sexta-feira, 30 de agosto de 2013

crônica da sema-espelho sem aço

Espelho sem aço



Muito bacana, a matéria do Fantástico no domingo passado que relembrou como era a vida de uma família que se atava assim, assim, com algumas coisinhas dentro de casa, que tinha algumas posses, no início dos anos 70. Vários utensílios, móveis, eletrodomésticos, bens de consumo (e também os penduricalhos do mercado virtual porque o telefone, a gente não pode esquecer que era um ativo financeiro, valia uma boa tacada na bolsa. Além do trim, quando a gente comprava um, a linha já vinha com umas ações embutidas) daqueles das antigas, foram reinseridos na rotina de uma família moderna. 
Mais que os atropelos temporais de uma família classe média, a  reportagem me despertou para o cotidiano de uma boa parcela da população que naquela época, não estava muito aquela de intimidade com estes mimos consumistas. Ou quando tinha um a ver, se viam era sim, com adaptações, funcionalmente desafiadoras. 
Televisão era um exemplo. Minha avó tinha? Tinha, mas...
Naqueles meados da década ainda vingavam as TVs em preto e branco, à válvula. As mais chiques tinham suporte em madeira que pareciam armários abrigando o aparelho. A da vovó, não. Era uma ‘Empire’ com quatro cambaleantes pés, seletor daqueles que estalavam, faziam um terequeteque assustador, ao serem girados na hora de trocar de canal e uma antena fincada numa base plana às vezes de cerâmica, outras de madeira ou de qualquer material que fosse pesadinho o bastante para não ficar caindo ou virando o par de varetas metálicas a todo instante. Tinha vezes que a gente tinha que posicionar a base da antena quase lá na cumeeira, pra ver se parava de passar aquela listra tremida e super chata que enfeiava a imagem.
A transmissão era um pé pra sair do ar. Sumia a imagem e ficava só o chuviscado na tela. A gente costumava a dar uns pisões fortes, no assoalho, aquilo parece que mexia com os brios da bicha e na maioria das vezes, a imagem voltava. Quando não voltava é porque o problema não era de humor do aparelho ou de um contatozinho carinhoso, é porque ‘era lá’. E se ‘era lá’, nem as chacoalhadas no piso traziam os programas de volta. O jeito era esperar.
(Quando chegamos do Acre, nós os Sodreres, moramos um tempo com minha avó, que tinha uma casinha modestamente mobiliada. Era uma casa arrumadinha com bibelôs de bailarina, elefantes, pinguins, na mesa de centro. Usufruíamos do que se tinha).
Embora fosse cheia de limitações, a TV era um vício garantido. Minha avó não largava o olho dela e ai de quem atravessasse a sala na hora que ela estivesse vendo o “Balança Mas Não Cai”. Logo que ela ralhava: “sai da frente, espelho sem aço”. O que isso queria dizer, até hoje não sei. Mas que era rapidola que o moleque saía da frente, ah, isso era.
(Depois de um tempo, ainda naqueles entremeios dos anos 70, fomos, os acreaninhos, morar sozinhos. Na casa nova, não tínhamos nada. Fomos juntando as coisas aos poucos. Redes, eram duas, para quatro. Revezávamos, e a mim, que era o único homem, eram garantidas as noites na cama patente, que era como a mamãe chamava aquele arrumadinho de panos no chão. Televisão era a da vizinha. Geladeira, os acreaninhos não tinham. Nem filtro, nem pote. Tínhamos uma bilha que conservava a água geladinha. Não éramos uma família típica da sociedade brasileira e isso para mim é um passado cheio de ensinamentos para o meu presente, ainda mais hoje em dia, neste mundo tecnológico em que pouca gente entende a importância de uma bilha na hidratação de personalidades, onde o Fantástico e pouca, muito pouquinha gente imagine o que seja, funcional e emocionalmente, uma bilha). 

