domingo, 27 de dezembro de 2020


                                    Ensaio 1

sábado, 26 de dezembro de 2020

crônica da semana - vacina

 Uma pinicada no braço de presente

O Natal sempre teve como alvo as crianças, e também, conte-se que este público demanda uma tomada de decisão mais fácil e concreta: para as crianças, brinquedo. Palpável, de verdade o suficiente para permitir a alegria e o imenso folguedo da petizada na manhã do dia 25.

Para os adultos a técnica já desvia para o abstrato. Desejamos felicidade, alegria, realizações. Que papai do céu entregue na janelinha do coração da gente, um tiquinho assim de paz.

Isso antes de 2020.

Porque neste Natal, crianças, adultos, nós os velhinhos, o que esperamos mesmo de presente é a materialidade de uma seringa pinicando no braço a vacina que vai nos proteger do Coronavírus.

É o meu maior desejo para este Natal.

Vacina para todo mundo. Entendo que neste caso, o coletivo ascende ao individual e não tem esse negócio de ‘não vou tomar vacina’, não. É absolutamente necessária, para combater o vírus, uma proliferação de seres humanos imunes. E libertos do preconceito, do negacionismo, da intolerância, da ignorância e do desprezo pelo compromisso com o outro.

Não baste este meu entendimento em favor da vacina, há outro bem mais persuasivo, dirigido aos incrédulos. Sem vacina, difícil a vida que segue.

Quem não se habilita tomar a vacina pode morrer, e também, pode matar alguém de Covid. Em quaisquer das situações, ‘a vida vai ser severamente impactada’.

Outras tentativas de persuasão: chance nenhuma tem, caso esteja pensando num rolé, de viajar para o exterior; pretenda, por algum talento, conseguir emprego, não vai passar na seleção; usufruir das ações de políticas públicas, penso que vai ser muito difícil. Matrícula em qualquer curso regular será, por certo, negada sem o comprovante da vacina.

É só um alerta, e asseguro, não é oportunista, gratuito ou obra de alguma sutileza política. Dou a dica porque já passei por todas as situações que citei acima, e em todas elas, para que conseguisse sucesso, tive que apresentar minha carteirinha.

Tem até um causo sobre a vacina contra a febre amarela. Aliás, sem esse comprovante, nem saia de casa. Nas viagens que fiz a trabalho e a passeio para o exterior, era logo avisado da atualização. Houve um ano, que fiquei blefado, sem grana, sem emprego, sem rumo. Quando meu currículo foi aceito por uma empresa do Amazonas, corri para a rodoviária, para atualizar a dose da antiamarílica. A aplicação era na pistola. Quando o agente apertava o gatilho, não tinha bom. O camarada arriava na hora. Doía pra dedéu. Peguei meu cartão e guardei bem guardadinho. Era documento exigido para meu novo emprego.

Acontece que guardei bem guardadinho, mas tão bem guardadinho, que quando cheguei à portaria da empresa (era comprovante que pediam na portaria. Não podíamos nem entrar para os finalmentes documentais se não tivéssemos o cartão em mãos), tão guardadinho estava que virei, mexi na minha mala, e não achei o bendito. Risco sério de perder minha vaga. Liga pra cá, liga pra lá, embora eu jurasse de pé junto que havia me vacinado, não aceitaram minha palavra. Fui encaminhado a um posto de saúde em Manaus para tomar outra dose. Resultado: arriei de novo. A bicha doía pra dedéu. Depois desse sufoco, tenho mantido atualizada minha carteirinha. Às vezes, guardo bem guardada e perco de novo. Vou ao posto e renovo. Não é mais na pistola.

Meu desejo, de coração, neste Natal é de concretude. Ações efetivas pela saúde. Vacina para todos.

 

sábado, 19 de dezembro de 2020

crônica da semana - vô Firmino

 Vô Firmino

Tenho em mim uma troca de energia pra lá de positiva com o Acre. Coisa da ancestralidade. Saí de lá molequinho sem tino, passei uma eternidade longe, mas quando dei de voltar, era como se estivesse ido bem ali rapidola tomar de assalto uma guarnição boliviana. Cheguei chegando. Éraste! Parece uma coisa. Um conforto, uma empatia, que não senti em outros lugares por onde andei. Um exemplo que posso dar aqui, foi o que aconteceu em Manaus. Cidade que me era atravessada. Quando andei por lá, vivia me perdendo. Tudo pra mim tinha que começar e terminar na Praça da Polícia. Era bater os pés em Manaus e a leseira recair sobre mim. Às vezes, estava a um passo do meu destino, mas me dava uma doida, um abirobamento, tinha porque tinha que voltar para a praça e depois é que eu empinava para novos rumos. Um desnorteio só.

Depois de formado pela Escola Técnica, de ter-me auto proclamado autêntico e apaixonado paraense papa-chibé, haver conseguido emprego em Rondônia que é bem ao pegado do Acre, veio a chance de conhecer minhas origens. A terra do meu papai.

Tinha três dias por mês livre do meu trabalho em Rondônia. Numa dessas folgas, dei uma escapulida e varei no Acre. Pouco tempo. O ocorrido deu-se em 1983. Tempo pra dedéu. A memória custa a localizar marcas daquela visita tão curta. Sei que quando desembarquei, nem me abalei assuntando ou consultando mapas. Tinha só uma mochilinha mesmo, andei um pedacinho pela calçada até uma parada de ônibus, peguei o primeiro que passou. Não era um acreano. Era um paraense juramentado. Mas parecia. Tinha uma desenvoltura que só vendo. Não estava regressando. Lembrança nenhuma guardava da infância que me aproximasse em termos e modos daquele lugar. Mas atravessei a ponte de ferro pegando aquele ventinho na janela do ônibus, na maior leveza. Desci no centro, bati perna. Visitei prédios históricos, o palácio Rio Branco, a praça da Revolução, descansei ao pé da estátua de Plácido de Castro, almocei mais adiante e no início da tarde, como se guiado pelo instinto, dei na rodoviária no horário certinho que saía o ônibus para Xapuri. Era esse o meu plano. Viajar à tarde, no rumo oeste, pra ver se era certeira a história que dizia o sol não se pôr no Acre.

Quando cheguei a Xapuri, o sol já havia se posto há um tempo e a noite era uma verdade concreta e estrelada.

Penso que ante o desconcerto de um encontro inesperado, que acometeu a banda acreana da minha família, por não imaginar, de jeito e maneira, aquele paraense desconhecido aparecendo do nada, na calçada da rua da Gaveta, o que me ocorreu de mais cômoda e pretensiosa interação, foi fazer as contas da chegada dos sodreres no Acre, para puxar um papo. Meu tio, que a mim me surpreendeu com extrema destreza, astúcia e inteligência, fez um esforço e chegamos ao meu avô Firmino, cujo nome dava título à escolinha que funcionava até aqueles dias no seringal São Miguel. Em tudo por tudo, somando idade dos filhos aqui, tirando a prova dos nove com a chegada dos netos, ali, casamentos, aniversários, comunhão e caderno de conta nas lojas de aviamentos, nos demos por satisfeitos em admitir que meu vô Firmino, vindo da Bahia, fora contemporâneo de Plácido, o revolucionário e quem sabe, não tenha participado de uns assaltos às guarnições bolivianas, nas pelejas por um Acre independente?

Tenho em mim, uma troca de energia pra lá de positiva com o Acre. Coisa do meu vô Firmino.

 

sábado, 12 de dezembro de 2020

crônica argel - toque de recolher

 Toque de recolher

Incomodado por um adoecimento repentino que... Bom, que me impede ficar sentado por muito tempo à frente do computador, acudi-me do filhinho. Senhoras e senhores, Argelzinho Sodré:

“Eu estudava no colégio Dom Ângelo Frozi, e estava em mais um dia normal de aula. A professora devia estar falando das cores primárias, ou algo assim… até que bateu a campa pro intervalo.

Eu e meus parças fomos pro escorrega-bunda, Tínhamos uma tradição de misturar nossos lanches e depois degustar essa bomba de sabores industrializados. Por exemplo, era normal eu lanchar iogurte tutti-frutti bem misturado com pitchula de guaraná garoto, polvilhado com raspas de biscoito máscara negra, ou biscoito do gatinho, para os íntimos.

Saindo de lá, visivelmente drogados, fomos assistir aos mais velhos e mais altos jogarem espiribol. Curtir essa liga sintética vendo uma bola girar em torno de um poste, só essa escola me proporcionou. Saudades!

