sábado, 25 de março de 2023

crônica da semana - o glorioso internacional da mauriti

 O glorioso Internacional da Mauriti

Daqui a dois dias faz 17 anos que escrevo esta coluna. Como diz a galera, é uma cara de tempo. Uma longevidade jamais pensada por mim. É, reconheço, uma marca que contribui pacas para minha auto-estima. Não levava fé, há 17 anos, que pudesse ter fôlego, assunto, ritmo, rimas e tantas prosas pra contar aqui numa escala semanal. Se bater as contas direitinho dá uma penca pra mais de mil as minhas participações literárias aqui no jornal contando, inclusive, os convites para edições especiais que antecederam este encarreirado que se mantém desde 2006. Nem mê nem donde de mim, querer classificar ou dar definição das coisinhas que escrevo. Alerto, no entanto, que minha criação literária é para quem quer abstrair, fazer um paralelo entre a realidade e a fantasia (que aqui passo a chamar de mentirinha doce). É para quem quer tirar um pouco de água dessa vida di rocha duríssima que vivemos a cada despertar dos dias. O que me vale são estas mentirinhas doces que invento no meu cocuruto, dou um brilho no estilo, rezo pra não machucar tanto a gramática e repasso para vós. Fiquemos certos que é preciso entrar na brincadeira com o espírito leve, e o que tivermos de liberdade e bondade no coração.

Dá-se então que boas e fartas histórias que conto do glorioso, insuperável, inquebrantável, indomável e incomparável Internacional da Mauriti não representam os fatos reais, né. Digo até que, a existência de um time de rua conhecido como o glorioso e etc... etc... Internacional da Mauriti, sequer posso garantir ser possível de ter existido além do trançado pragmático das letras. Todo sábado vos convido a dar um guiza, só na caté, na realidade (mais ou menos da forma e do jeito que me encantou, certa vez no cinema, quando assisti a uma versão do russo Alexander Sokurov para o clássico ‘Fausto’, em sessão matinal no cine estação, em que as cenas eram todas tronchas, torcidas, distorcidas. Onduladas e multidirecionais. Do jeito aquele que nos fazia duvidar dos sentidos e do absoluto das causas e efeitos mundanos).

É por isso que vez por outra, o Pé-de-galho aparece pela lateral do glorioso e etc...etc... Internacional da Mauriti, apavorando as defesas adversárias e em outras vezes, de público confesso que um menino de tal talento conhecido no meio da petizada por nome Pé-de-galho, jamais deu o ar da graça nos campinhos do bairro ou mesmo nas partidas de travinhas que realizávamos nas calçadas da Mauriti. Aí vai do dia e da vez ele ser ou ele não ser.

Pelo que torna e pelo que deixa, quero colo e parceria de quem sabe brincar e não levar as prosas no curto e certo, como aconteceu semana passada. Em uma jogada de conversa fora ali nos corres do dia, comentei entre uns parças de trabalho, das minhas conquistas como centro-avante do Internacional da Mauriti. Pra quê. Fui bulinado do io ao chio. Na geral o juízo era que, com um metro e meio, baixolinha, eu não dava nem um caldo no comando do ataque. E me vi diante de um fogo alto de avacalhação com minhas posses. Penso cá comigo, que quando faço esse tipo de afirmação desejo mais estimular a volta em histórias afins, que ensejar trancos e ataques. Não sabem brincar os caras. Provavelmente nunca viajaram num livro ou sequer preservam o prestígio às artes tronchas reveladoras de nossos males escondidos. Também não admitem a possibilidade de o Internacional da Mauriti ter sido um time sem preconceito, inclusivo, que aceitava um baixolinha no comando do ataque e um garoto de pernas tortas assombrando nas laterais.

Daqui a dois dias faz 17 anos que me bato nas estratégias e no jeito de prosear e, mais ainda, na lida de tirar uma aguinha dessa vida, di rocha, duríssima.