terça-feira, 27 de agosto de 2013

crônica remix - heliocentrismo

O que os olhos vêem, o coração não sente
Este ano comemora-se o “Ano Internacional da Astronomia”. Muita gente dá de ombros quando sabe disso. Afinal, é normal achar que essas coisas do céu têm mais a ver com uns incorrigíveis tantãs.
Nem tanto.
Esta comemoração baseia-se nos 400 anos da invenção do telescópio (ou da adaptação deste instrumento por Galileu).
Com a utilização do telescópio, Galileu pode observar outros planetas e conseguiu perceber o movimento de pequenos astros em volta de Júpiter. Uma grande descoberta. Com aquela visão, Galileu balançou as estruturas medievais, as certezas imutáveis defendidas pela igreja. Ali, havia um testemunho claro de que nem tudo girava em torno da Terra (as luas de Júpiter giravam em torno de Júpiter). A Terra não era, então, o centro do universo. Aí já viu, né. Foi aquele quiproquó. Um para pra acertar que levou Galileu às barras da Inquisição.
A importância do telescópio, porém, vai além da simples observação do céu noturno. O telescópio inaugurou um momento histórico em que o homem se utiliza de intermediários tecnológicos para entender melhor o mundo. É a partir da utilização do telescópio (quando a gente começa a ver o ‘infinitamente grande’) que o mundo dos sentidos começa a ser questionado mais severamente. Começamos a desconfiar, a partir daí, que há cores, sons, texturas, sabores, odores que existem, nos rodeiam, mas não os conseguimos perceber somente com os sentidos. Desde então, o homem entendeu que para se integrar a este mundo que vai além das sensações, deveria admitir a necessidade de mediações, de instrumentos capacitados não só para localizar os fenômenos, mas também para medi-los (e o termômetro que usamos para medir a febrinha dos nossos filhinhos nos é revelador da validade deste entendimento).
Essa coisa de ultrapassar os sentidos me encanta. Não fosse por esta ousadia de Galileu, até hoje o sol estaria girando em torno da Terra. Uma questão deveras grandiosa porque, sem dúvida, é muito difícil de ser comprovada.
A teoria do Heliocentrismo, aquela que diz que a Terra gira em torno do sol, não é propriedade de Galileu. Vem de Copérnico, Kepler e deu fogueira pra muita gente. Tinha indícios de verdade, mas demorou para ser confirmada (foi demonstrada apenas em 1851 por Jean Bernard Léon Foucault, com o famoso pêndulo). Sabe por quê? Porque subordina-se, inevitavelmente, a que os olhos vêem.
Todos os dias de manhã, o que vemos é o sol nascer no horizonte leste e depois, caminhar (andar, mover-se) obediente pelo céu até desaparecer no horizonte oeste. É isso que os nossos sentidos nos dizem. Se a gente for ver direitinho, não há como pensar o contrário. Pode reparar, fazer o teste. Difícil fugir desta sugestão, né? Por isso é que Galileu, que não era besta nem nada, abjurou. Não tinha como provar o heliocentrismo.
Às vezes, eu amanheço os dias vivendo o século 17. Olho o nascente e admito a Terra como sendo o centro de tudo. Não muda muita coisa, não. A vida segue normalmente, com as vérsias e as controvérsias rotineiras. O meu suor escorre do mesmo jeitinho nas lidas operárias e a minha conta bancária não se bandeia para o lado direito da reta real, muito pelo contrário, insiste em pertencer, em estar contida no conjunto dos números inteiros não positivos. Mas, no correr da luta, reconsidero. Ao anoitecer, apanho o meu telescópio, que vive encostado ali no canto, esperando um sinal dos céus e miro o infinito neste milênio cheio de surpresas e decisões.

Por estas lentes companheiras, ‘minhas retinas tão fatigadas’ têm esperanças de, um dia, descobrir outras e maravilhosas luas. 

