sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

crônica da semana- fio de prumo

Meu fio de prumo
O mês de Janeiro está ali, no retrovisor, dando tiauzinho pra gente e eu aqui, me vou me aviando, para encerrar em tempo, a sequência de crônicas homenageando Belém.
Nesses nove anos que estou aqui na coluna, tenho cumprido este rito. É tabelado: todo início de ano, dedico meus escritinhos a Belém. A cidade, esta cidade rente ao rio, quente e pródiga de chuviscos e mangueiras; a cidade que me acolhe e me mundia, que me expõe e me protege. Esta cidade santa e pecadora, esta Belém indulgente e altruísta, merece.
A homenagem desta feita se deu com uma construção um pouquinho diferente: as crônicas foram escritas na terceira pessoa e ambientadas em terras distantes (e quem conhece a minha prosa em primeira pessoa sabe que a terra distante é o Acre e a protagonista do enredado é Luzia, minha mãezinha querida). Fiz assim, porque queria ver Belém de longe, com os olhos saudosos de uma paraense que vivesse, verdadeiramente a distância; que percebesse o apartamento como sendo uma coisa irreversível, sem volta, sem volta a Belém. Penso que minha mãe, casada com um seringueiro, já com três filhos, e integrada à vida do seringal (vivendo o quebra jejum, articulando a comunhão dos bichos, tiritando sob o casaquinho, num frio de verdade, thu thu thu thu!), quando saía do ar por uns momentos, recordando passagens e cenários de Belém, sofria pelo desterro e ao mesmo tempo se resignava com o exílio, consoava-se ao trinado intolerante do nunca mais.
E esta é uma sensação absurdamente insuportável. Aquela que te revela que jeito não há. A própria resignação é insuportável. A perda da capacidade de mudar, de transformar é insuportável (embora esta capacidade possa plenamente reviver, como provou mais tarde, minha mãe, ao voltar para Belém, subvertendo o destino, o tal trinado do nunca mais, e nos trazendo nosotros, os acreaninhos, agarrados à barra da saia). Esta é a sina dos que amam Belém, padecem perdidos no ermo, sem esperança de voltar, mas um dia voltam.
E aqui estou eu, em primeiríssima pessoa, retornado e relatando a minha alegria de caminhar pelas ruas de Belém, numa manhã chuvosa de janeiro. Sem sombrinha, sem receios e com a ferida da distância já cicatrizada. Mas já sofri muito.
E quando a gente sofre de saudade, recorre a cada signo, a cada presepada sentimental inexplicável...
Certa vez, estava em Altamira, entranhado ao mato baixo da margem direita do Xingu. Tínhamos que fazer uma grande abertura no lajeado (um buraco que chamamos de trincheira) para expor uma parede de rocha que fosse estudada por um especialista contratado a peso de ouro.
Às vésperas da chegada do consultor, com a equipe já finalizando os preparativos no teatro de operações, eu estava acompanhando os trabalhos, quando uma chuva pesada nos pegou de surpresa em pleno mormaço da tarde e interrompeu as tarefas. Acudi-me a um vão moldado num imenso bloco de migmatito e fiquei por ali me protegendo do aguaceiro naquela loca de pedra.
E ali, ouvindo o som das gotas da chuva tanto batendo quanto querendo furar a rocha, recordei um dia, lá na Vila Mauriti, uma das festas que mamãe fazia pro São João. No sonoro, aquele que para mim, hoje, é um cult brega: “ando só, vivo só, feito louco aventureiro a vagar”. Entristeci com a minha solidão, ali naquele descampado do Xingu. Esqueci do consultor, das lidas urgentes e chorei de saudade da mamãe, da minha cidade. Bateu aquele banzo medonho.