Na volta do recreio fomos abordados pelas professoras atordoadas dizendo que não era pra gente se desesperar, que nossos pais já vinham nos buscar. Eu voltava pra casa a pé com os caras, ou com a mamãe e a Amaranta, mas nesse dia a dona Beth, nossa vizinha que tinha uma Kombi -e diversas semelhanças com a minha tia Dina- estava lá na frente já esperando por nós.

De repente o porteiro, com o microfone anunciava que todos estavam liberados e lançou a hashtag fica em casa, pois estávamos em toque de recolher. Enquanto eu me encaminhava para a saída, olhei pra parede e tinha uma folha de papel A4 com a foto de um rapaz careca, na cadeia, anunciando: ARTERENX, ESTUPRADOR FUGIU DA CADEIA E ESTÁ ATERRORIZANDO A VILA DOS CABANOS.

Na hora meu coração gelou (gelou agora, de novo). Cheguei em casa e o zap da época (o telefone fixo de número 3754–2504) não parava de produzir notificações. “Ele é um estuprador que ataca mulheres que andam sozinhas nas ruas de Marituba, ele foi preso há alguns meses, mas fugiu de Americano, e veio se esconder aqui na Vila, agora ele tá se escondendo em cima das árvores e atacando mulheres que passam desacompanhadas, ele já atacou algumas, até a fulana".

Nós, os Sodreres, prevenidos como somos, não saímos de casa pra nada. Papai só saía pra trabalhar, Amaranta não podia ir pra casa da Flaviana, e eu não podia jogar bola. Mamãe ficava inventando coisas pra gente fazer dentro de casa. No momento de maior perigo, entre 12 e15 horas (todo morador da Vila tem medo desse horário, se não tem, deveria ter), fechávamos toda a casa, colocávamos a TV no programa ponto de luz e ficávamos ouvindo história de visagem de crente, porque era menos aterrorizante que a realidade.

Após 5 dias de muito terror e isolamento, a tia Tati, minha querida professora da época, ligou pra Márcia, que é uma das melhores amigas da mamãe, que ligou pra mamãe avisando que prenderam Arterenx lá na comunidade de Vila Nova. Assim foi restabelecida a tranqüilidade, a paz na pacata Barcarena. E que quando ele foi preso, estava tentando aplicar a seringa numa criança!!!

Acabei de pesquisar aqui no Google pra saber se essa história é real ou foi apenas um delírio coletivo. Não achei nada. Perguntei pros meus pais, mas só sabem que aconteceu, sem muitos detalhes. Ah! Mas as crianças da época sabem tudo sobre esse tempo de terror, e garantem que foi real o toque de recolher. E não foi o único caso, ainda teve aquele dia que o leão fugiu do circo...”

 

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

crônica remix - uma tarde

 

UMA TARDE

 

Não entende a presença dela ali, em plena tarde de Sábado. Para ela, o Sábado era um dia sagrado. Dormia até tarde. Tomava um café, ainda com aquela preguicinha  do acordar sem querer, e ia despertar realmente,  embalando-se na rede da varanda. Depois, vivíssima, tomava um barril de suco de qualquer fruta regional, natural, e traçava o plano de vôo com possibilidades que iam do passeio a casa de amigos a uma fugida estratégica para Mosqueiro. O Sábado não tinha hora pra terminar. Ele lembra que na época da campanha para presidente, tinham uma turma espertíssíma que fazia a diferença na ‘buxixeata’. Eita! Por aqueles dias, o Sábado desandava e ia dar no Domingo a tarde.

Não tinha por que estar ali, naquela tarde. As pendências estavam todas resolvidas. Nem precisaram de advogado. Foi tudo na santa paz. Não eram casados de vera, mas foi tudo bem divididinho. Ela ficou com o carro, ele com a casa na Pirajá. Ela levou toda a biblioteca, mas em compensação, ele herdou aquela belezura de discoteca que incluía aquele disco em vinil, raríssimo, do bom acreano Sérgio Souto. Tantos anos e não tinham filhos. Ambos levam a responsabilidade de um exame, que pelo grau de importância diante das ‘prioridades’, nenhum dos dois, jamais fará. O caso foi bem resolvido, e o que a levaria a sua casa numa tarde de Sábado convidativa? Ele meio que surpreso, meio que curioso:                                              

 - Mas és tu mesma, mulher? Que bons ventos te trazem?

 Ela, prática, decidida e aparentando pressa:

                        -Aquelas caixas, lá no quartinho, lembra? Posso dar uma bisbilhotada nelas?

Ele prestativo, quase que bajulador, indicando o caminho:

-Claro, claro... Ah, tu sabes onde é...

Enquanto ela cavucava lá por dentro, ele voltou e buscou no correio eletrônico, o último poema do talentosíssimo poeta José Miguel Alves, seu amigo virtual mais recente. Traga do verso: “ O último amigo arde...” Tenta lembrar o gosto de um bom cigarro. Desiste. Ora, ora, a grande responsável por ele ter abandonado o maldito vício estava ali, no quartinho dos bagulhos. “Taí, te devo essa”, murmura virando o rosto naquela direção, talvez tentando reconhecer que a partilha não fora tão justa assim.

-O quê? – Devolve ela, demonstrando ter ainda os ouvidos mais sensíveis do mundo, emendando a seguir – Achei, achei!

Sai com a mesma pressa que entrou. Ele a acompanha até o carro. Despedem-se e beijam-se como amigos. Três pra casar ( oh, não, pra casar, de novo, não!). De repente, um fogo explodido das profundezas da irracionalidade (aquela irracionalidade do coração, que eles tanto se orgulhavam de desconhecer), aquele fogo traiçoeiro, insubordinado, perturbador, se fez num longo beijo. Um beijo com gosto, adocicado. Um beijo orvalhado, fértil, um Nilo de prazer. Eu momento! Um beijo por tantos beijos. Tão bom, meu Deus! Mil anos se passaram ali naquele instante...

Quando os lábios separaram-se constrangidos, procuraram os seus rumos. Tomaram pé e tornaram daquele mundo impossível de existir. Abraçaram a lógica das coisas e entenderam tudo.

Ela se refez. Entrou no carro, puxou da bolsa uns bregueços ( umas hastes finas de plástico, de madeira, do tamanho de agulhas de tricô; atracadores, grampos, aquelas coisas que havia recuperado das caixas), e com eles tentou prender os cabelos. Ele  aproximou o rosto da janela do carro e confirmou uma opinião antiga:

-Ficas melhor com o cabelo preso.

Não era isso que ele queria dizer. Na verdade nunca tinha as palavras para definir o prazer de vê-la com os cabelos daquele jeito. Não sabia dizer bem o “jeito”: preso, não preso. Não de todo solto. Nem preso, nem solto, sei lá.

  Ela, um tanto desconcertada, fez um arranjo rápido com as hastes de madeira e ai, ai ai, ai, ali estava a mulher da sua vida, com os cabelos misteriosamente arrumados do jeito que ele tanto gostava.

  Um sorriso mútuo foi o sinal da despedida. Ela deu a partida no carro e saiu para sempre da sua vida, naquela tarde de Sábado.

 

sábado, 5 de dezembro de 2020

crônica da semana - MIR

 Eu quero viver

Houve um ano aí, que eu tava que tava. Juro! Bateu uma deprê. A vida tava assim, meio desinteressante, meio sem sal. Tudo por causa da MIR (lembram dela?). É vera! Quando eu soube que a MIR ia cair, romper a exosfera e riscar o céu em mir pedaços, quando soube que a aventura super emocionante (e ponha emoção naquilo!) da estação orbital russa ia acabar, fiquei numa malemolência, num cubu de dar dó.

Afinal a nave era o que vinha animando os meus dias, naqueles tempos de pax globalizada. Foi-não-foi, a MIR virava notícia e nos pregava uma peça (ou: uma peça da MIR quebrava e a pobrezinha corria riscos irremediáveis), e eu aqui embaixo, na expectativa, na torcida. Mais com pouco, outra onda na MIR: ai! Quebrou a rebimboca da parafuseta do compartimento de gases nobres (argh, argh! Esses russos!), e aí eu me pegava com todos os santos. Acompanhava as últimas dos jornais, até que tudo parecesse resolvido. Parecesse! Pois nada se resolvia na MIR. Cada bronca resultava numa MIR menorzinha. Uma trombada aqui, um esbarrão ali, o coração ficando fraquinho, fraquinho, e a MIR pedindo socorro. Até os americanos metidões flutuaram por lá ajeitando um band aid aqui, outro acolá, mas necas. Não teve jeito. A bicha despencou mesmo. E naquele padrão Rússia pós Guerra Fria, com uns pedaços deste tamanho perigando cair sobre o cocuruto da gente, égua!

E foi esse, o meu comichão naquele ano. Uma nova realidade sem a minha MIRzinha querida (geniosa, como as nossas queridas, mas como viver sem elas?). Sinceramente, passei maus bocados, sem ver graça em nada. Enfurnado pelos escurinhos da casa. Taciturno, ensimesmado. Carente. Sem rir, sem falar, sem comer, sem beber, na onda dos suspiros enfadonhos e medonhos chiliquitos.

E ainda mais que eram dias plúmbeos, de chuvas intermináveis.

Um belo, dia, então, o sol mostrou a cara e eu fui dar uma voltinha por Belém. Desci, a passos cadenciados, a ladeira do Forte do Castelo, só imaginando...

Lá embaixo a lançante jogava a Guajará para além das barraquinhas da Feira do Açaí.  E eu, aos poucos, me maravilhando com as possibilidades de viver Belém, Viva Belém, bembelelém, Viva Belém.

Ali, na foz do Piri, dei pra ficar contemplando com prazer, os barcos zarparem da doca do Ver-o-Peso, ao ritmo do banzeiro e ganharem o rumo do peixe bom. Tomei a Boulevard e me surpreendi esperançoso, animado enquanto me deslumbrava com o colorido matinal que as pimentas de cheiro emprestam ao entorno do Solar da Beira, e com o mundo de bondades verdes se mostrando das barracas das vendedoras de ervas.

Quis fazer um poema, dar umas risadas, gargalhar. Quis correr de um lado a outro da praça, atrás dos passarinhos que voam baixinho. Pensei em embarcar num popopô e depois desembarcar já quando ele estivesse desatracando, só de pirraça. Quis dar um sinal de louco amor pela minha Belém.

Pedi abrigo ao Senhor, e ali, sentadinho num banco da Praça do Pescador, sob a guarda do Jesus dos navegantes, eu decidi: sim, eu quero viver.

Pronto, daquele dia em diante, a vida me sorriu de novo, e eu não quis mais saber de tomar os mesmos rumos da MIR. Desde aquele dia de sol, quis ficar pra ver Belém da Guajará se desfolhar em mil pedaços, presunçosa, orgulhosa, cheia de vida, para mim.

E quer saber? Bem feito para a MIR, quem mandou ser tão lerda, tão incerta. Despencou e hoje ninguém lembra mais dela, só eu mesmo, nesses dias de chuva.

 

sábado, 28 de novembro de 2020

crônica da semana - óleo jaçanã

 Por uma lata de óleo Jaçanã

Um alvoroço se formou no salão. O cortejo logo se adiantou para o depósito. Seu Zelão, avisado, se dirigiu para lá, com um andar balanceado que distribuía para todo o ambiente, o barulho das chaves engatadas ao cós da calça social. No caminho, nos chamava, os moleques empacotadores, que àquela hora, andávamos nos topando pela frente dos caixas, procurando o que fazer, já que pouca coisa para empacotar havia. Hora morninha da tarde. Movimento ralo, ralo.

Juntamos uma patota de curiosos e partimos para o depósito. Não sabia, que naquela ocasião presenciaria cenas de tortura e humilhação abomináveis e que marcariam barbaramente a minha infância.

Porque eu ainda era uma criança (e é por isso que menores e adolescentes devem ser protegidos de situações de vulnerabilidade, porque olha, o mundo é perverso).

Aos 12 anos, havia conseguido fichar no supermercado de carteira assinada e plaquinha de identificação no peito. Antes mesmo de fichar, por causa de alguns parentes que trabalhavam na loja, fazia bico como encostado. Sem plaquinha. Sem uniforme. Formei uma dupla com um moleque por nome “Guarda-Mirim”, esperto que só ele. Garantia o carreto dos barões e com a parceria, eu empacotava que só, fazia entregas nas casas, deixava os paneiros no táxi e, ao final do expediente saía com um bom apurado em gorjetas. Ele era o meu coach.

Depois de um tempo apurando só o da gorjeta como encostado, fichei. Recebi a bata que servia de uniforme e a plaquinha. De tamanho único, mamãe teve que fazer um ajuste nas medidas da bata e aí... o seu Zelão, sempre ele com aquele cinismo, aquela arrogância alva, aquele menosprezo, ao perceber que o alinhavo da mamãe tinha deixado a bata com um caimento muito justo em mim, não teve o menor pudor, quando foi dar o beabá da empresa, a mim, agora como contratado, de perguntar se eu era veado pra andar assim, todo apertadinho. Eu que nem rapazinho formado era, sequer tinham brotados os pelos, ainda. Não estava preparado para responder se era veado ou homenzinho desprezível igual a ele. Nada da vida sabia, O que me movia era apenas o instinto de sobrevivência, a necessidade real da gorjeta ao final do dia. Sabia apenas que enfrentava aquele constrangimento porque era um molequinho atrás de vender a minha força de trabalho infantil e com urgência. E eu que desconcertado ficara, com aquelas boas-vindas nem maldava que aquilo seria um sinal. Era indício de um comportamento baseado na certeza inabalável de superioridade que ele tinha. Então nada lhe era negado. Tudo lhe era possível. Ele era o gerente. O dono das nossas reações e disposições. Montava-se sobre o poder. E o poder, assumido assim, corrói  a humanidade. Dilui empatias, pulveriza o último grãozinho de solidariedade que possa resistir em um ser volúvel, bandado e oco.

Seguimos o cortejo pelos corredores do depósito. Adiante, um rapaz, dominado pelos seguranças.

Seu Zelão avançou. As chaves no cós da calça barulhando, o andar balançado. Encarou o homem, ofendeu, disparou desprezo, asco e por fim aplicou um soco tão potente que o rapaz foi sacado das mãos dos seguranças  e desabou no chão. A seguir, os outros completaram o serviço com socos e pontapés. Aquela era a lei dos escondidos, do lá pra dentro, do corredor polonês do depósito. Do seu Zelão.

Um falatório difuso adiantava que o rapaz teria sido flagrado com uma lata de óleo Jaçanã dentro da roupa.

sábado, 21 de novembro de 2020

crônica da semana - abacaxi bromélia

 Abacaxi bromélia

Tem cor de abacaxi, coroa exuberante, casca áspera, brota no meio de folhas alongadas, rígidas e cheias de espinhos, como o abacaxi, mas não é abacaxi. Trata-se de uma planta da família das bromélias que tem o cultivo voltado para a decoração. Poderíamos até comer o lindinho, mas dizque é azedo que dói. Tem por fim, enfeitar mesmo, pois que medindo em torno de cinco centímetros, não dá nem um estalo entre os incisivos, avalie um suquinho pra família.

Está na minha conta como aquele que parece ser mas não é.

Este abacaxizinho nascendo como bromélia no meu jardim até que me colocou dúvidas. Pesquisei, perguntei a amigos e amigas sobre ele. Esclarecido fiquei. Sobre outras e relevantes questões da vida, não tenho dúvidas.

Há anos, orbito, me embrenho entre os bons e até milito na arte. Dei de escrever.  Faço versos aqui, ali. Meu caminho foi construído em contato com as mais variadas manifestações artísticas e, principalmente, aquelas de força popular.

Sou da rua. É ter uma reuniãozinha de escritores ou batuqueiros na praça, um show na beira do rio, tô dentro. Tem um arrastão do Pavulagem? Umbora então nós. Carnaval? Me leva que vou. Entendendo, percebendo traços, conceitos, interagindo, construindo laços de amizade e sempre atrás do prazer e do divertimento saudável.

Em tempos não tão remotos, acompanhei e participei de boas iniciativas marcadas pela ocupação de espaços públicos. Eventos que pregavam a diversidade e o reconhecimento de identidades culturais. Riquíssimos em qualidade, em elaborações. Muitos dos artistas que nos encantam hoje e que alcançaram boa exposição na mídia, pavimentaram seu caminho naquelas reuniões.

Encontros maravilhosos, produtivos, sonoros, plásticos, aqueles. Que aos poucos foram sendo tão severamente reprimidos ou por agentes da administração ou da segurança pública, obedecendo à lógica da força. Do ‘te aquieta a pulso’. E tanto e com tamanho rigor, que os artistas e produtores se viram forçados a sair de cena. E eu, amante das artes, das peças e praças do povo, me vi órfão das coisas boas da vida, fui me amofinando, ficando pequenino, azedinho, com aquele sentimento de parecer ser o que não é, tal qual o abacaxi bromélia.

Depois veio a pandemia e completou a derrota.

