sexta-feira, 9 de agosto de 2013

crônica da semana - papai

Amar e outros medos (A visita)


A Marquês de Herval, no início dos anos setenta era um campo minado de prazeres, mistérios e medos insensatos. 
Entre os prazeres, os quintais de terra batida tomados de camapu, cajueiros baixinhos, goiabeiras descaídas, segredos e concupiscências impregnados às cercas de madeira farpada. 
Os mistérios, por sua vez,  se desenhavam naquela brisa que vinha dali das bandas do igarapé do Zé. Um vento animado, amigo, mas de origem enigmática. Mamãe dizia que além daquela mata, campeava a Matinta. Aquele movimento de ar, que ganhava força à tardinha e se embrenhava pelos escaninhos da avenida, criam os mais velhos, que era o sopro da encantada. Até hoje, quando percebo esta corrente de ar varando os canteiros da Marquês, ganhando o canal da Pirajá e sobrando um cicio aqui pro meu quintal, sinto um arrepio, uma excitação que não sei bem se é um deleite, um arrebatamento, ou uma cuidadosa introspecção, um temor contido. 
Quanto ao medo explícito, havia o medo na Marquês dos anos setenta. Mas não o meu medo. Havia um medo espalhado pelo corredor da casa em que a gente morava. 
Era uma casa antiga, ainda de enchimento. Tinha uma fachada alta com detalhes em relevo, na testeira. Um corredor pouco iluminado cortava a modesta alvenaria de fora a fora. Aqui e ali um desvio, uma entrada para o vão da sala, um acesso para os quartos, a bifurcação para a cozinha e banheiro. 
Certo dia, minha avó, sentada na cadeira de balanço, desviando o olhar de um programa banal que passava na TV Colorado RQ, deu com o meu pai, em pé, rindo pra ela, abrigado à penumbra do corredor. 
Foi um corre-corre. Um disse-me-disse. Apreensões e induções. Seria um aviso? Meu pai estava a quilômetros de distância, no seringal São Miguel, em Xapuri. Aquilo era um presságio. Depois desse dia o corredor virou terra de calafrios e medos. Todo mundo varava a casa de uma ponta a outra com um certo receio, uma velada apreensão. 
Mas eu não me intimidava com o risco daquela aparição. Queria mesmo era ver meu pai. Ao contrário dos outros, vivia zanzando pelo corredor, ainda mais nos horários em que o sol se escondia e o escuro e a ansiedade tomavam conta de mim e daquele lugar. Queria ver meu papai, ir pro colo dele, acariciar-lhe a face, tomar bença. Passar a mão no cabelo pixaim, na barba espetenta. Pediria que ele me contasse histórias do seringal, do igarapé Ina, aquele que tinha um atoleiro e que prendia as mulas com as cargas. E era uma luta pra sair dali. Era o que eu queria. Que ele falasse dessas aventuras. E me contasse sobre as brenhas, sobre os índios e os longes de seringa. Era. Queria também, dizer que o amava pra caramba. Que queria tê-lo sempre ao meu lado e pediria que ele não viajasse mais, que não se afastasse mais da gente. Confirmaria, porém, que mesmo longe, ele era o mais bonito, carinhoso, sorridente e bondoso pai do mundo. Ah, não tenho medo de te encontrar neste escuro, reafirmaria a ele. Falaria a todo instante que sempre o procuraria, mesmo que nos breus da vida. 
Eu não tinha medo daquele corredor. Queria porque queria encontrar meu pai ali, porque depois daquele dia que minha avó se assustou com ele, desviando o olhar de um programa de TV sem graça. Depois daquele dia, perdemos meu pai para o nunca mais. Depois daquele dia, não mais ninguém o viu. Encerrou-se, meu pai, em terras acreanas, misturou-se às raízes das seringueiras e não mais voltou para nós, nem mesmo em imagens difusas no corredor. 
Havia um medo espalhado pelo corredor da casa em que a gente morava. Não o meu medo. Queria mesmo era ter meu pai. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário