terça-feira, 20 de agosto de 2013

Crônica remix - eu sou neguinha

Eu sou neguinha
Sempre fui comunista, mas hoje eu vou compor um verso melancólico, imitando o dia que nasce chorando. Um verso mudo igual ao teu silêncio, e vou sumir sem rima que me valha.
Hoje vou emporcalhar de vômito e lágrimas, a poesia. Vou deixar a ânsia convulsiva e repugnante ditar palavra por palavra as minhas tristes linhas e vou sumir sem rima que me valha. Hoje como para todo o sempre que me resta, vou parar de rir o riso fértil e vou procurar uma razão bêbada para gargalhar. Um motivo débil. Fútil.
Eu sempre fui comunista, mas...
Hoje vou querer reencontrar fantasmas que me atormentam: a tua voz em semitom cantando a música de um ritual satânico. Os teus cabelos finos, de cor indefinida, a entrelaçar-se em minhas mãos como cordas pendentes do cadafalso. Os teus movimentos nus, ousados. Calculados. Racionais.
Hoje vou chorar por tua ausência incorrigível, como há de ser o choro vadio de uma cadela noturna. Sem uma imagem que te faça presente. Hoje vou chorar sem meiguice. Sem um som ao longe que te anuncie ou um trinado frio que te denuncie. Porque para meu pesar, para a minha lúcida irritação, ouço apenas um pulsar de alerta no meu coração.
Mas nenhuma rima que me valha.
Então o meu verso é mudo
Igual ao teu silêncio
Hoje vou fazer um verso sem recatos. Um verso nu. Que flutue nas águas do estuário. E se perca nas correntezas incertas da solidão.
Um verso inquieto, ansioso. Do jeito que eu sou mesmo. Um verso que lute contra o tempo e contra o espaço abissal que se formou entre mim e os contornos insolentes do teu corpo. Entre mim e os desenhos indecifráveis de tua alma.
Eu sempre fui comunista, mas...
Hoje eu vou rir um sorriso idiota, regado a psicotrópicos e a alucinógenos verdes. Um riso regido por instintos ancestrais. Por postulados psicológicos. Por palavras duras de mãe. E vou escancarar os dentes sobressaltados, aos quatro cantos como uma demente feliz. Sem rima que me valha.
Hoje vou fazer um verso ressentido. De despedida. Um verso inútil. Que não vai ser recitado. Que não vai ser ouvido. Que não vai ser lido por ninguém. Um verso estéril. Um verso tísico.  Para nenhum mundo que me pariu. Para nenhum Raimundo que se perdeu. Sem seiva. Sem sumo.
Sem rumo.
Sem rima.
Sem lógica ou lírica metrificada.
Sem signos que o acudam.
Sem teoremas que o decifrem.
Hoje eu vou compor um verso desequilibrado. Provocador, igual à certeza da morte. Indelicado, que nem à indelicada monotonia. Indiferente, tal qual o teu silêncio. E vou pedir ao mundo um ramo de flores negras para vestir de saudade o meu breve (e definitivo) caminhar.
Eu sempre fui comunista. Hoje, sou neguinha.
E se eu voltar, procurando ar, vá-lá-que-seja, me jogue... Me poupe da violência de  um riso falso.
Me jogue pra baixo do tapete e me esqueça.
 

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