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

crônica da semana - o baile


O baile 
Não temia nada, naquele momento, Nem a morte, nem a má sorte; nem o sangue no canto da boca, o engano ou o desprezo. 
A pouca luz era a droga, o elixir para o atrevimento, para o entrelaço sem medida, interpenetrante, encaixante. Ativo e sufocante. Eu preciso. Desalinhar o colchete, destravar o zíper, diluir a moral na sensualidade da penumbra. 
Não tremia de pudor nem de desdém. Tremia de paixão, de servidão. Eu preciso. Sorver o suor, beijar com carinho, falar baixinho...No escurinho dos passos fora de ritmo. 
Naquele baile reinava o desejo. Outros casais caíam sobre o sofá, sobre a escada insuspeita, sobre a cegueira e a estupidez da censura. Eram passos desequilibrados, devastadores, revolucionários de rumo certo. Eu preciso. Ficar a sós contigo e te amar. 
Quando não estava no baile, estava na luta. Não tinha paradeiro certo. Podia ser encontrada zanzando pela beira, na Federal; assistindo a um clássico no Olympia; articulando com os companheiros no Aparelho. Mas de tardezinha, se a gente passasse pela Excelsior, ali na esquina da 1º de Março com a Santo Antônio, era um pé pra encontrá-la. Não resistia ao pão quentinho, e ao guaraná Garoto, no balcão da padaria. Trazia da infância este costume. Quando ainda morava com a família, na Pedreira, esperava o padeiro na porta da taberna. Quando ele despontava lá na esquina, pedalando a sua bicicleta de padeiro, ela se arranjava bem pertinho do grande cesto. Era como se um ritual ardente se realizasse todas as tardes, do mesmo jeitinho. Ele arriava o descanso da cargueira, descobria a caixa da frente, apanhava de uma vez só, três, quatro pães massa grossa ainda fumaçando e depositava na cesta do seu Paulo. Na mesma pisada, seu Paulo já ia aviando os fregueses. Apanhava o papel de pão, envolvia o pão e meio dela, lançava um fio em duas voltas, dava o nó, arrebentava o barbante com um solavanco e um estalo. Anotava o aviamento no caderno e despachava a garota. Em casa, o pão era bem divididinho ainda quentinho, com os irmãos. Já exercitava o seu lado comunista, na merenda da tarde. 
Quando a encontrei no balcão da Excelsior, ralhei com ela. Reclamei que havia batido a cidade toda e só estava ali, porque sabia do costume dela de comer meio pão com manteiga no balcão. Ela tirou da bolsa um panfleto, pôs em minha mão e justificou a distância dizendo que estava em outra. Não ia mais se gastar em noites ardentes, daria um tempo dos pecados do sexo, das drogas, dos mimos de amigos vazios. Estava em outra. O país passava por momentos difíceis, os poderosos sufocavam, destruíam sonhos. Resistências eram desmontadas a peso de bala, de tortura. Amigos estavam sendo mortos. O cenário era de superação. As massas precisavam ser atingidas, convocadas para a grande rebelião, para o grande confronto. Falava com certo entusiasmo, com um fervor tão grande que chegava a me comover. Enquanto falava, percebeu a presença de dois homens, do outro lado do balcão. Sentiu-se incomodada. Beijou-me a face, fez um carinho, fechou os olhos. Imperativa, me contou um segredinho ao pé do ouvido: “devemos repartir o pão”. Concluiu nossa conversa me oferecendo o bico de pão, o restinho de refrigerante da garrafa e saiu atravessando a Santo Antônio, no rumo do Ver-o-Peso. Instintivamente, baixei os olhos e devorei o bocado que ela deixou pra mim. Quando ergui os olhos de novo, percebi que os dois homens também haviam saído. 
Não temia nada, naquele momento, Nem a morte, nem a má sorte, nem o sangue no canto da boca, o engano ou o desprezo. Eu preciso. Não sofrer mais por amor. Depois daquele dia, nunca mais a vi. 

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Crônica remix - eu sou neguinha