Hoje, em primeiríssima pessoa, estou de volta para minha Belém, para o meu mundo, para o meu fio de prumo e nunca mais esqueci o significado da palavra saudade.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Crônica remix - friozinho acre tal

Do Acre ao Afuá
Parece uma coisa. Tamanho julho e esses pampeiros no final da tarde molhando a cidade e cortando o barato da pracinha mais com pouco. Mas tá, então, em pleno mês de férias. Tô só vendo.
O aguaceiro, de vera, começou no domingo. Chamou a atenção porque não foi uma chuva comum de verão (amazônico), daquelas que se formam por causa do calorão com nuvens pesadas e escuras. Rolou uma moldura cinza-prateada, deu-se toda uma elaborada plástica nublada para que a água caísse.
Na segunda-feira foi flagrante essa situação. Até chamei os meninos para o meio do terreiro, pra gente ver aquele bailado das nuvens bem pertinho da gente, raspando o nosso cocuruto. Uma experiência diferente para eles, ver o ziguezaguear descompromissado do vento levando as nuvens pra lá e pra cá, numa algazarra só, sem limites. E foi tão bacana, ouvir o farfalhar das árvores. Tão atraente foi a anarquia do tempo d’tardinha que nos entregamos à paisagem plúmbea, aos relâmpagos riscando o horizonte lá longe, ao vento moleque zunindo nas esquinas. Aceitamos a bandalha da baixa atmosfera e ficamos pulando feito menino besta, no meio da rua, querendo tocar o céu que estava logo ali. E nos pegamos recitando exclamações extemporâneas: “éraste, parece São Paulo. Um friozinho! As nuvens cá embaixo. Tá parece São Paulo!”.
Pode crer, aqui na Vila dos Cabanos, foi uma das poucas vezes em que a gente dormiu sem o ventilador rugindo de palmo em cima (depois, quando os primeiros pingos tocaram o solo, a euforia foi se desfazendo. Nos recolhemos e ficamos olhando a chuva da janela. E ela veio obediente, abundante, mas  sem presunção ou alvoroço e assim permaneceu durante a noite. Amiga, pertinente, aconchegante a chiar melodiosamente, no telhado).
É bem verdade que o aguaceiro não tem atrapalhado as férias. Acontece quando já estamos em casa depois de mergulhos e muitas carambelas na parte rasa das praias do Caripi e Itupanema. Mas a chuva segura a galera naquele início de noite (quando a praça é a pedida), numa intimidade não programada. Empurra-nos para dentro de casa, a passar o tempo jogando um dominozinho, maltratando o violão com quadrados manjados e largando conversa fora até mais tarde. E haja macarrãozinho instantâneo e Q-suco, pra conformar e distrair.
Agora, quarta-feira, enquanto escrevo estas impressões (ufa, quase que sai ‘mal traçadas linhas’), a noite lá fora, resigna-se aos respingos que ficaram da última mini-tempestade.
Só aí já se vão quatro dias de chuvas fortes, sempre neste horário. Se viessem daquelas nuvens negras, densas de fim de tarde, tudo bem, ratificaria a convecção. Mas o impacto (aprazível) na sensação térmica é que embanana a gente.
Mesmo porque, julho começou nos conformes. Calor forte pra chuchu. Dias encarreirados sem uma gota de água do céu. Garrafas de água da geladeira perdendo feio para a demanda e os vendedores de suco faturando alto nos cruzamentos da Almirante Barroso.
Tudo como reza o script, e de repente, quando a gente dá fé, o tempo destrambelha.

Nada a temer, porém. Acho que foi só um resfriamento solidário. A gente não viu o Acre, por esses dias registrando 7 graus de temperatura? (Lá também é o verão amazônico. Daqui a pouco os rios vão estar ‘só um fiozinho correndo no rego do açaizal’ e a imprensa vai mostrar a luta do ribeirinho sem rio por aquelas bandas). Estas nuvens argênteas que nos envolvem, talvez sejam um resquício, uma rebarbinha da friagem que atingiu o Acre e que veio se aquecer e se dissipar nos ares orientais da foz do Amazonas. E nos deram noites friinhas. Éraste, parece São Paulo!

sábado, 25 de janeiro de 2014

crônica da semana - quebra jejum

Quebra jejum

Quando a turma chegava para quebrar o jejum no barracão, o sol já ia alto. Cada qual trazia uma prenda. Um trazia leite dos animais que criava, outro trazia um quarto de paca, aquele que tinha pouco trazia um punhado de farinha e o que não tinha conseguido nada de mociço ou encorpado de proteínas, catava ervas para um chá, folhas para aromatizar o cozido. Sempre preparavam aquele primeiro comer da manhã com uma mesa farta em caldos e sustâncias, porque dali pra diante, ainda iriam se bater no emaranhado da juquira, no pretume da coivara, no vai-e-vem do arado, no descampado da semeação ou nos aperreios e suadeiras da colheita. 
Ganhavam a mata, ainda na alta madrugada. Naquele escuro desafiador e no instigante silêncio da floresta, enfiavam-se pelas ruas de seringa. A poronga iluminando o caminho e regendo o risco certeiro no tronco da árvore linheira. Abalavam-se dos barracos e largavam-se ao breu. Deixavam para trás a noite, os meninos, a mulher, o lote permitido, a roça concedida. Por aqueles dias, já podiam ter um quê de plantação, alguma criação. Nem sempre foi assim. O direito a ter uma rocinha e de criar uns animais, foi conquistado a peso de muita luta. Muito couro no lombo. Muito sangue foi derramado, muitos heróis tombaram nos alheios do chão amazônico, até que uma verdurinha pudesse vingar no terreiro das colônias. Quando mergulhavam na mata fincando tigelas nos caules sulcados, deixavam para trás, para mais com pouco, no tempo e na vontade, uma esperança de vida plantada. 
Naquele mesmo instante em que ela alimentava os animais no terreiro (thu thu thu thu thu!), a turma já estava concluindo o defumo e estocando as pélas. Depois, arrumada, a borracha já estava pronta para ser levada às casas de aviação, na cidade. Os homens, que desde as 4 da manhã se viravam na lida extrativista, agora, ali no barracão, podiam trocar uma prosa, picar um fumo, programar um piseiro, um mutirão. A reunião se estendia. Embora as mulheres, já estivessem emergindo das lavagens de roupa na beira do igarapé, e se oferecessem para um isso ou um aquilo, eles declinavam da ajuda e por si, se aviavam nas exigências do quebra jejum. Partiam o feixe de gravetos para o fogo, no seio da coxa; cozinhavam, acrescentavam o tempero. Davam uma prova do caldo na palma da mão, punham mais um tiquinho disso, daquilo. Davam outra prova. Desciam com os baldes, para encher com água boa, naquele poço do igarapé que ficava no caminho um tantinho acima do barracão. 
Gostava de ver aquela arrumação. O dia não batia nem nas dez horas, e já estava definido. Aquele era o momento de recompor as energias. E nada melhor do que todo mundo junto. Havia ali, naquela reunião, o compromisso, o companheirismo. Reinava uma alegria meio inexplicável, um congraçamento. A lida era penosa, sufocante. A coleta do látex era uma tarefa estigmatizada pela humilhação, pela severa lei. Mas a hora do quebra jejum, não era hora de reclamar. Era hora de ganhar força, resistir e de lá, correr para as roças. Desafiar a história. Semear tempos melhores. 
As delícias de Belém percutiam em lembranças boas, nos pensamentos dela, naquela hora. Revivia os encontros no Círio de Nazaré. Em meio ao alarido do terreiro, chegava-lhe aos lábios, o azedinho do tucupi, o travosinho do jambu. A família se encontrava todo mês de outubro para o pato, para a celebração, para a renovação de esperanças. E para, também, nos asfaltos de Belém, plantar o futuro. 
O quebra jejum era servido no barracão, alguém ligava o rádio e ela atinava para o sucesso do momento: “Você não é doce de coco...” 

sábado, 18 de janeiro de 2014

crônica da semana - a chuva o frio

A chuva e o frio


O barracão era uma casa ‘altas e baixa’. Em cima, era organizado em um único quarto fechado com tábuas macheadas, e uma varanda bem espaçosa contornando o prédio. A parte de baixo era construída de piso assoalhado em madeira, dividido em sala e cozinha. Não havia um quarto só para as crianças. As redes, durante o dia, ficavam enroladas nos punhos, e à noite, na hora de dormir, ou até mesmo antes, para os meninos se embalarem, eram atravessadas às escápulas distribuídas aos quatro cantos. 
Na cozinha, a grande mesa. Um petisqueiro de madeira de um oleado enegrecido, pesado, opulento. Um balcão polido, mas em alguns pontos, riscado por sulcos profundos deixados pela faca amolada, na hora de talhar o peixe ou de amaciar o bife. Um fogão de barro imenso, com um vago embaixo, tapado com uma chapa de ferro com alça, que servia de forno. Na parede que recebia o sol da manhã, uma janela com abertura para dentro, descobria um espaçoso jirau montado com intercalações de pachiúba e tábuas lisas. Ali ficava o escorredor de louça, o escorredor de macarrão, as panelas tisnadas, os canecos esmaltados, um punhado de areia branquinha para arear as panelas, dois ou três baldes pequenos, cheios de véspera, com água do igarapé, e uma bucha vegetal para as primeiras precisões. 
Depois que alimentou os animais no terreiro (thu thu thu thu!), parou ali, na cozinha um tempo. Ajeitou um café novo para os homens que estavam na mata e deixou o bule sobre o fogão, aquecido por uma brasa branda. Depois subiu para o quarto. 
No quarto havia uma penteadeira com espelho ornado de folhinhas prateadas nos vértices, e uns poucos produtos de toucador misturados a objetos vulgares, na superfície ondulada do móvel. Uma cama desconfortável, com a espuma saltando em alguns pontos da colcha de retalhos e que fugiram à sua atenção. Uma caixa robusta de tampa pesada travada por uma fechadura enferrujada. Ali ficavam as roupas dela, do marido, dos meninos. Guardava também naquela caixa, os cortinados, os lençóis lavados, as toalhas de mesa que usava só em ocasiões especiais e tudo mais que houvesse de útil em tecido, menos os panos de prato, que guardava no petisqueiro, lá embaixo. Tudo sem passar, mas de alguma forma organizado. Cada peça com a sua afinidade e missão. Mexeu ali. Não procurava nada dentro da caixa, mas tinha esse costume de sempre abri-la pela manhã, pra ver se não tinha nada de pouco no uso e de muito sem usar. Percebeu, no canto, sobrepostos em direções diferentes de bainhas e colarinhos, os casaquinhos dos meninos, tecidos em flanelas de cores suaves, azulzinhas, roseazinhas, amarelazinhas. Alguns poucos eram de tricô em pontos densos, felpudos. 
Resgatou da lembrança, as chuvas e os frios de Belém. 
Em recortes saudosos, refez na mente os finais de tarde, na Pedreira. Ao lado da casa que ela morava havia um capinzal que depois das chuvas, sempre alagava e destarte, sazonalmente, aquele terreno baldio se transformava no palco para um sarau natural. Uma cantoria articulada entre os graves dos cururus e agudos dos grilos serelepes revolvia a quietude da esquina. 
As chuvas de Belém traziam o lirismo, a serenidade, a reflexão sobre o primitivismo da vizinhança que gritava ali ao lado, os insondáveis alertas e as imperscrutáveis alegrias do chão úmido. As chuvas de Belém traziam a paz, a vontade de pôr a meia e se aninhar no colo da mãe. Mas não trazia frio, não se expressava neste frio que faz com que os meninos usem casaquinhos felpudos e de cores suaves, ali no abrigo do barracão ‘altos e baixo’. Casaquinhos azulzinhos, rosadinhos, amarelinhos... 


