sábado, 18 de janeiro de 2014

crônica da semana - a chuva o frio

A chuva e o frio


O barracão era uma casa ‘altas e baixa’. Em cima, era organizado em um único quarto fechado com tábuas macheadas, e uma varanda bem espaçosa contornando o prédio. A parte de baixo era construída de piso assoalhado em madeira, dividido em sala e cozinha. Não havia um quarto só para as crianças. As redes, durante o dia, ficavam enroladas nos punhos, e à noite, na hora de dormir, ou até mesmo antes, para os meninos se embalarem, eram atravessadas às escápulas distribuídas aos quatro cantos. 
Na cozinha, a grande mesa. Um petisqueiro de madeira de um oleado enegrecido, pesado, opulento. Um balcão polido, mas em alguns pontos, riscado por sulcos profundos deixados pela faca amolada, na hora de talhar o peixe ou de amaciar o bife. Um fogão de barro imenso, com um vago embaixo, tapado com uma chapa de ferro com alça, que servia de forno. Na parede que recebia o sol da manhã, uma janela com abertura para dentro, descobria um espaçoso jirau montado com intercalações de pachiúba e tábuas lisas. Ali ficava o escorredor de louça, o escorredor de macarrão, as panelas tisnadas, os canecos esmaltados, um punhado de areia branquinha para arear as panelas, dois ou três baldes pequenos, cheios de véspera, com água do igarapé, e uma bucha vegetal para as primeiras precisões. 
Depois que alimentou os animais no terreiro (thu thu thu thu!), parou ali, na cozinha um tempo. Ajeitou um café novo para os homens que estavam na mata e deixou o bule sobre o fogão, aquecido por uma brasa branda. Depois subiu para o quarto. 
No quarto havia uma penteadeira com espelho ornado de folhinhas prateadas nos vértices, e uns poucos produtos de toucador misturados a objetos vulgares, na superfície ondulada do móvel. Uma cama desconfortável, com a espuma saltando em alguns pontos da colcha de retalhos e que fugiram à sua atenção. Uma caixa robusta de tampa pesada travada por uma fechadura enferrujada. Ali ficavam as roupas dela, do marido, dos meninos. Guardava também naquela caixa, os cortinados, os lençóis lavados, as toalhas de mesa que usava só em ocasiões especiais e tudo mais que houvesse de útil em tecido, menos os panos de prato, que guardava no petisqueiro, lá embaixo. Tudo sem passar, mas de alguma forma organizado. Cada peça com a sua afinidade e missão. Mexeu ali. Não procurava nada dentro da caixa, mas tinha esse costume de sempre abri-la pela manhã, pra ver se não tinha nada de pouco no uso e de muito sem usar. Percebeu, no canto, sobrepostos em direções diferentes de bainhas e colarinhos, os casaquinhos dos meninos, tecidos em flanelas de cores suaves, azulzinhas, roseazinhas, amarelazinhas. Alguns poucos eram de tricô em pontos densos, felpudos. 
Resgatou da lembrança, as chuvas e os frios de Belém. 
Em recortes saudosos, refez na mente os finais de tarde, na Pedreira. Ao lado da casa que ela morava havia um capinzal que depois das chuvas, sempre alagava e destarte, sazonalmente, aquele terreno baldio se transformava no palco para um sarau natural. Uma cantoria articulada entre os graves dos cururus e agudos dos grilos serelepes revolvia a quietude da esquina. 
As chuvas de Belém traziam o lirismo, a serenidade, a reflexão sobre o primitivismo da vizinhança que gritava ali ao lado, os insondáveis alertas e as imperscrutáveis alegrias do chão úmido. As chuvas de Belém traziam a paz, a vontade de pôr a meia e se aninhar no colo da mãe. Mas não trazia frio, não se expressava neste frio que faz com que os meninos usem casaquinhos felpudos e de cores suaves, ali no abrigo do barracão ‘altos e baixo’. Casaquinhos azulzinhos, rosadinhos, amarelinhos... 


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