Eu sou neguinha
Sempre fui comunista, mas hoje eu vou compor um verso melancólico, imitando o dia que nasce chorando. Um verso mudo igual ao teu silêncio, e vou sumir sem rima que me valha.
Hoje vou emporcalhar de vômito e lágrimas, a poesia. Vou deixar a ânsia convulsiva e repugnante ditar palavra por palavra as minhas tristes linhas e vou sumir sem rima que me valha. Hoje como para todo o sempre que me resta, vou parar de rir o riso fértil e vou procurar uma razão bêbada para gargalhar. Um motivo débil. Fútil.
Eu sempre fui comunista, mas...
Hoje vou querer reencontrar fantasmas que me atormentam: a tua voz em semitom cantando a música de um ritual satânico. Os teus cabelos finos, de cor indefinida, a entrelaçar-se em minhas mãos como cordas pendentes do cadafalso. Os teus movimentos nus, ousados. Calculados. Racionais.
Hoje vou chorar por tua ausência incorrigível, como há de ser o choro vadio de uma cadela noturna. Sem uma imagem que te faça presente. Hoje vou chorar sem meiguice. Sem um som ao longe que te anuncie ou um trinado frio que te denuncie. Porque para meu pesar, para a minha lúcida irritação, ouço apenas um pulsar de alerta no meu coração.
Mas nenhuma rima que me valha.
Então o meu verso é mudo
Igual ao teu silêncio
Hoje vou fazer um verso sem recatos. Um verso nu. Que flutue nas águas do estuário. E se perca nas correntezas incertas da solidão.
Um verso inquieto, ansioso. Do jeito que eu sou mesmo. Um verso que lute contra o tempo e contra o espaço abissal que se formou entre mim e os contornos insolentes do teu corpo. Entre mim e os desenhos indecifráveis de tua alma.
Eu sempre fui comunista, mas...
Hoje eu vou rir um sorriso idiota, regado a psicotrópicos e a alucinógenos verdes. Um riso regido por instintos ancestrais. Por postulados psicológicos. Por palavras duras de mãe. E vou escancarar os dentes sobressaltados, aos quatro cantos como uma demente feliz. Sem rima que me valha.
Hoje vou fazer um verso ressentido. De despedida. Um verso inútil. Que não vai ser recitado. Que não vai ser ouvido. Que não vai ser lido por ninguém. Um verso estéril. Um verso tísico.  Para nenhum mundo que me pariu. Para nenhum Raimundo que se perdeu. Sem seiva. Sem sumo.
Sem rumo.
Sem rima.
Sem lógica ou lírica metrificada.
Sem signos que o acudam.
Sem teoremas que o decifrem.
Hoje eu vou compor um verso desequilibrado. Provocador, igual à certeza da morte. Indelicado, que nem à indelicada monotonia. Indiferente, tal qual o teu silêncio. E vou pedir ao mundo um ramo de flores negras para vestir de saudade o meu breve (e definitivo) caminhar.
Eu sempre fui comunista. Hoje, sou neguinha.
E se eu voltar, procurando ar, vá-lá-que-seja, me jogue... Me poupe da violência de  um riso falso.
Me jogue pra baixo do tapete e me esqueça.
 

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Crônica da semana-coisar

Alguém apareceu no quintal (O flagra)
Naqueles tempos, havia apenas três telefones públicos no bairro. Um no Supermercado Carisma e outro no Pisco, localizados no eixo da Pedro Miranda e um outro deslocado para as quebradas, no bar Pedra Noventa, que ficava na Lomas com a Marquês.
(Ela morava por ali, ao pegado do Pedra Noventa. Não tinha telefone em casa. E também, o telefone do bar prestava-se mais para coisas do dia-a-dia: acionar uma ambulância, deixar recado para amigos, matar saudade de parentes distantes. Para os reclamos da paixão, não servia não).
Além do telefone público, um ar de vanguarda também pairava sobre o Pedra Noventa. Algumas fichas caiam sobre os jovens que se juntavam por lá e sobre a petizava que orbitava as reuniõezinhas dos grandes. Nessa época conheci sons profanos como o do Creedence; alucinados, como os ponteados de Santana, e ainda uns bregas em francês que marcavam as contradanças nas sedes do Santa Cruz e do 15. Eu não me metia na parada dos grandes, mas ficava ao largo, orbitando...
(Um dia ela me chamou para ver alguma coisa no quintal. A casa era quase de esquina. Tinha uma fachada clara, e um amplo ‘chagão’. Era por ali que a gente chegava, sem ser vistos, à sombra dos cajueiros. Ficamos por ali, falando coisas banais, catando sementinha do chão, fofocando temas do vulgo...Era um terreno úmido, um barro escuro e liso. Havia uma valetinha encostada da cerca, por onde escorria a água que vinha do jirau e ia dar num fundo cheio de capim. Um pé de café, um de caju, duas goiabeiras e umas quantas pimenteiras, completavam aquela paisagem agradável e perfumada).
Entre os grandes, que já tomavam uma coisinha mais forte e ouviam jazz, no balcão do bar Pedra Noventa, alguns já galgando degraus importantes na vida. Haroldo, calouro de Letras, com a cabeça raspada e a boina da Federal e Corôa, graduando e já versado em Engenharia Florestal na Escola de Agronomia do Pará. Galo, Torto, Pindoba, Nazaco, Pela-Pela, Deonde e Lourival, completavam a turma. Com destaque para Lourival que além de contumaz frequentador do balcão era um músico de primeiríssima e, apesar do joelho bichado, mandava prender e mandava soltar, como quarto beque, na zaga do Natal. Todos, de certa forma, eram meus ídolos. Não sei bem por que. Talvez pela tez libertária com que recobriam suas vidas.
(Naquele dia, o bar Pedra Noventa estava movimentado. Alguém tinha trazido uma fita nova, de uns grupos caribenhos, e o dono a pôs pra tocar a tarde toda. No quintal, estávamos a sós, nos sentíamos protegidos pelo alvoroço que ocorria na rua. Largado, quase no meio do terreiro, havia um camburão. Um tonel, um tambor desses de 200 litros. Não sei o que aquilo fazia ali. Não combinava com nada naquele quintal, a não ser com minhas propriedades anatômicas. Ela me dobrou sobre o camburão e eu me ajeitei com as costas alinhadas sobre ele. Fiquei assim meio indefeso. Segurou minhas mãos acima da minha cabeça, pressionou o corpo contra o meu e começou a falar. Tinha uma dicção ruim. Eu até entendia o que estava implícito naquela situação, mas me faltava o texto, a verbalização. Ela desandou em verbos que não sei explicar até  hoje direito quais eram. Imagino. Amar, beijar, coisar, deitar, deixar. Fazer, ter, beber, comer. Tinha uma dicção ruim. Subir, tirar, sentir, abrir, bulir. Tinha uma pronúncia ruim, e até me pedia respostas. Meu corpo respondia não com palavras,  eu era ainda bebê, apenas orbitava os rapazes mais taludinhos. Minhas costas doíam. Umbora, dizia ela e aí eu entendia...).
De repente, alguém apareceu no quintal e não havia telefone na casa.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