sábado, 11 de janeiro de 2014

crônica da semana - a comunhão

A comunhão dos bichos
Antes de clarear, tateava pelos arredores da casa. Separava as vasilhas cada qual com o seu tanto e a sua qualidade. Quando entrava na casa, arrastava a sandália em silêncio para não acordar as crianças que dormiam nas redes atadas, na diagonal, pelo corredor. Apanhava sempre alguma coisa lá dentro. O ‘fós’soro’, um cotoco de vela, o abanador trançado de palha, uma caneca esmaltada com um gole de café. Aproveitou o vão da janela entreaberta e deitou lá fora, sobre a mesa, o bule e a carteira de Continental sem filtro. Aquela visita ao interior da casa era um resumo de todas as suas dúvidas e carências; uma síntese do vasto leque de riquezas e honras de que ela dispunha. De passagem pelo estreito corredor, apanhou do seio da pernamanca que marcava o meio da parede, o pente azul para se pentear enquanto rezava, bem baixinho, num quase sufocado assobio, num restrito e débil sopro, as matinas. Uma oração tecida num recitado bilabial restringido, uma cantilena fricativa reprimida: Ave Maria...bzzzz/Louvado seja...bzzzzzz.
Costumava, nessa hora, antes do sol surgir, adiantar as arrumações da casa. Dispôs-se um tempo diante da tramela que fechava a janela da sala e resmungou, reclamou porque ela era tão molinha, bastava uma ligeira perturbação no ambiente para que a chapinha de madeira rotacionasse e deixasse a janela só encostada.  Tinha que resolver aquilo. Deslizou pelo ladinho da rede avarandada, atada de parede a parede e por ali se demorou um tempo. Espreitou, campanou, sem descuidar da cantilena silenciosa: Bzzzzzz. E num átimo, com extraordinária precisão, esmigalhou um carapanã cheinho de sangue, no braço do filho mais novo que, inocentemente, dormia. Fazia parte da lida diária, proteger o sonho das crias. A ronda pela sala terminava no sofá, que disposto ao longo da parede, bem embaixo do quadro azulado do Sagrado Coração de Jesus, parecia tomar mais espaço que o necessário. Alinhou o imenso cortinado florido que cobria o móvel. Puxou pra cá, esticou pra lá, mediu e definiu a distância até o chão, passou a mão espalmada pelo assento, ordenou os vincos do tecido. Era um cuidado com aquele sofá! Era o seu bem mais estimado. Era local de receber visitas, de fazer as distinções da casa. À frente, a mesinha de centro suportava um pequeno emoldurado. Um contorno improvisado de madeira e metal acomodando uma fotografia. Um cartão postal. A luz do sol ainda procurava céu para reinar e assim, neste lusco fusco, não conseguia discernir o retratado nem os dizeres do cartão. Mas imaginava. Traçava a inclinação dos ônibus dobrando a Avenida Portugal; reconstituía, no ar invisível daquela sala, a simetria das torres do Mercado de Ferro. Por vezes, o olhar pesado, forçado, desviava do cartão e mirava breves feixes que já se anunciavam nas frestas da casa. Era o dia chegando. E a luz ainda tímida lhe trazia à memória o estirão de lâmpadas que tingiam de amarelo a fieira de postes que margeava a Tito Franco. Mas o seu olhar se abrandou, porque na verdade, não queria ver nada dali daquele cartão. Queria sentir. Cerrou os olhos, esboçou um sorriso de prazer e recordou com muito carinho as manhãs à beira do pequeno igarapé que corria por detrás da Pedro Miranda e que era cheio de pedrinhas preciosas arredondadinhas.
Quando o sol iluminou com vigor a copa das árvores mais altas, ela largou o cartão, sobre a mesa, escorou a moldura no bibelô da bailarina e saiu para o quintal.
E dia claro, de cada vasilha que estava ali no alpendre, tirava um punhado e jogava em rajadas densas no terreiro. E chamava: Thu thu thu thu thu! E vinham as galinhas, os patos, os pintinhos. Fosse milho, fosse ração. E vinha o carneirinho e o porco também vinha. Fosse farelo, fosse resto de comida. Até o cabrito e o burrinho, vinham. Pela comida e também pela algazarra, o papagaio e a picota, sassaricando vinham. Thu thu thu thu thu! Ela chamava.