 

sábado, 18 de março de 2023

crônica da semana- divino são josé

 Meu divino São José

O pai de Jesus entrou na minha vida em alguns momentos de extrema importância. Vou lembrando e vou contando. De prima, ele me vem em amplitude regional. Certa vez em uma reuniãozinha depois do expediente, traçando uns drinques com tira-gosto de charque frito, o topógrafo que trabalhava comigo e que era de Natal, esperançou: se, no dia 19 de março chove, é sinal que o ano vai ser bom. De água e fartura no Nordeste. Desde lá, mesmo que não esteja no Nordeste, olho pro céu e fico na bicora. Se chove aqui, somo na fé. Ele me contou da esperança, em Macapá. E foi lá em Macapá que tive um encontro pra lá de precisado com o bom santo. Depois de quase um ano na pira, desempregado, sem grana e já quase pra correr doido, consegui um emprego no Amapá para fazer a única coisa que, profissionalmente, e o que me vale até hoje, sei fazer. Atuar na mineração.  Desembarquei em Macapá exatamente, e agora digue lá se não parece uma coisa, no dia de São José, que inclusive, é padroeiro da cidade. Antes de entrar pra mina, fizemos um roteiro pela cidade e passamos pelo centro. Tinha arraial, missa, comemorações, e declarações de fé. Foi impactante pra mim. Chegava ali, por uma forcinha do santo, pensei. Olho lacrimejou e agradeci. Dias depois, estávamos eu e o topógrafo contabilizando bênçãos. Eu empregado e a chuva abundante no Nordeste.

Estas boas novas e também a presença sentida do santo carpinteiro, ora veja, ocorreram exato no tempo em que eu me considerava um ser descrente de tudo e, mais ainda das histórias contadas pelas religiões. Um período impensadamente ateu para quem, durante muito tempo foi igrejeiro salesiano. E aí vem o tempo depois...

Um tempo depois, estava eu na batalha pela vida em Barcarena. Sindicalista, classista, de modos e condutas extremados. Valores que nos levaram a conflitos épicos com a estrutura empresarial da hora. Num deles, para pressionar uma negociação, saímos do casulo classista e nos votamos à comunidade. Fazia anos que eu não entrava numa igreja. Articulamos uma missa que unia o operariado e as comunidades carentes. A simbologia era que mesmo com perdas salariais, ainda podíamos doar. Na missa recolheríamos cestas básicas para as entidades da região. A celebração se deu, adivinhem... Na paróquia de São José, que fica na Vila dos Cabanos. Mais uma vez tive o encontro com o santo operário.

Agora neste março, volto ao divino São José para renovar nossa amizade e para pedir que nos valha:

Santo pai dos operários, em teus pés me reduzo em alma e obra. E rogo a ti. Me ampara nas fraquezas, me livra do mítico e desprovido empreendedorismo, do foco certo e cego. Fazei que minhas habilidades ponham cumê na minha mesa, e tantas qualificações me apontem o futuro. Livra-me, meu bom carpinteiro, das marteladas sazonais do desemprego, das ilusões multicores do capitalismo, da negação de classe, do abraço ofídico do chão de fábrica e das especulações do mercado. Dá-me reconhecer a mais-valia e deposita em minhas mãos os meios de produção para que eu não me sinta possuidor de um poder sem senso. Rogo ainda, pelos meus companheiros que se ombreiam em lutas intermináveis, cuida para que um sorriso sempre brote no meu rosto sofrido, de forma tal que minha vida não seja vã. Vela pelas criancinhas, para que desapareçam das esquinas, pelos pedintes, e pelos sem contrato de trabalho. Dê-nos dignidade e ordenado no fim do mês que possam prover nossa família de direitos básicos. E no fim de minha prece, nos dê Jesus, filho de operário, em todos os dias de nossa vida, sem faltar um só, ao nosso lado, para que a lida seja santa. Sob a atenção dadivosa da Virgem Maria, te peço.