crônica remix -botafogo

O glorioso
" Guardo até hoje, íntegro, o sentimento do primeiro encontro. Foi no minúsculo estádio de General Severiano, na tarde do dia 10 de setembro de 1944. Tinha eu acabado de chegar de Xapuri (...) O Botafogo é bem mais que um clube - é uma predestinação celestial. Seu símbolo é uma entidade divina. Feliz da criatura que tem por guia e emblema uma estrela. Por isso é que o Botafogo está sempre no caminho certo. O caminho da luz. Feliz do clube que tem por escudo uma invenção de Deus”.
O trecho acima foi extraído da crônica “O Botafogo e eu”, do jornalista Armando Nogueira. Meu conterrâneo era um apaixonado pelo clube, “e com tal zelo” que no final da crônica afirma: “O Botafogo sou eu mesmo, sim senhor”. No último domingo, os torcedores botafoguenses, mesmo aqueles dispersos no mais improvável rincão do Xapuri, avalizaram o sentimento do cronista. No gramado do Maracanã, estávamos todos, junto ao guarda-meta Jefferson, ali, abrigados no peito do goleiro, sob a égide da Estrela Solitária. E saltamos destemidos para, com um tapinha instintivo, provedor, dispersarmos o fogo inimigo para longe da nossa área. ‘O Botafogo somos nós, sim’ e saltamos junto com o Jefferson para honrar as tradições do glorioso.
O Botafogo tem esta capacidade de suscitar insuperáveis paixões. De reger fidelidades, instituir amores. Ratificar loucas e imponderáveis opiniões.
Mas, “há sempre um pouco de razão na loucura”. Os meus porquês para este apego sem regras ao Botafogo, não são tão celestiais (ou são?) assim, como os do ilustre jornalista acreano. Estão ali do lado direito do campo. E nem vou contar com o Garrincha. Quando cheguei aqui, (vindo, assim como o Armando Nogueira, das terras encantadas do Xapuri), e tomei termo nesta Belém amada, o Garrincha já havia deixado o Botafogo (jogou no Botafogo de 1953 a 1965). O grande astro do alvinegro carioca, por aqueles dias, era o Jairzinho, que com muito vigor e estilo reiterava a missão sagrada de jogar na ponta-direita do Botafogo. Naquele tempo as jogadas de fundo, o talento exibido em espaços exíguos do campo, os guizas e os dribles curtos e devastadores ainda eram valorizados (depois veio o overlap, o ponto futuro, a tal da tática positivista, o obediente ‘Búfalo Gil’... e o ponta reduziu-se acanhado e sem sal, até sumir). Tanto que a crônica esportiva reconheceu que para atuar ali o jogador tinha que ter a essência, tinha que ter o dom. Tinha que ser um ‘ponta nato’. Tinha que nascer com a chama, com o brilho. E tinha que provocar espanto, deslumbre, êxtase e encantamento. O Botafogo, naqueles tempos, produziu uma sequência memorável de jogadores. Era de impressionar (e quem viu o jairzinho jogar na copa de 70, vai me dar razão. O cara arrebentou. Foi o nome, dentre os nomes daquela seleção. Parecia que estava possuído por uma força estranha. Fez gol em todos os jogos daquela grande conquista. Um fenômeno!).
Impressionei-me e virei um botafoguense ali, ó, no jeito.
Logo depois do Jairzinho, o Botafogo lançou o Zequinha. Era o tipo do ponta serelepe. Sassariqueiro. Era um espetáculo. Dava gosto de ver o zequinha jogar. No templo sagrado do futebol, Zequinha jogava como se estivesse com a minha pariceirada, no sábado de manhã, lá no campo do Asas do Brasil. À vontade, muito à vontade para ir até a linha de fundo, cruzar e nos fazer felizes.
As minhas razões para morrer de paixão pelo Botafogo são meio que uma gratidão pelos momentos em que o clube nos presenteou com a arte pura do futebol. (E também, remetem aos surpreendentes Fischer e Ferreti, nossos ‘El loco Abreu’ de antes. Mas isso é outra história).