E na legenda do cartão que amparado pela bailarina jazia, lá na mesinha de centro da sala, estava escrito; “Lembrança de Belém. Feira do Ver-o-Peso. Belém- Pará-Brasil”.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

crônica remix - o plasil e

O Plasil e a Crise dos Dez anos
O frasco de Plasil jaz solitário sobre a mesa. Fora abandonado ali depois de mais uma “última discussão” do casal, dos contendores, dos cônjuges, dos nervosos protagonistas da Crise dos Dez anos.
Antes porém haviam passado rasteiro pela Crise dos Sete. Nessa época havia prazer em dividir o mesmo teto. Tinham orgulho em estar emboletados nas teias do amor eterno. E a vidinha ia seguindo regada por muitos “abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim”...Até que sobreveio à Relação, a temida Crise dos Sete anos:
- Égua, a gente não tem uma casa, a geladeira tá caindo aos pedaços, e, toma, segura a neném, que é a tua vez. – Desandou a reclamar a mulher, volteando a perna no espaço à cata da outra banda da chinela, que nessas horas agoniadas nunca está à mão, digo, ao pé.
O companheiro redargüi já abusado daquilo tudo e encara a discussão:
- Segura tu, a menina. Éraste, mas tu também, não tens calma. Não tens paciência pra nada!
Ela detestava quando ele dizia que ela não tinha paciência. Perdia as estribeiras, soltava o verbo e xingava a estirpe do marido desde a mais remota geração. Impacientava-se e saía de cena chutando os brinquedos espalhados pelo chão (sem o maldito outro lado da sandália). Ele, irado, entrincheirava-se na cozinha e ameaçava quebrar todos os pratos da cristaleira. As crianças, largadas diante da TV, tentando entender os Teletubies e tudo mais.
É, esta fase é terrível mesmo. Quando ele cometeu o crime inominável de furar o congelador tentando “um gelinho pra tomar um isquinho”, foi a gota d’água. A Relação ficou por um fio. Iam apartar mesmo. Mas as crianças...Pô, tudo pelas crianças...
Resolveram a crise sozinhos, sem a ajuda de especialistas. A verdade é que se amavam ainda. Os filhos, lindos, enchiam a casa de alegria. Dava pra salvar a Relação. Remendaram o congelador com Durepox, acertaram os ponteiros e vararam a Crise dos Sete Anos numa boa. Sem nenhum prato quebrado.
Parabéns, parabéns. Parabéns para quem? Dez anos de relação e a crise vem devastadora:
- Égua, a gente não tem uma casa, a geladeira tá caindo aos pedaços, e anda, anda, vai buscar as crianças na escola. Já deu a hora.
- Vai tu, vai tu. Nem vem, que eu preciso descansar. E para com esse negócio de falar gritando comigo. – O companheiro rebate o desaforo da mulher esgoelando-se embora exija da parceira o mais delicado tom na voz.
- Ai meu Deus, eu não aguento mais esta vida! Estou enjoada de ti. De tudo...Enjoada. – Desespera-se a mulher, assumindo de vez a sua decantada impaciência.
Foi assim que, de noitinha, ele chegou com frasco de Plasil e disse que era para ela ir tomando aí, por esses dias.
- O quê, mas pra quê eu vou tomar isso? – Perguntou ela, fervendo de raiva.
- Tu não estás enjoada? Olha, vou te explicar...
Ela odiava, definitivamente, odiava quando ele dizia “vou te explicar” com aquele ar professoral, arrogante. Com aquela detestável cara de sabichão, como se toda a Britânica fervilhasse entre as suas orelhas. Destemperou-se. Xingou amigos, parentes e aderentes do marido e saiu para a cozinha, em direção à cristaleira.
Ele esbravejou. Gritou que ela não tinha calma, não tinha paciência e que ele não via mais futuro para os dois. Saiu chutando os chinelos espalhados pelo chão.
As crianças, largadas frente à TV., tentando entender o Tinky Winky e toda essa espécie de coisas. Da cozinha, o barulho escandaloso de pratos se espatifando contra a parede.