Amanhã vou olhar pro céu. Amém!

sexta-feira, 10 de março de 2023

crônica da semana - Lealdade

 Lealdade e Linda flor

O filósofo deu a letra: sem a música, a vida seria um erro. Tento acertar. Mirar no cravo e na ferradura. E nas diversas frentes. Ouço de um tudo. Faço da música minha profissão de fé, meu tudo de bom e pleno que me alenta e dá prazer. Bateu na telha nesses primeiros dias do ano de me embrenhar nos escaninhos melódicos de Pernambuco. Atinei para o bichinho de Duda Beat, me impus o breado do Mangue beat no cancioneiro de Chico Science, dancei ciranda com Siba, escalei as ladeiras de Olinda com Alceu Valença e a Academia da Berlinda, rebusquei a severa tonalidade com Otto e abrandei meu coração na suavidade quase cantiga da banda Eddie com a canção Lealdade. Visitei o som vibrante do encantado Cordel e a Ciranda cadenciada de Lia. Fui lá e interessado, voltei cá. Desviei de novo para Lealdade. A música me pegou de jeito. E os dias se passaram com a marca da canção. Até me animei e me envolvi. Fiz uma versão com meus acordes naturais e minha força de vontade. Gravei na internet. Meus 11 simpatizantes gostaram. É uma canção que cresce muito com o arranjo da Banda Eddie. Tem uma notada melancolia rebelde. Um trisca pra explodir, mas se mantém na ordem e nos compassos da singeleza. Chega dá uma paz na gente. Tem também, uma letra que parece não querer tanto, mas alcança além. Quando a gente dá fé, tá refletindo, reafirmando discursos, lustrando compromissos. Há comoção e entrega nesta canção, que faz até a gente engatar a voz e engolir um chorinho culposo quando canta um versinho sutilmente desafiador...

E me perdi na afetuosa Lealdade exatamente no mesmo tempo em que lia o livro do manauara Márcio Souza, com o mesmo título. Isso quer dizer alguma coisa, cá comigo pensei. Não é sempre que a Lealdade se veste de arte e nos visita revolucionando, fugindo de barco em meio à escuridão e adiante, perdendo-se na mata alta para renascer pautando um romance cabano.

Deixa estar que... passou, passou... Teve, teve ... Eu estava bem na faxina de final de semana aqui em casa, sintonizei meu três-em-um numa rádio só de músicas antigas da década 50 do século passado pra trás, quando, para minha surpresa me entra o Orlando Silva à frente de um arranjo denso, meio carnaval com coro e tudo, cantando o que, digue lá, mermão. Esta dita mesma música Lealdade. Mas cuide, não, que eu pensei que era música nova, criada pela vanguarda pernambucana. A música é do tempo do ronca, linda e antiga pacas. A gente, tá vendo, não sabe é de nada das reentradas criativas de tempos em tempos. Fora a surpresa, pra mim não mudou nada. Apreciei a levada encorpada na interpretação do Orlando Silva para a canção, mas prefiro o jeito franzino, a leveza, a pegada mais aquietada do estilo Eddie. A música com eles, quase cantiga, me pegou e foi de vera.

Neste caso, foi constatada a regravação de uma mesma matriz. Agora me avaliem vós, o quanto bambeei quando encontrei daqueles anos atrás pra cá, pelo menos três versões de Linda flor. O enredo é o mesmo, faxina, três-em-um, final de semana. Dedilhei de novo meu violão na internet, me ajustei na letra: “Ai, iô iô/eu nasci pra sofrer/foi olhar pra você/meus olhinhos fechou...” . Essa todo mundo conhece e sabemos que é antiga. Foi tema de novela. Meus 11 fãs deram um like. Muita gente boa gravou. Daí, procurando outras interpretações, dei com uma gravação do Vicente Celestino lá pelos anos 30. E não me é que ele canta uma letra totalmente diferente! Até o do iô iô, que nos chegou, foram duas letras outras. Que coisa!