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

crônica da semana - papai

Amar e outros medos (A visita)


A Marquês de Herval, no início dos anos setenta era um campo minado de prazeres, mistérios e medos insensatos. 
Entre os prazeres, os quintais de terra batida tomados de camapu, cajueiros baixinhos, goiabeiras descaídas, segredos e concupiscências impregnados às cercas de madeira farpada. 
Os mistérios, por sua vez,  se desenhavam naquela brisa que vinha dali das bandas do igarapé do Zé. Um vento animado, amigo, mas de origem enigmática. Mamãe dizia que além daquela mata, campeava a Matinta. Aquele movimento de ar, que ganhava força à tardinha e se embrenhava pelos escaninhos da avenida, criam os mais velhos, que era o sopro da encantada. Até hoje, quando percebo esta corrente de ar varando os canteiros da Marquês, ganhando o canal da Pirajá e sobrando um cicio aqui pro meu quintal, sinto um arrepio, uma excitação que não sei bem se é um deleite, um arrebatamento, ou uma cuidadosa introspecção, um temor contido. 
Quanto ao medo explícito, havia o medo na Marquês dos anos setenta. Mas não o meu medo. Havia um medo espalhado pelo corredor da casa em que a gente morava. 
Era uma casa antiga, ainda de enchimento. Tinha uma fachada alta com detalhes em relevo, na testeira. Um corredor pouco iluminado cortava a modesta alvenaria de fora a fora. Aqui e ali um desvio, uma entrada para o vão da sala, um acesso para os quartos, a bifurcação para a cozinha e banheiro. 
Certo dia, minha avó, sentada na cadeira de balanço, desviando o olhar de um programa banal que passava na TV Colorado RQ, deu com o meu pai, em pé, rindo pra ela, abrigado à penumbra do corredor. 
Foi um corre-corre. Um disse-me-disse. Apreensões e induções. Seria um aviso? Meu pai estava a quilômetros de distância, no seringal São Miguel, em Xapuri. Aquilo era um presságio. Depois desse dia o corredor virou terra de calafrios e medos. Todo mundo varava a casa de uma ponta a outra com um certo receio, uma velada apreensão. 
Mas eu não me intimidava com o risco daquela aparição. Queria mesmo era ver meu pai. Ao contrário dos outros, vivia zanzando pelo corredor, ainda mais nos horários em que o sol se escondia e o escuro e a ansiedade tomavam conta de mim e daquele lugar. Queria ver meu papai, ir pro colo dele, acariciar-lhe a face, tomar bença. Passar a mão no cabelo pixaim, na barba espetenta. Pediria que ele me contasse histórias do seringal, do igarapé Ina, aquele que tinha um atoleiro e que prendia as mulas com as cargas. E era uma luta pra sair dali. Era o que eu queria. Que ele falasse dessas aventuras. E me contasse sobre as brenhas, sobre os índios e os longes de seringa. Era. Queria também, dizer que o amava pra caramba. Que queria tê-lo sempre ao meu lado e pediria que ele não viajasse mais, que não se afastasse mais da gente. Confirmaria, porém, que mesmo longe, ele era o mais bonito, carinhoso, sorridente e bondoso pai do mundo. Ah, não tenho medo de te encontrar neste escuro, reafirmaria a ele. Falaria a todo instante que sempre o procuraria, mesmo que nos breus da vida. 
Eu não tinha medo daquele corredor. Queria porque queria encontrar meu pai ali, porque depois daquele dia que minha avó se assustou com ele, desviando o olhar de um programa de TV sem graça. Depois daquele dia, perdemos meu pai para o nunca mais. Depois daquele dia, não mais ninguém o viu. Encerrou-se, meu pai, em terras acreanas, misturou-se às raízes das seringueiras e não mais voltou para nós, nem mesmo em imagens difusas no corredor. 
Havia um medo espalhado pelo corredor da casa em que a gente morava. Não o meu medo. Queria mesmo era ter meu pai. 