É, quando chega a quebrar pratos, é hora de dar tiau.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

crônica da semana - resoluções

Resoluções

Umas das minhas resoluções para o ano novo é, exatamente, não esquecer a palavra “resolução”. Éraste! desde a semana passada estava querendo escrever alguma coisa sobre metas, perspectivas, combinas, projetos para mais um ano, e desejava titular com este termo, mas o danadinho simplesmente tomou doril e sumiu da minha caixola. Fucei, lutei por ele, fui atrás. Queria porque queria usá-lo para definir minhas intenções para 2014. Uma porque é um termo simpático, outra, porque inspira compromisso. Quer dizer exatamente propósito, ou como diz a galera, “foco”. Pode significar também coragem, decisão. 
Conheci esta palavra há muitos anos, lendo uma história do Peninha, numa revistinha em quadrinho da Disney. Tratava da virada do ano e centrava os termos da ação em ‘resoluções’ que o Patinho atrapalhado tinha que fazer para o ano seguinte. Eu não sacava esta palavra. Sabia o que era revolução, isso eu sabia. Era metido a comunista, engendrava a queda do capitalismo; igrejeiro, intentava contra corações duros e insensíveis, sonhava com uma sociedade justa e igualitária. Agora, ‘resolução’, isso, não sabia não o que era. Depois, percebendo o andar da carruagem, deduzindo as pistas, entendi que as ditas resoluções do Peninha, seriam promessas que ele deveria cumprir no decorrer do ano que se avizinhava. 
De paz com os significados e de posse da palavra, miro no futuro. 
Pretendo, em 2014, trazer a poesia para meus textos. Não que me martirize por manter, já há algum tempo, uma narrativa quase que exclusivamente factual, nada disso. Este é o calibre da crônica, caminhar na calçada da vida. Mas a gente segue a vida aprendendo, né, se influenciando, admirando o trabalho dos outros. Em 2013, estreitei minha convivência com a poesia. Participei de alguns eventos ao lado dos grandes poetas paraenses da atualidade. Gostei. Me animei. Tem mais: além dos já consagrados escritores, me aproximei de gente jovem com alto poder de criação. Mas eu disse jovem mesmo. Uma petizada que está na conta dos 18, 20, 24 anos, no máximo. Neste rol estão as poetas Laila Maia, Letícia de Paula e Caroline Brito, estas, as estrelas, que fulguram como protagonistas no elenco do sarau, cá, do quintal. Além, encontramos a versatilidade do João Urubu, do Gabriel Gaya, e da trupe musical da banda Les Rita Pavone, uns meninos absolutamente geniais. Meu entusiasmo se agiganta quando tomo do texto encantador de Juliana Silva. Na prosa, ela poetiza. Na poesia, entontece. Para mim, é uma grande revelação. É uma bênção neste mundo estéril que vivemos. Com 17 anos, Juliana arrebatou dois prêmios, na última edição do programa Cobra Criada, desenvolvido pelo Governo do Estado e emplacou na publicação, uma crônica e um poema. Tem pegada, é versátil, escreve com ritmo e rima. Um talento que merece atenção. Sem contar que Juliana fotografa, toca cavaquinho, escreve em jornal...ufa! E ainda é aluna dedicada e das mais laureadas. 
Não tô rasgando seda de grátis pra essa garotada, não. É que de vera eles me tocaram, me deram um alô da nova escrita, do novo pensar poético. Chamaram a atenção para algumas travas que me assombravam amiúde. Estava meio distante da poesia. E olha que comecei por aí. Tenho alguns poemas bons que por ‘lilases vezes’ declamo algures. Mas datam de tão distante tempo, meu pai! Penso que é hora de voltar aos versos livres. Faz parte do feixe de minhas “resoluções" para o ano novo, espelhar-me em composições densas como esta de Juliana Silva: “No som me dispo/De todo sentimento/Desnuda em frente ao espelho/ Me desfaço”. 
Vou convidar a petizada pra’qui. 

