Domingos Assmar
Eu
gostava muito de ouvir minha mãe falar da viagem que fizemos, de navio, do Acre
até Belém. Ela falava com um certo orgulho, com uma exatidão acalorada e até
com uma incontida emoção sobre aqueles
dias em que deslizamos suave
sobre o leito fúlgido do Amazonas, abrigados nas comodidades e confortos do
navio Domingos Assmar.
O
nome do navio nunca saiu da minha cabeça. Aqui e ali, quando me pego em uma
prosa sobre a diáspora desta pequena fatia dos sodreres acreanos, encontro o
nome Domingos Assmar na memória.
Por
aqueles dias eu era um bebê batendo em retirada de um sonho ocidental. Tudo
para mim, na viagem, era muito extravagante, extraordinário. Para quem tinha
acompanhado a irmã caçula, um anjinho que não suportou as dores do mundo, ser
acomodada numa caixa de sapatos e ser enterrada ao pé de uma seringueira, aquele
mundo de luzes piscando lá embaixo, na cidade de Rio Branco, sim, aquilo sim é
que era uma grande fantasia, um iluminado absurdo. A cidade era uma pretensão
luxuriante, um irresistível desafio.
No
pernoite na capital do Acre, mamãe nos alertava que se não nos comportássemos,
não íamos ver televisão, quando chegássemos a Belém. Um ralho atemporal,
futurista para quem sequer sabia o que vinha a ser televisão. Para quem a
planura do mundo se alastrava sem fim pelas ondas curtas e certeiras do rádio.
Nada mais que isso.
Não
mais que pequenas sensações, raras sonoridades embarcaram comigo no porto de
Rio Branco e se esconderam inertes num acanhado camarote do Domingos Assmar,
por aqueles dias.
Foi
uma viagem longa. Quando a gente é criança, nos subordinamos a uma escala
distorcida de tempo e espaço: o tampo de uma mesa é inalcançável, o nosso pai é
um grandalhão, passamos dois por uma mesma porta. Um dia parece dois. Um rio,
mar. E eu achei, durante algum tempo, que aquela viagem havia demorado uns
oito, nove meses, um ano...
Mas
a gente vai crescendo (no meu caso até o limite de metro e meio, observo). As
dimensões vão se ajustando e a gente já bate aqui, ó, além do ombro do pai, e
percebe que o pai nem é tão alto assim. Dias e noites são bem mais definidos e
as coisas passam a estar ao alcance das mãos (nem todas, constatamos indignados.
Nem todas). E agora acho que aquela viagem nem durou tanto tempo assim, ainda
mais de descida...
Quando
vencemos as águas afoitas da baía do Marajó (ego incivilizado do rio Acre) e
irrompemos sobre Belém, a batuta da minha mãe elevava-se insistentemente,
agressivamente, ameaçadoramente a reger repetidas vezes a regra ‘se não se
comportarem, não vão ver televisão’.
Deixamos
o Domingos Assmar para trás. Pegamos um táxi Aero-Willis (outra coisa diferente
de rádio) e fomos dar na Pedreira com malas e bagagens.
Naquela
casa da Marquês de Herval, conheci aquela caixa encantada chamada televisão e,
sabe, nem fiz tanta questão de ser um menino comportado. Preferi os quintais
tomados de camapu.
Domingos
Assmar foi o patriarca de uma família de imigrantes sírio-libaneses que se
instalou no Acre e fez fortuna nos tempos áureos da borracha. Fundou a poderosa
Casa Irmãos Assmar em Rio
Branco , especializada nos ditos ‘aviamentos em geral’ e
acumulou um imenso patrimônio.
Não
sei se o navio era de propriedade da família...Tudo indica, tudo indica, né? O
dinheiro da borracha comprava muita coisa.
Nesta
minha batidinha diária entre Barcarena e Belém, tenho visto o velho e carcomido
navio Domingos Assmar fundeado no porto do Arapari. Deteriorado, gasto pelo
tempo. Abandonado na sua quietude.
Comportado...Comportado.
Ouvindo sonhos. Nada mais que isso.
sensacional
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