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

crônica da semana - com mais de mil

Com mais de mil

Coisas incríveis acontecem nas areias da Princesa. 
A vastidão de areinha branca se estende por quase 4 quilômetros, desde a duna mais saliente conhecida como ‘morro’, até o Furo Velho, na fronteira com Fortalezinha. No meio, o desvio para um caminho desafiador, assim de ajiru de um lado, d’outro e lá na frente, depois de um solzinho no cocuruto e uns reclamos de cansaço, escavado entre as dunas, o lago de água escura. 
O estirão de areia da Praia da Princesa em Algodoal se dispõe num pontal meio de través, descaindo um tantinho abaixo do alinhamento leste-oeste. Pois bem...Foi nessa direção, que desembestei. 
A primeira vez foi filezinho, uma corridinha sem custo. Vento brando arrastando um saco plástico. Uma pequena logo atrás se aperreando. Eu ia com minha turminha, para o lago. Vi aquela correria alvoroçada na minha direção, saquei aquele ‘pega-não-pega o saco plástico’ da menina e na horinha me impus a missão de ajudá-la. Dei uns passinhos pra direita, me adiantei num pique vigoroso pela areia e aparei o saco plástico na maior caté, com o pé. A moça que vinha atrás, na pisada que vinha, nem conseguiu frear e deu de encontra comigo. Meio desequilibrado, resgatei do chão o perseguido e o devolvi para a dona. Curioso, perguntei quanta grana tinha guardada ali, porque o interesse dela em apanhá-lo era grande, quase que alucinado. Para meu agrado, a pequena respondeu que não tinha nada dentro do saco, havia subtraído o conteúdo, umas bolachinhas doces, no caminho e na hora de guardar no bolsinho da mochila, o plástico lhe escapou da mão e voou pra longe com o vento. Saiu atrás só porque não queria deixar resíduo, não queria sujar a Praia da Princesa. Taí, gostei de ter participado de uma ação com objetivo tão puro e nobre. Saí meio que como um herói da parada. Todo posudo. Metidão. Me achando. Com status de sujeito indispensável na hercúlea tarefa de salvar do planeta. 
Já no adiantado da caminhada de volta, bem além do Bar da Pedra, eu que ia na frente com minha filha, fui novamente acionado, pelo resto da patota que vinha contando passo e apreciando a mini-tempestade que dispersava uma nuvem de areia fina  por toda extensão da praia. Os meninos deram o alarme e quando me virei, vi passar por mim uma banda de sandália sendo levada pelo vento. Não houve tempo pra avaliar a situação. Disse alguma coisa como “segura aqui” para minha menina e saí com mais de mil atrás. O único lampejo analítico que tive era que ali, eu estava tendo uma baixa no orçamento das férias: uma sandália de marca é uma boa grana. E como disse Argelzinho, meu filho, “corri como se não houvesse amanhã”. Fiquei na biqueira da marca do Usain Bolt. Quase alcanço a bichinha, mas não consegui. Depois de um tantão de metros percorridos, frustrado, voltei, na baba, aos meninos lamentando a perda. Qual não foi a minha surpresa quando me falaram que a sandália não era de ninguém do nosso grupo. “Como assim?”, perguntei inconformado. Eles me alertaram apenas pela curiosidade de uma sandália engatada numa linha de papagaio, ser arrastada pelo vento, nada mais. Segundo os meninos, corri de pateta que sou (ou porque peguei corda com o resgate do saco plástico, ocorrido no início da tarde, e estava curtindo meus momentos de herói). Dei um pique velocíssimo de grátis. Sem quê, nem pra quê, como se não houvesse amanhã. Mas havia. No dia seguinte, o meu joelho bichado inchou e me deixou de cama o resto das férias. Ah, a baixa no orçamento se confirmou, também. Quando me danei a correr, larguei a minha própria chinela lá atrás e não mais a encontrei.