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

crônica remix - ametista

Minha pedra é ametista
Domingo desses, na viagem aqui de Barcarena para Belém, desci no Ver-o-Peso, tracei um completo de coxinha de frango com suco de cupu, numa das barracas de lanche e fui dar um rolé pela feira (cedinho assim do dia é muito bacana aquele lugar. Rola o orgulho da diversidade ribeirinha ali em cores, sabores, odores. Na prosa e no jeito). E eis que, como por encanto, fui bater no corredor das erveiras. Naquela hora, lembrei que no meu aniversário pedi a amigos próximos, de presente, uma coleção daqueles vidrinhos com essências coloridas que são vendidos ali (como souvenires ou para precisão mesmo). Ninguém se abalou pra me aviar o gosto (o shopping, o shopping...nos afasta das tradições e nos reprime os desejos). E fiquei só na vontade. Em ali estando, não contei conversa. Eu mesmo me presenteei. Escolhi uma fieira sortida, pedi (ao erveiro!) um desconto e mandei embrulhar aquela ruma de simpáticos vidrinhos cujas essências mostravam-se em pigmentos variados, em volatizações agradáveis, e cada uma, com o seu cada qual: Talismã do emprego, Abre caminho, Atrativo da fortuna, Dama da noite, Dinheiro em penca, Faz querer quem não me quer, Afasta olho gordo, Chama homem, Talismã da felicidade, Chama mulher, Pega e não me larga, Talismã da sorte, Chora nos meus pés, Amansa corno, Carrapatinho, Chega-te a mim, Atrativo chama dinheiro...
Arrematei um feixe completo, não porque eu estivesse com urgentes necessidades, na pira, né. Era o meu presente. Tava a fim. E o certo é que gosto das histórias que as essências contam, me aprazem os dizeres, as cores fortes com que os extratos se apresentam. Compete, também, para a minha atenção aos produtos, as mensagens e intenções, sempre boas. Até o Amansa corno é uma essência de paz. Prega a resignação e o deixa pra lá (pra que estresse, já?).
Importa também saber que estou feliz. Pendurei a correntinha num cantinho da sala (meio que reproduzindo a disposição nas barracas lá do veropa) e fico apreciando aquele espetáculo matizado pendendo no vazio da parede. De vez em vez vou lá dar uma chacoalhadinha para energizar (e também pra provocar um contato animado entre os frascos, porque me é assaz agradável aquele barulhinho acanhado de vidrinhos atritando uns com os outros. Coisa minha, sabe, barato que não se explica).
Aí, passou, passou... e vi na TV que vai ter um remake da novela O Astro. A música-tema da novela (‘Bijuterias’, do João Bosco) logo me chamou a atenção e me lembrou das minhas manias.
A minha pedra também é a ametista. É uma pedra requintada, tem valor no comércio de gemas, enfeita colares, anéis e jóias finas. Não é, porém, feição que me agrada, a pedra lapidada. Prefiro a forma bruta. Aquela que traz os segredos e a simetria da criação. Tenho alguns exemplares aqui em casa. Cristais de lilases modestos (os mais agressivos, os mais intensos são ferrenhamente disputados pelo mercado), mas de brilho suficiente para me seduzir. A pedra exerce um fascínio milenar sobre os homens. Há uma crença de que ela ajuda a promover a paz e a acalmar o espírito. O brilho lilás da pedra é tido como anteparo para males e pensamento negativos (quanto mais afasta as maldades, mais fraquinho vai ficando o lilás).

Tenho meus tiques, mas dizque, não sou supersticioso. Procuro sustentar que minha inclinação para estas linhagens de talismã se dá pelo fator estético, pelos atrativos sensoriais (envolve cores, formas, simetrias, sons cheirosinhos...). Mesmo porque, não obstante, o lilás da ametista impressione, a minha cor preferida é o amarelo do citrino.