sábado, 25 de janeiro de 2014

crônica da semana - quebra jejum

Quebra jejum

Quando a turma chegava para quebrar o jejum no barracão, o sol já ia alto. Cada qual trazia uma prenda. Um trazia leite dos animais que criava, outro trazia um quarto de paca, aquele que tinha pouco trazia um punhado de farinha e o que não tinha conseguido nada de mociço ou encorpado de proteínas, catava ervas para um chá, folhas para aromatizar o cozido. Sempre preparavam aquele primeiro comer da manhã com uma mesa farta em caldos e sustâncias, porque dali pra diante, ainda iriam se bater no emaranhado da juquira, no pretume da coivara, no vai-e-vem do arado, no descampado da semeação ou nos aperreios e suadeiras da colheita. 
Ganhavam a mata, ainda na alta madrugada. Naquele escuro desafiador e no instigante silêncio da floresta, enfiavam-se pelas ruas de seringa. A poronga iluminando o caminho e regendo o risco certeiro no tronco da árvore linheira. Abalavam-se dos barracos e largavam-se ao breu. Deixavam para trás a noite, os meninos, a mulher, o lote permitido, a roça concedida. Por aqueles dias, já podiam ter um quê de plantação, alguma criação. Nem sempre foi assim. O direito a ter uma rocinha e de criar uns animais, foi conquistado a peso de muita luta. Muito couro no lombo. Muito sangue foi derramado, muitos heróis tombaram nos alheios do chão amazônico, até que uma verdurinha pudesse vingar no terreiro das colônias. Quando mergulhavam na mata fincando tigelas nos caules sulcados, deixavam para trás, para mais com pouco, no tempo e na vontade, uma esperança de vida plantada. 
Naquele mesmo instante em que ela alimentava os animais no terreiro (thu thu thu thu thu!), a turma já estava concluindo o defumo e estocando as pélas. Depois, arrumada, a borracha já estava pronta para ser levada às casas de aviação, na cidade. Os homens, que desde as 4 da manhã se viravam na lida extrativista, agora, ali no barracão, podiam trocar uma prosa, picar um fumo, programar um piseiro, um mutirão. A reunião se estendia. Embora as mulheres, já estivessem emergindo das lavagens de roupa na beira do igarapé, e se oferecessem para um isso ou um aquilo, eles declinavam da ajuda e por si, se aviavam nas exigências do quebra jejum. Partiam o feixe de gravetos para o fogo, no seio da coxa; cozinhavam, acrescentavam o tempero. Davam uma prova do caldo na palma da mão, punham mais um tiquinho disso, daquilo. Davam outra prova. Desciam com os baldes, para encher com água boa, naquele poço do igarapé que ficava no caminho um tantinho acima do barracão. 
Gostava de ver aquela arrumação. O dia não batia nem nas dez horas, e já estava definido. Aquele era o momento de recompor as energias. E nada melhor do que todo mundo junto. Havia ali, naquela reunião, o compromisso, o companheirismo. Reinava uma alegria meio inexplicável, um congraçamento. A lida era penosa, sufocante. A coleta do látex era uma tarefa estigmatizada pela humilhação, pela severa lei. Mas a hora do quebra jejum, não era hora de reclamar. Era hora de ganhar força, resistir e de lá, correr para as roças. Desafiar a história. Semear tempos melhores. 
As delícias de Belém percutiam em lembranças boas, nos pensamentos dela, naquela hora. Revivia os encontros no Círio de Nazaré. Em meio ao alarido do terreiro, chegava-lhe aos lábios, o azedinho do tucupi, o travosinho do jambu. A família se encontrava todo mês de outubro para o pato, para a celebração, para a renovação de esperanças. E para, também, nos asfaltos de Belém, plantar o futuro. 
O quebra jejum era servido no barracão, alguém ligava o rádio e ela atinava para o sucesso do momento: “Você não é doce de coco...” 

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