Não importa. O que vale é que procuro sempre ter a música perto, mesmo que longe no tempo e em diferentes versões, para que a vida não bandeie ao erro.

 

sábado, 4 de março de 2023

crônica da semana - chva decamilenar

 Chuva decamilenar

Os dados impressionam. A tragédia causada pelas chuvas em São Paulo foi resultado de uma precipitação máxima de 680mm num período de 24 horas. Para nós aqui de Belém isso representa mais que o tanto de um mês todinho bem chuvoso de março. Foi muita água. Caso igual jamais aconteceu naquela região ou até mesmo no país.

Eu tinha um professor de Geologia que não recomendava afirmações com intenção técnica ou científica que creditassem certezas absolutas a determinados eventos, tendo como parâmetro o tempo decorrido ou a frequência. Fez essa ponderação a primeira vez, depois da notícia de um ciclone extratropical formado no sul do país. Na época, o que se dizia é que um fenômeno daquele jamais havia ocorrido no Brasil, um país abençoado por Deus, de clima bom e protegido de sustos naturais. Considerando o envolvimento da ciência no cotidiano brasileiro, a circulação da informação e o jeito como a notícia é tratada, é bem provável que tenhamos na nossa história social e geológica uma infinidade de catástrofes, perturbações e picos de eventos. Só que ficaram sem registro ou compuseram matérias mais ligadas às lendas e ao determinismo religioso (aconteceu porque Deus quis). Não podemos dizer que a catástrofe de São Paulo foi um fato único. Mas é certo que foi um episódio dramático da nossa história, registrado, gravado, e medido nos níveis mais assustadores.

Pela demanda da minha profissão, dou atenção especial ao período chuvoso. Em muitas ocasiões nem tínhamos todo o aparato tecnológico de hoje e nossas ações vinham em função da experiência, do ‘olhar pro céu’, da fase da lua e das poucas informações de órgão oficiais de meteorologia, que nos alcançavam.

Em Altamira, quando passava a maior parte do tempo acampado, a preocupação nem era com o grande volume de chuva. Era com a força e a velocidade dos ventos. Eu tinha um companheiro de barraco que, era só começar a pingar à noite, ele levantava da rede, acionava a luz da lanterna e iluminava o alto das árvores. Tinha um medo danado que um imenso galho de árvore despencasse sobre nossas cabeças. (Isso, depois de ser apartado do tronco principal por um raio. Outro medo). Eu sempre dava razão à preocupação dele. Achava que se agia assim, tinha motivos.

A intensidade extraordinária das chuvas no litoral paulista poderia até ser creditada ao fenômeno da chuva decamilenar, diga-se, há alguns anos lembrado pelas bandas de cá a partir de precipitações, olha só, até modestas, de pouco mais de 100mm em 24 horas que se comparadas ao volume de seiscentos e pouco de São Paulo,  nem justificaram a evocação do fenômeno. De jeito igual, se associada esta grande chuva, aos acontecimentos recentes em parte da Europa e Estados Unidos, com ocorrência de frios extremos em meio a um inverno calorento, podemos ligar a tragédia de São Paulo ao desequilíbrio global do clima, perturbando o inverno deles e o nosso verão.

Em Belém, vivemos o inverno amazônico. Estamos ligados nos pampeiros. Temos um relevo plano, nem de longe comparado aos encaixados de serra das formações litorâneas do sul. Enfrentamos riscos. Sempre o medo das ‘terras caídas’, dos transtornos de água invadindo casas, do caos no trânsito com o transbordamento do Galo ou do Uriboca. Mas não há chance de um barranco desabar sobre nossas cabeças. Talvez este seja o fator planície abençoado por Deus na Amazônia.

Os dados de São Paulo foram além dos aléns coletados em nossa Amazônia molhada. Resultaram em sofrimento e dor. Por outro lado, revelaram solidariedade, esperança, dedicação de muitos. O Brasil precisa fazer mais. Precisa escoar recurso para o direito básico da moradia e prover nosso povo de habitação, acima de tudo, segura.