Sem arte, sem vida. Sem artes, desilusões. Sem o alento da arte, ensimesmamentos e banzo. Este cenário sem cor e sem graça, sem pano de fundo nem música incidental, esta tela branca de silêncios relegados aos cantos, ao acanhamento, faz as vezes de um soterramento. De um afogamento pra dentro da gente. É como se engolíssemos, depois de mastigar bem mastigadinho, os próprios pulmões.

Às vezes penso ser coisa da idade. Porque, tá que tá que a idade mexe em tudo na gente. Outro dia fui fazer um exame de rotina e uma simples pinicada criou logo um catumbi, arroxeou, sangrou que só, deu febre e pressentimentos, crise de abstinência de álcool e doces, pânico, panemice, anuviamento, apatetamento e falta de senso, crise existencial, choro escondido, reflexões sem fim, alarmes falsos de desfalecimento, síncope, soluços, uma sensação de estrepe no dedinho do pé, cheiro de queimado no nariz, chiliquitos, dordolho e saudades imensas do rio Acre, das corredeiras do Madeira, das cachoeiras do Xingu, daquela lua imensa boiando do Amazonas na orla de Macapá. Da Guajará.

De repente tornei. Era domingo 15. Venci o medo de sair de casa, procurei meu título, agarrei e fui votar, na esperança de que tudo isso passe.

 

 

 

quinta-feira, 19 de novembro de 2020

crônica remix - piuns

 Espantando piuns

Naquela época, eu nem fumava, mas andava sempre com um cigarro de um tabaco bem forte (que eu mesmo tecia com aprumo e zelo), no canto da boca, fazendo fumaça para espantar o pium (um mosquitinho atentado que a qualquer vacilo nos drenava o sangue sem pena). Não tinha rigor no vestir mesmo porque, ali, no campo, não fazia questão de ser fashion. Uma bermuda surrada e uma camiseta de algodão fina me valiam. Um chapéu de palha raso, para fazer frente ao sol de Rondônia, também.

Tínhamos uma campanha para realizar numa fazenda que ficava perto de Ariquemes. Eu tinha um acampamento, ali próximo e fui escalado para fazer o reconhecimento da região e iniciar os contatos com o dono da terra.

A minha equipe contava com umas vinte pessoas. Deixamos o carro na estrada e seguimos a pé até a sede da fazenda. Lá encontramos um grupo que veio nos recepcionar. Um rapagão meio arqueado de tão alto que era, adiantou-se. Passou por mim, sem dar muita trela para o meu povo que se alinhava organizadamente ao redor. Parou no fim da fila, cumprimentou com respeito, um dos auxiliares e se colocou à disposição para as negociações sobre a pesquisa da cassiterita. O rapaz, meio desconcertado, declinou educadamente daquela intenção e adiantou para grandalhão que o responsável pela conversa e pela pesquisa era eu, que estava ali, à frente da turma, esperando o desfecho daquela indelicadeza. Ele voltou, apresentou-se como capataz, desculpou-se meio sem vontade, disse já estar sabendo do que se tratava e sem mais delongas nos liberou a área. Um cafezinho sequer, daqueles puros, cheirosinhos, de fazenda, ofereceu. Tudo bem. Demos meia volta e caímos no trecho.

Foi fácil entender a atitude do capataz. O rapaz que ele escolheu para prestar reverências era o único louro de olhos azuis da equipe. Nosotros exibíamos o perfil cafuso amazônico e ele, como tinha a missão de ratificar um acordo de alto nível que resultaria em uma boa grana, que modificaria a rotina da fazenda e que definiria o futuro de muita gente ali, caso houvesse a tão sonhada reserva de cassiterita, ligou este contexto delicado ao estereótipo representado pela cor da pele. Interpretou que o poder de decidir sobre aquela campanha, só poderia vir de alguém igual a ele de pele branca, estatura avantajada e dorso arqueado. Jamais pensaria que essas atribuições estavam concentradas exatamente naquele neguinho de um metro e meio com chapéu de palha com abas desfiadas, ostentando uma vestimenta barata e enganando os piuns com baforadas difusas do poderoso ‘Fumos Leão’.

Na memória recente do Brasil, são omitidos os registros de conflitos raciais explicitamente drásticos como aqueles que conhecemos na história da África do Sul ou dos Estados Unidos. Criou-se a fantasiosa democracia racial, o que não significa que aqui a discriminação inexista. E  não significa também que com este abafamento dos impulsos, das reações mais significativas, a gente tenha reconhecido o paraíso da tolerância racial. Aquela experiência em Rondônia me causou desconforto e me mostrou que o caminho para vencer o preconceito, exatamente por causa desta indolente hipocrisia reinante no país, é bem mais tortuoso do que nos pregam as doutrinas ladrilhadas de mentiras.

Depois daquele dia, consegui até conversar com o capataz taludão. Rolou até o café. (A possibilidade de royalties polpudos arrefecia qualquer ímpeto de segregação). Só que deu azar, o gigante. Ao final da pesquisa, a área deu negativa e a mina com o cobiçado minério não vingou.

Quanto a mim, ainda bem que não me impressionei com aquela vexação e segui meu caminho cuidando para não dar sangue aos piuns.

 

 

sábado, 14 de novembro de 2020

crõnica da semana - cabelouro

 Cabelouro

Eu era moleque zinho ainda, lá das beiradas do rio Acre, na época em que a Jovem Guarda marcava pontos nos altos da parada de sucesso. O meu lugar de ser e de estar mesmo era o ermo do seringal. Vez por outra é que meu papai entrava em transe, dava uma doideira nele, arrumava a filharada, mamãe, parentes, aderentes, jogava os pequeninos no caçuá, e ganhávamos o rumo da cidade no lombo dos burros, em animado e extenso comboio.

A casa da vovó Raimundo era nosso abrigo, em Xapuri. Ficava na rua da Gaveta. Tinha parede de barro, um portãozinho baixo e testeira de enchimento. Era o chamego da vovó. Embora já cangasse grilo pra cima e pra baixo, quando estava na cidade, voltava a ser neném com direito a colinho e papinha toda noite. Eu é que não reclamava. Aproveitava a paixão e o encantamento que a vovozinha tinha por mim.

A cidade me alertava para outras experiências. O Raimelo, que era a rádio de poste e transmitia para toda a beira do rio, e ainda o picolé da sorveteria Sibéria, que tinha formato cilíndrico e era apresentado em todos os deliciosos coloridos do mundo. Um passeio pela orla era o programa da família de tardinha. Vêm daqueles passeios vespertinos à beira do rio Acre, as sensações, uma emoção inexplicável para a idade tenra, os soluços que a voz de Vanusa provocava em mim. Guardo na gaveta dos mistérios a minha reação nas vezes em que o Raimelo irradiava o sucesso do momento: “Pra nunca mais chorar”. Aquele arranjo emparelhando a voz adensada da cantora com um coro plangente de fundo me esmigalhava o coração e o que não era pra acontecer nunca, acontecia convulsivamente. Chorava que me acabava. Mergulhava numa tristeza, numa palidez de alma. Eu, gitinho, chorava que soluçava. Sem razão nenhuma. (Hoje penso que sentia uma saudade. Eu moleque zinho, chorava de saudade, talvez, desse futuro que hoje foge da gente). Nem o picolé mais colorido me consolava. Um alento só vinha quando me aninhava no colo da vó Raimunda.

O presença marcante de Vanusa, na minha jornada, notadamente, foi mediada pelas minhas avós. Com papinhas e carinhos ali no Xapuri; com alertas e ralhos aqui em Belém. Uma companhia ora marcada pela voz fascinante, ora pelos loiros cabelos deitados sobre os olhos.

Mais tarde, depois de cruzar a Amazônia a bordo do navio Domingos Assmar e dar com a família na Pedreira do samba e do amor, e um quê além de adestrado à cidade grande, não chorava mais. Vanusa se mostrava agora, pela tela de TV ou pelas capas de revistas, além da voz.

Nas brenhas do Acre, só as ondas dos rádios nos encontravam. Eram os nossos sentidos, estimulados pelo som. Em Belém, a imagem era reveladora. Completava e redirecionava a outras frentes que não somente à emoção, aquela elaboração que eu fazia da cantora.

Nas ruas da Pedreira, a garotada quedava-se à moda. Eu, minhas irmãs, vizinhas, e meio mundo de fãs procurávamos remedar a cantora naquela que era a marca registrada da sua imagem, a franja loira. A gente via na TV, o poder daquele penteado. O movimento decidido ao jogar a franja para trás, o brilho doirado dos cabelos, que no preto e branco da televisão até encandeava a gente, o olhar dizendo sermos nós, o infinito.

