriso de aquiescência no rosto, como se dissesse “bonito isso, bonito isso”.
Neste último domingo, fiquei muito feliz por ter encontrado minha tia Ana por lá. Trocamos algumas palavras, comentamos sobre o Arrastão e ela se afastou me abençoando com um aceno. Quando ela foi embora, olhei para aquela pedra ao lado do anfiteatro onde eles sempre ficavam apreciando o show, mas meu tio Tadeu não estava lá. Aí, chorei.  

sexta-feira, 5 de julho de 2013

crônica remix- verão

Tá chegando o verão
Tenho uma coisa comigo: não posso assistir a filmes que tenham neve, montanhas geladas, gente agasalhada, que fico logo com frio.
É sério! Fico lá, no indo e vindo da minha redinha, envolvido, interagindo, entrando, literalmente, no clima. E de repente já me pego esfregando os pés embaixo do lençol, já me vejo tiritando diante da TV.
Há filmes que chegam ao extremo e pela carga glacial, me impõem a total submissão às fantasias friorentas. Este que passou na Temperatura Máxima (mínima, no caso) com o Stalone é um deles. Não tem como escapar. Do hio ao chio, o filme é só gelo. E o herói ali, se virando pelos escaninhos montanhosos, fugindo dos bandidos malvadões, sempre soltando aquela fumacinha branca pela boca. Lá pelo meio da história, eu reinei em botar uma meia, mas aí, fui oportunamente convencido pela família a declinar deste enregelado mico.
Muito maluco isso. Mas acho legal. Tenho pra mim que é um mecanismo de compensação que, inconscientemente eu desenvolvi. É um inofensivo acerto de contas do corpo com o solão que me domina na vida real. Um desconto, por certo.
E por falar na vida real, tá chegando o verão. Tá dando pra perceber, né? As últimas tardes têm sido de arder. De lascar o couro.
Na verdade, o que ocorre é uma elevação da temperatura média. E como a gente vinha de médias mais baixas, temos a sensação de que os dias estão mais quente que antes. Por enquanto é só uma sensação. Daqui a algum tempo, com o corpo já adaptado à exatidão do sol, a gente vai admitir que os dias estão realmente mais quentes mesmo. Que a pele tá tostando mesmo. E aí o jeito é procurar a abençoada sombra de uma mangueira.
Verdade é também que, por absurdo que seja, aqui nesta parte do globo, estamos agora entrando exatamente no inverno (e não no verão).
Pior que é mesmo. Sabe em março, quando falei da Pororoca, do Equinócio e tal e coisa? Pois é, de lá para cá, o sol viajou para o hemisfério Norte levando o verão pra lá. Já passou por cima da Venezuela do Hugo Chavez . Agora paira sobre a América central atiçando os tornados e furacões no golfo do México.
Para nosotros do hemisfério sul, a estação promete neve em São Joaquim , friagem no Acre e Rondônia e aqui no Pará e outros estados do Norte, pouca chuva. Ou seja, por aqui pelas veredas do baixo Amazonas, o inverno vai ser quente. Um verão, admitamos.
Na Amazônia, achamos estranho entender este abafado como inverno. Mas é porque estamos acostumados a relacionar o inverno com as chuvas abundantes, quando, de vera, as características do inverno são as baixas temperaturas e a pouca incidência de chuva. Por isso que as folhas caem no outono. Como diz o Lula, as árvores cortam a própria carne para garantirem reservas de água para um período de estiagem.
Se por um lado a mudança no clima anuncia um calorão para os próximos meses, por outro ajuda a termos noites mais claras e estreladas. Dá uma força para que a gente se volte um instantinho para o céu. E que céu, heim!
Uma belezura a Estrela Dalva dominando o cenário após o pôr-do-sol. Pode reparar, ali pros lados da baía, logo de noitinha. É o planeta Vênus luzindo no céu, solene, imponente, soberano. E se a gente olhar bem direitinho, vai ver Vênus mergulhando no horizonte protegida pelos irmãos mitológicos Castor e Pollux, as simétricas estrelas da constelação de Gêmeos.
São muitos os encantos do nosso verão amazônico. E eu vou atrás de todos. E se o tempo esquentar de fazer a gente correr doido, alugo uns filminhos que tenham neve, montanhas geladas, diálogos com fumacinha branca, pra refrescar.

terça-feira, 2 de julho de 2013

crônica remiz-jogo de vôley

O jogo mais longo da história
Além do glorioso Internacional da Mauriti, emprestei meu talento ao time de Vôlei da minha turma de Mineração, na Escola Técnica. A prova final do (saudoso) professor Serjão, de Educação Física, era sempre um jogo. Montávamos as equipes e íamos para as pelejas. Os bonitinhos da turma que não eram besta nem nada, formavam o time deles com a nata. Sobrávamos nós, os enjeitados: Éder Jofre (que jogava com uns óculos colados com durex); Reginaldo Nelson, que com este nome, queixava-se ser japonês e era dotado de uma propriedade absolutamente bizarra: ao andar, articulava os membros do mesmo hemisfério. Adiantava a perna direita sincronizada com o braço direiro e a perna esquerda com o braço esquerdo. Uma dinâmica não abonada pela evolução. Não sei como este pequeno não vivia caindo pela rua; E eu que, com metro e meio, sequer alcançava a fita superior da rede.
Fomos à luta, enfim.
O jogo começou naquela quentura das três da tarde. Naquele tempo a regra ainda admitia a vantagem, ou seja, o ponto só valia para quem sacava. Caso contrário, a vantagem se invertia e assim por diante. Agora imagina o Reginaldo Nelson sacando aquele saque bebê, balãozinho: Avançava a perna direita e, com muito custo, exigia a força (no mesmo lado) da mão direita. Lá ia a bola em parábola viajando pra destino incerto...Dois times ruins, fizemos um jogo dos piores. Vantagem pra lá, vantagem pra cá e nada de ponto. Lá pelas oito e meia da noite, o Serjão tava uma pilha. Reduziu a partida para três sets e pediu a Deus por uma jogada inspirada. Já estava todo mundo com fome, com sede, e alguns, que dormiam cedo, com sono. Novos e indefensáveis ataques perturbavam nosso time. Não podia acabar empatado, o jogo, e não tinha pênalti na parada. O jeito era forçar o saque.

Quem ganhou aquele jogo, pouco importa. Sei que dali a alguns anos, o voleibol eliminaria a vantagem, criaria a disputa em pontos diretos e o tie break. Acho que contribuímos de alguma forma para isso.