sexta-feira, 23 de agosto de 2013

crônica da semana - o baile


O baile 
Não temia nada, naquele momento, Nem a morte, nem a má sorte; nem o sangue no canto da boca, o engano ou o desprezo. 
A pouca luz era a droga, o elixir para o atrevimento, para o entrelaço sem medida, interpenetrante, encaixante. Ativo e sufocante. Eu preciso. Desalinhar o colchete, destravar o zíper, diluir a moral na sensualidade da penumbra. 
Não tremia de pudor nem de desdém. Tremia de paixão, de servidão. Eu preciso. Sorver o suor, beijar com carinho, falar baixinho...No escurinho dos passos fora de ritmo. 
Naquele baile reinava o desejo. Outros casais caíam sobre o sofá, sobre a escada insuspeita, sobre a cegueira e a estupidez da censura. Eram passos desequilibrados, devastadores, revolucionários de rumo certo. Eu preciso. Ficar a sós contigo e te amar. 
Quando não estava no baile, estava na luta. Não tinha paradeiro certo. Podia ser encontrada zanzando pela beira, na Federal; assistindo a um clássico no Olympia; articulando com os companheiros no Aparelho. Mas de tardezinha, se a gente passasse pela Excelsior, ali na esquina da 1º de Março com a Santo Antônio, era um pé pra encontrá-la. Não resistia ao pão quentinho, e ao guaraná Garoto, no balcão da padaria. Trazia da infância este costume. Quando ainda morava com a família, na Pedreira, esperava o padeiro na porta da taberna. Quando ele despontava lá na esquina, pedalando a sua bicicleta de padeiro, ela se arranjava bem pertinho do grande cesto. Era como se um ritual ardente se realizasse todas as tardes, do mesmo jeitinho. Ele arriava o descanso da cargueira, descobria a caixa da frente, apanhava de uma vez só, três, quatro pães massa grossa ainda fumaçando e depositava na cesta do seu Paulo. Na mesma pisada, seu Paulo já ia aviando os fregueses. Apanhava o papel de pão, envolvia o pão e meio dela, lançava um fio em duas voltas, dava o nó, arrebentava o barbante com um solavanco e um estalo. Anotava o aviamento no caderno e despachava a garota. Em casa, o pão era bem divididinho ainda quentinho, com os irmãos. Já exercitava o seu lado comunista, na merenda da tarde. 
Quando a encontrei no balcão da Excelsior, ralhei com ela. Reclamei que havia batido a cidade toda e só estava ali, porque sabia do costume dela de comer meio pão com manteiga no balcão. Ela tirou da bolsa um panfleto, pôs em minha mão e justificou a distância dizendo que estava em outra. Não ia mais se gastar em noites ardentes, daria um tempo dos pecados do sexo, das drogas, dos mimos de amigos vazios. Estava em outra. O país passava por momentos difíceis, os poderosos sufocavam, destruíam sonhos. Resistências eram desmontadas a peso de bala, de tortura. Amigos estavam sendo mortos. O cenário era de superação. As massas precisavam ser atingidas, convocadas para a grande rebelião, para o grande confronto. Falava com certo entusiasmo, com um fervor tão grande que chegava a me comover. Enquanto falava, percebeu a presença de dois homens, do outro lado do balcão. Sentiu-se incomodada. Beijou-me a face, fez um carinho, fechou os olhos. Imperativa, me contou um segredinho ao pé do ouvido: “devemos repartir o pão”. Concluiu nossa conversa me oferecendo o bico de pão, o restinho de refrigerante da garrafa e saiu atravessando a Santo Antônio, no rumo do Ver-o-Peso. Instintivamente, baixei os olhos e devorei o bocado que ela deixou pra mim. Quando ergui os olhos de novo, percebi que os dois homens também haviam saído. 
Não temia nada, naquele momento, Nem a morte, nem a má sorte, nem o sangue no canto da boca, o engano ou o desprezo. Eu preciso. Não sofrer mais por amor. Depois daquele dia, nunca mais a vi. 

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