Tinha até mandingas para nos aproximarmos dela na categoria da tez: em casa era briga pra comer uma peça da carne conhecida como cabelouro. Uma placa amarelada, de textura emborrachada que, diziam os iniciados, se a gente consumisse com fé e regularidade, nos tornaríamos louríssimos.

A vovó Marieta, de Belém, não via graça nessas arrumações. Pra ela, cabelouro era langanho da carne; franja era ‘cabelo no olho’, dava catarro e enfraquecimento na gente. Belém me alertava para realidades diferentes daquelas que eu vivia no seringal. Era o mundo paralelo da metrópole sucedendo o ermo. De certo e justo, só a encantadora voz de Vanusa realinhava as fronteiras.

 

sábado, 7 de novembro de 2020

crônica da semana - panorâmica

 Panorâmica

Vinha sempre de um lugar longe. Chegava pingando de tanto suor, dos distantes arrabaldes que abrigavam o Instituto Bom Pastor, das cercanias de Marituba, dos igapós estivados do Jurunas ou dos covões de São Brás. Era comum trazer consigo a visão panorâmica dos locais por onde passava.

Era um homem grande. A idade se anunciava nos cabelos brancos, na pele gretada, e num discreto manquitolar que o projetava desengonçado para frente, quando andava. Por outro lado, não deixava dúvida sobre o vigor remanescente. Uma força cearense. Cabra da peste. Vivente de fé. Pé rachado. Cabeça erguida. Sem medo. Tinha energia bruta, abundante, e que lhe permitia ânimo e fôlego para carregar duas sacolas imensas cheinhas de produtos dos mais variados jeitos, qualidades e padronagens. Alpercatas de couro. Sandálias Cariri, Katina Surf, perfumes e extratos a retalho; flores de plástico e paninhos de crochê para enfeitar mesinhas de centro; uma ruma de encantos, rapadura, cocada, beijo de moça, broa, rosca, pipoca. Estes, os haveres da circunstância, da ocasião. O que garantia a freguesia mesmo era o grupo de engarrafados. Andiroba, copaíba, mel de abelha. Não dava vencimento. Quantos litros conseguisse, lá pelos sítios de Marituba, quantos vendia.

Quando entrava na vila em que eu morava, fazia a festa da garotada. Uma cocada, um pacote de pipoca, uma placa de quebra-queixo, sempre franqueava para a turminha mais animada.

Pedia entrada em casa, batia o pé no batente, tirava o chapéu de couro. Acudia-se de um copo d’água. Largava as sacolas escorando a porta aberta, pra entrar um vento, procurava um canto da mesa rés à parede, aprumava o corpo e sentava no banco mais alto. Não se ouvia um ai deste homem, enquanto enfrentava os estirões com as enormes sacolas penduradas aos braços. Mas ali, em casa, quando se entregava a um descanso, se denunciava em reclamações, em gemidos, em estalos forçados de ossos. Ao se aquietar, as dores o visitavam. Bebia a água, limpava o rosto com um lenço roto. Disfarçava o desconforto muscular com um encarreiramento de sorrisos, com a visão panorâmica que trazia dos longes e ainda com versos e prosas criadas ali, no repente da hora.

Demorava-se nos causos. Conversava fácil e visitava o mundo das palavras e dos sentidos com profundidade abissal, enquanto falava. Certa vez, vindo da beira do igarapé do Galo, refletiu sobre a tristeza de ter que engolir no silêncio, a pilhéria, a encarnação a que fora submetido ao atravessar a ponte do Chaco.  Uma turma de desocupados o tirou pra pagode chamando-o de matuto, de afogoiozado, ceará cabeça chata; avacalharam com o seu caminhar manquitolado. Fazia questão de alertar: não revidava porque não era de confusão, mas tinha guardada, para ocasiões mais aquelas de necessárias, uma lambedeira amolada pra lá de palmo e meio, que o acompanhava desde os tempos do Crato. Não se conformava com esses embates, essas malinezas, essa vocação que algumas pessoas têm para humilhar os outros. Algumas vezes, esquecia que falava com a gente, baixava a cabeça e se perguntava baixinho “por que tinha que ser assim, por quê?”, de volta ao nosso mundo, nos pedia, a nós que éramos crianças, e que o admirávamos e o respeitávamos, para que odiássemos com todas as forças, a ira. E amássemos, sem regras, o amor.

Uma lasca de rapadura que ele dividia animado com a gente e a poesia inscrita em conselho certeiro, me são até hoje, heranças de visões panorâmicas que recebi daquele cearense. E que prezo e zelo.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

                                  A samaúma da Marquês
 

sábado, 31 de outubro de 2020

crônica da semana - A música na frente

 A música na frente

Na falta dos rolés tradicionais de outubro, este ano nos quedamos em casa a trocar prosas sobre curiosidades, detalhes pouco percebidos nas grandes movimentações do Círio. Os colégios Gentil e Nazaré entraram na conversa. O Gentil é parada final. Recriamos o momento da chegada e guarda dos carros da procissão, na grande área ajardinada na frente do prédio. Acrescentei que na última vez que acompanhei minha filha nas mobilizações do ensino médio, nem chegamos a atravessar o portão do Gentil conduzindo nosso carro. Dali mesmo, voltamos pra casa.

Tirando por essa passagem da conversa, constatei que não foi muito comum, na história da minha vida, atravessar os portões do Gentil. Duas contadas vezes, tive a oportunidade de cruzar o jardim da escola. A primeira vez foi quando, ainda no início da década de 1980, o padre Bruno Sechi coordenou a Pastoral de Juventude da Arquidiocese. Fizemos um grande congresso, ocupamos as dependências da instituição, agraciados por obsequiosa concessão feita pelas Filhas de Santana aos jovens entusiasmados, cheios de vontade, ávidos por um mundo melhor. Todos os dias do congresso eram iniciados e terminados com música. Nem sempre religiosa, mas inevitavelmente de alta energia, de apelo a mudanças, mensageiras de paz e justiça.

A outra e inesquecível vez que entrei no Gentil, fiquei só por ali, pelo alpendre. Aconteceu alguns meses antes de sair de Belém para ganhar a vida em Rondônia. O jardim do colégio recebia um festival de música e naquela noite, um grupo chamado, olha só que coincidência, Madeira-Mamoré, tocava no palco montado na área externa. Fiquei com a estranheza do nome da banda martelando na cuca, e, olha o destino: nos anos seguintes, seria íntimo, saberia muito sobre a história da ferrovia Madeira-Mamoré. Conheceria descendentes de barbadianos que trabalharam na construção, faria viagens na Maria Fumaça, pelo trecho ainda em operação, conheceria as obras de Márcio Souza e Manoel Rodrigues Ferreira tecendo uma, enfoque diferente da outra, para o tema.

Encarreirei a nota que fiz sobre o Gentil ao resgate lá dos mesmos idos oitentistas, e a uma deferência a mim dada para avançar nas dependências do Colégio Nazaré. Ocorreu na posse da primeira gestão de uma entidade de estudantes secundaristas após a devassa promovida pelo AI-5. Ainda sob a sigla Uesp, o movimento se reerguia ali intramuros maristas. Tomei posse, mas já deixando de ser secundarista.  Estava concluindo meu curso na ETFPA. Mais tarde a entidade se reorganizaria como Umes, mas eu já estava em Rondônia, na lida. Não teve música na posse, mas a música do Nazaré, eu já conhecia do Mojuvena, que era unha e carne com o colégio. O grupo participava de todos os festivais da Escola Salesiana. E em alto estilo. Tinham os melhores instrumentos, levavam a própria mesa, microfones. Taí, se um dia tive uma invejinha doce, foi daquele aparato do Mojuvena. E tocavam pacas. Hoje, quando vou acompanhar a chegada da Santa, na Romaria Fluvial, me demoro ouvindo a banda na frente do Nazaré. E me bate a história do Mojuvena, me ocorre a posse da Uesp.

Acho que nas decisões graves que a gente tem que tomar, a música deva vir sempre à frente. Mesmo que, para servir depois de reflexão: como, meu pai, com tanta motivação ativada pela música, com tantos jovens energizados, buscando mudanças em grupos de igreja, na militância estudantil, ou na harmonia dos festivais... Como nos deixamos afundar neste buraco que é o Brasil hoje?

 

sábado, 24 de outubro de 2020

crônica da semana - peco

 Tudo isso será teu

O pó da estrada escondia o caminho. A gente deixava o carro passar, dava um tempo pra poeira sentar e continuava o trajeto a pé, pela estradinha mal arrumada que nos deixava perto da entrada do nosso acampamento. Era uma estrada usada pelos garimpeiros e alguns proprietários de terra que se distribuíam pelos ermos da Perimetral Norte.

Deixávamos a frente de trabalho, fora do horário, porque o rapaz que me acompanhava tinha que ir urgente pra cidade. Nem bem tinha voltado. Passou os dias legais de licença paternidade em Macapá, mas já tinha que voltar. A criança não vingou. Não dava pra esperar o transporte rotineiro. Liberei o rapaz do trabalho e o acompanhei até o acampamento. Pegamos o atalho e ganhamos o rumo da base, para que ele se arrumasse, pegasse as coisas, um transporte e ainda alcançasse o horário do trem, na estação de Cupixi. Enquanto vencíamos aquele estirão toldado de vez em quando por uma chuva de poeira vermelha e fina, ele me contava da vida. Lamentava a perda do filho. Era o segundo. Achava que era uma sina. O primeiro já havia nascido com problema. Cabia na palma da mão. Falava com um certo conformismo. Dizia que só tinha filho peco. Aceitava o destino e entregava tudo nas mãos de Deus. No dia seguinte enterraria o anjinho sem duvidar um só instante que aquela era a vontade do Senhor.

Depois que despachei o transporte para a estação do Cupixi, atinei: não sabia o que era peco. Mas pelo que ele falou na nossa conversa, dava pra imaginar.

O outro já não aceitava o destino. Vinha da Bahia. Deixou a família no recôncavo e foi procurar melhoria de vida nos garimpos do Oiapoque. Não se deu. Era homem forte. Mãos calejadas, acostumadas ao trabalho duro na roça. Não se adaptou àquela vida no garimpo. Sonhava era com um pedaço de terra pra plantar. Sem muita opção, conseguiu emprego e foi trabalhar comigo de ajudante geral. Fazia de tudo, mas naqueles tempos, com folga nas frentes de trabalho e com uma deficiência na logística, foi deslocado para dar apoio na cozinha. Levava o nosso almoço no campo. Numa ocasião, fazíamos uma pesquisa na borda de um milharal. Uma fazenda toda fatiada em pequenas culturas. Deixou nosso cumê, esperou todo mundo acabar, organizou as marmitas, mas não voltou pro acamamento. Ficou por ali. Subiu um barranco próximo e sentou lá em cima, pensativo. Deixei a turma no batente e fui ter com ele.

O lugar era um mirante privilegiado. De lá dava pra ver a imensidão da fazenda, os tipos de plantações, lá no fundo o céu azul. Houvesse uma comparação para aquele cenário, pescaria das tentações que Cristo recebeu no deserto. “Se me adorares, tudo isso será teu”.

Mas ele só queria um pedaço de terra.

Sentei ao lado dele, ouvi as histórias do recôncavo, do garimpo. Do inconformismo. Nunca na minha vida identifiquei tanto amor à terra se denunciando em uma pessoa e numa linguagem tão verdadeira. Chegava a descrever procedimentos, condutas, cuidados que uma roça exige. Contou como se preparam as tarefas. Mencionou métodos de irrigação, manejo de frutas e hortaliças. Era um homem da terra. Senhor da terra sem terra. Falava, fitava o horizonte e, sem se notar, espalmava a mão no chão em que nos acomodávamos. Como se quisesse entrar no solo, misturar-se ao húmus. Cavar, cultivar um destino diferente daquele de entregar marmita para a turma no campo.

Bem lá adiante, já pertinho do céu, o pó da estrada escondia o caminho e os sintomas de um país peco.

 

 

 

sábado, 17 de outubro de 2020

crônica da semana - encontro de lilases

 Encontro de lilases

Semana minada de emoções, decepções com insanos ajuntamentos de gente, surpresas e chuvas da tarde, aquela aziazinha remanescente das extravagâncias do almoço de domingo e eu me vendo bestinha da silva de descobrir, em tantos anos escrevendo aqui e alhures, não ter, até então, incorporado ao meu vocabulário a palavra composta por justaposição, “arco-íris”. É vera. Não tenho na memória o registro deste belo e intrigante espetáculo nas minhas prosas, tanto que fui às pesquisas na escrita normativa para poder grafá-la aqui na justaposta certeza do hifenizado colorido, correto e aprovado pela recente reforma. E que arco-íris fez domingo passado, heim! Arrasou! Veio em dois. Para marcar o dia. Matizou o céu do Círio diferente. Mamãe, que não descartava os ditos e os mistérios, se entre nós ainda estivesse, por certo cravaria: “parece uma coisa”.

O arco-íris se realiza a partir da conjugação de um fenômeno meteorológico, mais um processo físico ótico e uma dose fundamental de sensibilidade humana. A presença de água na atmosfera, um solzinho brilhando em baixo ângulo e nosso olhar de observador encantado são os elementos necessários para que o arco se dobre em um espetáculo de cores que entontece a gente.

É imagem difícil de explicar. O gênio de Newton, há mais de 400 anos, suavizou nossas inquietações deduzindo sete cores principais que formam o arco-íris. Mas lá nos escaninhos científicos certificam-se centenas, milhares, milhões de milhares de tons e semitons entre o vermelho e o violeta do espectro desvelado no céu.

E no domingo, dois arco-íris se formaram. Compuseram com a igreja de Nazaré, um cenário único, plástico, divinizado em coração de mãe.

Não sei se diante de tanta beleza e de uma nesgazinha de bem-vinda incompreensão (do fenômeno, Newton, espectro...) ou de uma oportuna crença (mamãe, mistério... “parece uma coisa”); não sei se foi percebido, por quem presenciou o fenômeno, o detalhe de a ordem das cores, nas faixas que compõem o arco-íris, se inverter, de um exemplar para o outro. E esta constatação dá chance ao mix de sentimentos se justificar, quando nos deparamos com a contraposição, com o encontro de lilases, com o distanciamento dos vermelhos, com imensidão de luz traduzida nas sete plenas, infinitas cores.

O que os nossos olhos acreditam ver, também sugerem a transcendência.  O arco-íris é citado no Antigo Testamento como o símbolo da aliança entre Deus e os homens, após o dilúvio.  É uma mensagem. Uma certeza.

O céu de um domingo de Círio, em meio a tantos problemas que enfrentamos atualmente; um domingo de Círio, por certo, sem paralelo na história. Sem procissão, sem Corda, sem o Carro dos Milagres. O céu de um domingo do Círio, colorido por um fenômeno físico, formado em duplicidade, em choque de lilases, para muita gente foi um sinal de novos rumos e tempos (“parece uma coisa”, uma mensagem, a bênção da Virgem de Nazaré...).

Quando morei fora de Belém, por um período de mais de dez anos, minha mãe, todo Círio, mandava pra mim um roc- roc. O brinquedo era símbolo. Era mensagem. Era certeza de nossa aliança. Fez parte da minha felicidade daqueles tempos em diante.

Em isolamento, neste Círio, não saí de casa, não vi a santinha, não comprei meu brinquedo de miriti.

O céu do domingo cortou e arou. Foi consolo e conforto. Trouxe pra mim um sentimento de esperança, de Círio e roc-roc. Espero que para o coração do mundo também.

 

 

 

sábado, 10 de outubro de 2020

crônica da semana enxadeco e chibanca

 Enxadeco e chibanca 

Uma ferramenta é o que o nome diz, mesmo: uma enxada pequena, magrinha e compridinha. A outra, como se fosse uma picareta, é constituída de duas pontas. De um lado, a parte cortante tem as aparências do supracitado enxadeco; do outro, forma uma ponteira de corte afiado, à guisa de uma talhadeira. Dou destaque a essas peças porque compunham as ferramentas necessárias para cavar poço, nas campanhas de Geologia que minha turma fazia margeando o Xingu. E também, porque eu vi, dias atrás, um filme que tinha uma cena onde, trabalhadores de uma pedreira, ao terminar a jornada, cada qual pegava sua ferramenta e ganhava o rumo de casa. O filme, uma versão de O Cortiço, obra de Aluízio Azevedo, autor maranhense que inaugurou o Naturalismo no Brasil, demonstrava, naquele cortejo saindo da pedreira, a ligação traçada entre o homem e sua ferramenta de trabalho.

Logo tornei à margem do Xingu e imaginei o dia dos pequenos que cavavam poço na minha equipe. Alguns nomes emergem da memória. Jacinto, Bené, Firmino, Onça. Trabalhavam em dois. Chegavam do campo, e antes do descanso merecido, ainda se detinham tratando do material. Lavavam, faziam pequenos reparos, afiavam a lâmina no esmeril, na lima. Acunhavam, introduziam um calço aqui, outro ali. Traziam dignidade àquela relação, muitas vezes vista como de valor reduzido. Imputavam àquelas peças a significância assumida e defendida por eles. Sabiam que pela natureza bruta do ferro e da terra escavada, se o equipamento não estivesse bem cuidado, mais energia gastariam, sofreriam mais, destinariam grande esforço a tarefas de poucos resultados. Havia entre eles a cumplicidade de fio, suor, desterro e corte.

Parece estranho, para quem não viveu dias de peão, uma parceria entre o trabalhador e qualquer artefato de produção, que possa beirar a afeição. Não era amor. E por razões alhures assinaladas, ódio não poderia ser. Penso, porém o respeito, intermediar esta intimidade. Eu mesmo, nos primeiros anos de Barcarena, quando fui apresentado ao cabo de uma pá, no lugar de odiá-la com todas as minhas forças, busquei aliançar-me para que a dor fosse branda. Houve de, a cada fim de jornada, eu limpar, lavar, desempenar minha espátula, guardá-la em lugar que ninguém pudesse achar e querê-la ao meu lado sempre, como amparo e consolo; como renitente tradutora de minhas mágoas. Seríamos nós dois insatisfeitos, embrutecidos. Ineficazes desencrostadores, noite à dentro, de frio, zunidos, vapores, calores predadores. Reclusão e um tênue e necessário fio de razão.

Naqueles tempos outros de Movimento jovem lá na Escola Salesiana, ousávamos. Modificávamos aqui, ali, com cuidado, o rito da Missa, de forma que o Padre Lourenço, embora com reservas, permitisse as mudanças. Certa vez, articulamos um ofertório, em que depositávamos no altar, objetos do dia-a-dia, peças de roupa, máquinas e instrumentos que compunham o acervo doméstico. A simbologia era de oferecer ali, a nossa vida ou elementos construtores da nossa vida.

Acho que é isso que pretendo nesse Círio. Oferecer à Virgem Santa, enxada, chibanca, a lembrança e o carinho que guardo por Jacinto, Bené, Firmino, Onça, a turma que cavava poço e que trabalhava em pares. Também para agradecer porque uma vez desci num poço que os meninos haviam cavado, já há algum tempo, e uma cobra tinha escapulido lá pra dentro. Se escrevo esta história é por obra e graça da Santinha.

sábado, 3 de outubro de 2020

crônica da semana - a vida ensina

 A vida ensina

A gente sempre se encontrava ali para um respiro, tomar uma água, um café. A sala funcionava como um local de descanso. Rodávamos os turnos, e por conta das peculiaridades, as jornadas da madrugada, certamente, eram as mais tranqüilas. Então, naquele tempinho que a gente desanuviava e tomava um ar, trançávamos uma prosa, nos conhecíamos e rolava a parceria.

A vida ensina. Mesmo se a gente não domina as equações, as contas com fração, ou a teoria dos conjuntos, a vida, de palmo em cima, ensina. Quer ver lição mais facinha assim de entender sobre a desvalorização da moeda é a mudança no padrão da melhor coxinha produzida na Pedreira. Qual não foi minha surpresa quando chegou meu pedido ontem. Tudo nos conformes. Menos a envergadura. O tamanho da coxinha caiu quase pela metade. O preço permaneceu o mesmo, mas a elipse, que era rechonchuda, desinflou. O meu lanchinho foi o exemplo clássico de desvalorização da moeda. O mesmo dinheirinho comprando bem menos do que comprava antes. Meio a contragosto, compreendi o sufoco que está passando o pequeno comerciante do meu bairro. Me conformei e como sempre, me encantei com a, embora menorzinha, melhor coxinha da Pedreira.

O rapaz trabalhava comigo no turno. Vinha de Irituia e a origem dele animava a conversa porque andei por ali. Participei da festa do Carimbó, explorei a Vila Pedra, tomei birissuco com a galera.

Era casado, já tinhas dois filhos. Conseguira aquele emprego a muito custo. O ganho era pouco, mas ele pensava melhorar. Estava estudando.

Já no adiantado do Ensino Médio, ainda tinha algumas dificuldades. Eu conseguia lições, textos próprios da série que ele cursava, matérias de História, Português, arrumava uma tirinha de tempo, no turno e exercitava as questões com ele. Fazíamos boas discussões quando analisávamos contextos históricos, aspectos da sociedade atual. Assim como tantas pessoas, formava opinião a partir de programas de televisão sensacionalistas, media fenômenos sociais que o rodeavam com a régua da mídia. Com o tempo, percebi um avanço. As provas que me trazia, revelavam um novo modo de ver e interpretar o mundo. Aqueles resultados me animavam e eu me dedicava mais. Incentivava. Cobrava. Tinha uma deficiência quase intransponível com a matemática. Uma das tarefas que me levou para resolvermos juntos tinha uma sequência de contas com números decimais. Ele adiantou: não sabia fazer. Não entendia patavina daquelas contas de números com vírgula. Pus pra rodar o meu instinto e procurei métodos para fazê-lo crer que ele sabia usar aqueles números.

A organização das parcelas, com vírgula embaixo de vírgula ou dos fatores, contados os algarismos pra lá e os pra cá da vírgula, se realizam na rotina, no dia-a-dia. Simulei meios para que ele reconhecesse essas manifestações práticas. Perguntei se na rua dele vendia chope e quanto custava. Sim. 25 centavos. E se eu comprar quatro chopes? Um real. E mercadinho, tinha por lá? Já comprou uma quarta de feijão, meio quilo de farinha, cem gramas de manteiga? Sim. Alguma vez foi enganado, levou o peso errado, o troco a menos? Não. Tás vendo, evidencie-lhe empolgado. Tu sabes sim. Só não sabes pôr no papel.

A vida ensina. Desafia e inspira. A sobrevivência exige decodificações muito particulares. O Conhecimento organiza e elabora saberes. A vida ensina. O rapaz terminou o Ensino Médio. Mudou de emprego e hoje, sei que opera na atividade portuária de Barcarena. Envolve-se, na lida diária, ora, ora, com números decimais.

sábado, 26 de setembro de 2020

crônica da semana - fundo de quintal

Isso é Fundo de Quintal

Aconteceu comigo, durante este tempo de isolamento social, o que eu mais temia. Comprei uma caixa de som. Parece um robozinho. Desses que reproduz ‘blutufe’, ‘pendraive’, internet e tale’quais em decibéis suficientes para homenagear o sossego dos vizinhos.

No domingo, baixei no celular uma seleção só de sambas e, após o almoço, joguei pro robozinho. Não abusei não, adianto que é brincadeira minha essa marmota de atazanar a vida dos outros. Graduei um volume discreto, aquele tantinho de nos aprazer somente a nós no aconchego sonoro do lar e nas imensidões silenciosas da saudade. Só os clássicos! Com a clareza do som novinho em folha e a flamejante chama da comoção em cada faixa.

Quando o Martinho da Vila entrou equilibrando em brandos tons os primeiros versos de ‘Disritmia’, voltei os olhos pro quintal e resgatei aqueles momentos dos saraus em que alguém puxava o samba, com o mesmo abrandamento, mas não se equilibrava nos versos e a gente vacilava na letra. Nessa hora pensei alto “quem salvava a roda era o Vitu. Segurava essa música no sarau que era uma maravilha. Sabia a letra todinha”. Foi então que o aplicativo trocou de faixa e veio uma sequência com o Fundo de Quintal.

E eu, atado aos cordéis da pandemia, amarrado a súbitos temores, ressabiado com os acasos e as escolhas do vírus... solitário ante a caixa-robozinho, me surpreendo com esse som clarinho dos tantãs, do repique de mão, instrumentos engendrados pelos ‘velhinhos’ do grupo de pagode; e que marcaram (sublimaram) e revolucionaram as batidas do samba.

Adiantei os olhos além das memórias do Sarau do Quintal e dei com a luz do meio-dia se espalhando pelo estrito retângulo que se forma no longe do chagão. Minha clausura, minha deserção, minha entronização no reino das particularidades, das íntimas lágrimas, dos possessivos tremores, da hermética e resistente pulsação acelerada. Seis meses no ‘esconderismo’ secreto onde nenhuma de suas balas puderam me atingir seu vírus boboca dos infernos! O portão, o jambeiro e o pé de jucá me acodem como se couraças de aço fossem.

Antes de refletir sobre a melhoria na qualidade do som e como era antes a minha vida sem o robozinho, me veio um medo verdadeiro, à bordo de uma fantasia que criei: um estado de pressão total. Abandonado em uma redoma virtual. E como no filme Matrix, aqueles monstrinhos se esforçando, usando todos os seus talentos e a força dos tentáculos metálicos para romper as paredes que me protegiam. Não me perguntem como, mas sabem quem me salvou das sentinelas malvadas? O jambeiro, o pé de jucá e o portão desenhado em luminoso retângulo. Éraste! Chega suei de pavor, tensão e um incontrolável odiozinho por causa de um bando de gente que conheço de vista, de perto mesmo e que desgraçadamente, cerra fileiras com as sentinelas. Em pensamentos, palavras, gestos e intenções. Tentáculos!

Fazia tempo que não tomava uma cervejinha, e ainda em meio a uma letargia ‘disritimada’, em mirabolantes pensamentos onde se misturavam os sambas que cantávamos no Sarau do Quintal, as sentinelas da Matrix e a luz, mãe de todas as cores, que vinha do portão, dei com o copo sobre a mesa. A cerveja quente, um mosquitinho tricotando zunidos baixinhos, na borda, espuminha rala. Tentei interagir com alguém da casa, mas o que me ocorreu, foi instintivamente, apontar o dedo para o robozinho que ainda encarreirava os sambas da galera de Ramos, abrir um sorriso e sentenciar: isso é Fundo de Quintal, é pagode pra valer. 

sábado, 19 de setembro de 2020

crônica da semana - meu erro

 Meu erro

As crianças eram implacáveis. Não me permitiam um isso de sucesso com minhas mágicas. A cada tentativa, uma queda. Era desmascarado, pego na mentira. Um, logo dizia ‘tá ali, tá ali a banda do ovinho’. Noutra encenação, Argelzinho que não tinha dó nem piedade em impor-me a desmoralização, denunciava: ‘a carta tem dois lados, frente e costa’. Puxava o baralho da minha mão, todo ele, incrivelmente viciado e exibia as cartas para a platéia exaltada.

Namorava aquele joguinho de mágica que vendia na Lobrás, desde que tempo. Depois de muitos casos passados, a petizada já graúda, consegui comprar a caixa completa. Diversas peças para uma apresentação amadora. Tinha o baralho, o ovinho, o lenço, as moedas, o funil, a garrafinha de água, a cartola e até a varinha tinha. Cheguei em casa todo faceiro pronto para dar o espetáculo. Articulei com a família, queria audiência.

Dei um tibêi no fracasso. Não que fosse um jogo ineficaz. Tinha manual, dicas, procedimentos. Faltava-me a destreza. Errava em movimentos simples. Em detalhes de ligeireza e atenção. Denunciei-me. Logo na primeira sessão, entreguei os segredos.

Aí, a garotada caiu de pau. A molecada da vizinhança toda veio para minha apresentação de mágica, só para me anarquizar. Para ajudar na chuva de vaia. Não amofinei. Aceitei o revés. Não levava jeito mesmo, nas sutilezas. nem nas ilusões.

Não me deixei, porém degradar-me em desinteresses pelos truques.

Uma ou outra arteirice com o ímã é arte que continua até hoje me mundiando.

O ímã é um tipo de matéria especial. Tem sempre um lado que atrai e outro que repele. O espetacular nisso é que, se a gente tem um ímã de dois centímetros de comprimento e parte a peça ao meio, não vamos ficar com uma parte que só atrai e outra que só repele. Os pólos se repetem nas duas partes. E assim por diante. Se dividirmos de novo, vai acontecer o mesmo. Se partirmos infinitamente, se esmigalharmos o ímã em partes pequeníssimas, ainda assim ele vai ficar atraindo numa ponta e repelindo noutra. Devo dizer que este comportamento magnético do ímã é sentido por materiais que têm propriedades afins com ele. Superfícies metálicas, pelo comum, das quais, a porta da geladeira me vem como um exemplo que a nós, nos é mais íntimo e nítido.

Falo agora sobre, porque depois daquele malogrado intento com o jogo de mágica, me abalei de novo aos truques recentemente, agora, manipulando as esferas de neodímio.

As esferas são sólidos que não têm lado. Não há em cima, embaixo, do lado, nas esferas. A impressão é que a esfera tem sempre o mesmo jeito e modo não importa a direção que nos estimule o sentido. Aí é que reside o truque da esfera de neodímio. É um ímã que a gente pensa que só tem um pólo. Mas não. Tem os dois. E dá pra gente fazer cada arrumação, cada ilusão e presepada usando a forma e o magnetismo em favor de nossa mágica doméstica. Lavei a alma! Sucesso total, minhas apresentações com as esferas.

Essas histórias de intentos insolventes tiveram como consolo os felizes resultados com os ímãs de neodímio. E é essa oportunidade, almejada, requerida, conquistada, magnetizada para que eu possa corrigir meu erro.

Tive que doirar o grão de arroz até agora, para reparar a informação que dei na semana passada aqui. A Aurora Boreal é resultado da interação do vento solar com o campo magnético da Terra e não com o campo gravitacional, com afirmei equivocadamente. Por este erro, humildemente, peço vênia.

sábado, 12 de setembro de 2020

crônica da semana - Aurora

 Aurora

Vou dar a letra no justo e certo: no início desta pandemia, entreguei os pontos, me encolhi no canto, ‘aconsoado’, e julguei ser aquele início, o meu fim.

Passados seis meses, sustos, lágrimas muitas, medos, pirações, esperanças sufocadas, decepções com a humanidade e incertezas de montão, cá estou, como diria minha mãe, suspirando. No ritmo indicado à manutenção da vida, com a saturação de oxigênio, ó, lá em cima.

Esse sentimento de expiração inevitável teve suas justificativas, afinal, no pico da pandemia no Brasil, quando me vi diante da ameaça de um vírus letal grassando e se valendo de nossas obsequiosas licenças; no momento em que me peguei abismado com a imagem de um presidente usando máscara na orelha como se estimulando a população a praticar o auto-extermínio; na hora que me bati nas nuances do home office e fui contemplado compulsoriamente com as gasguitagens  do Arrocha e abençoado pelos louvores gritados a plenos pulmões; quando quedado e humilhado pelo vírus, pela falta de governo e pela poluição sonora, pensei cá comigo: não tem escapatória. O fim é chegado. Dei adeus a este mundo cruel. Emagreci. Perdi a barriga de jogador de porrinha e dormi um sono resignado. Foi aí que sonhei com a Aurora.

Nada é muito certo nesse mundo. Mas taí, se eu varar, se alcançar a vacina, a meta a ser buscada é conhecer, ver de palmo em cima, a Aurora Polar.

(E atenção, tudo o que for dito a partir daqui, só terá serventia para quem acredita na lição de Geografia lá da quinta séria, que dizia a Terra, ser redonda e achatada nos pólos. Se não considera essa afirmação, pode desembarcar e mergulhar nas sombras do fim do mundo que distam um nadinha assim dos abismos pavoroso da terra plana).

Aurora, sabemos, é nome próprio, de irmãzinhas que chegam e nos alegram. Está presente em marchinha de carnaval, em samba de breque, e na mitologia romana. É um evento temporal, também. Em nossos dias comuns, tem o sentido do amanhecer, do nascer do sol ou o início da lida.

Das polares, a mais conhecida é a Aurora Boreal. Aí já vem com sobrenome. Boreal é uma alusão ao Titã Bóreas, citado na mitologia grega e que comandava os ventos do norte. Mas a Aurora também ocorre no sul do planeta e por essas bandas é conhecida como Aurora Austral. O adjetivo austral já não tem entidade grega ou romana que o inspire, mas lembra da mesma forma, vento. O vento do sul.

A mais famosa das Auroras polares é a boreal. Por um motivo simples. Pode ser vista em regiões, mesmo que acanhadamente, habitadas. Ocorre nas altas latitudes, nos longes e frios. Ambientes onde não são comuns, as aglomerações urbanas. Do outro lado, no sul do planeta, a Antártida é pouco simpática às gentes e coisas.

Os lugares de melhor visibilidade são aqueles localizados na região do (Terra redonda e achatada nos pólos, heim, gente!) Círculo Polar. É um fenômeno que produz no céu, luzes verdes, vermelhas, azuis e em ondulações, como se fosse uma dança leve e suave de tonalidades. Tem origem na interação do vento solar com as linhas de força do campo magnético da Terra.

Eu, vendo as imagens, os registros dos viajantes que se lançam àqueles longes, fico fascinado. É arte da natureza que merece todos os esforços para ser contemplada (vencer o vírus conta).

A Aurora Boreal acende em mim a esperança, credencia a possibilidade de, ainda em meio à pandemia e às incertezas, nutrir um objetivo futuro. Pensar metas, ter expectativas.

Enquanto suspiro, esperança há.