domingo, 27 de dezembro de 2020
sábado, 26 de dezembro de 2020
crônica da semana - vacina
Uma pinicada no braço de presente
O Natal sempre teve como alvo as crianças, e também, conte-se que este
público demanda uma tomada de decisão mais fácil e concreta: para as crianças,
brinquedo. Palpável, de verdade o suficiente para permitir a alegria e o imenso
folguedo da petizada na manhã do dia 25.
Para os adultos a técnica já desvia para o abstrato. Desejamos
felicidade, alegria, realizações. Que papai do céu entregue na janelinha do
coração da gente, um tiquinho assim de paz.
Isso antes de 2020.
Porque neste Natal, crianças, adultos, nós os velhinhos, o que
esperamos mesmo de presente é a materialidade de uma seringa pinicando no braço
a vacina que vai nos proteger do Coronavírus.
É o meu maior desejo para este Natal.
Vacina para todo mundo. Entendo que neste caso, o coletivo ascende ao
individual e não tem esse negócio de ‘não vou tomar vacina’, não. É
absolutamente necessária, para combater o vírus, uma proliferação de seres
humanos imunes. E libertos do preconceito, do negacionismo, da intolerância, da
ignorância e do desprezo pelo compromisso com o outro.
Não baste este meu entendimento em favor da vacina, há outro bem mais
persuasivo, dirigido aos incrédulos. Sem vacina, difícil a vida que segue.
Quem não se habilita tomar a vacina pode morrer, e também, pode matar
alguém de Covid. Em quaisquer das situações, ‘a vida vai ser severamente
impactada’.
Outras tentativas de persuasão: chance nenhuma tem, caso esteja
pensando num rolé, de viajar para o exterior; pretenda, por algum talento,
conseguir emprego, não vai passar na seleção; usufruir das ações de políticas
públicas, penso que vai ser muito difícil. Matrícula em qualquer curso regular
será, por certo, negada sem o comprovante da vacina.
É só um alerta, e asseguro, não é oportunista, gratuito ou obra de
alguma sutileza política. Dou a dica porque já passei por todas as situações
que citei acima, e em todas elas, para que conseguisse sucesso, tive que
apresentar minha carteirinha.
Tem até um causo sobre a vacina contra a febre amarela. Aliás, sem esse
comprovante, nem saia de casa. Nas viagens que fiz a trabalho e a passeio para
o exterior, era logo avisado da atualização. Houve um ano, que fiquei blefado,
sem grana, sem emprego, sem rumo. Quando meu currículo foi aceito por uma empresa
do Amazonas, corri para a rodoviária, para atualizar a dose da antiamarílica. A
aplicação era na pistola. Quando o agente apertava o gatilho, não tinha bom. O
camarada arriava na hora. Doía pra dedéu. Peguei meu cartão e guardei bem
guardadinho. Era documento exigido para meu novo emprego.
Acontece que guardei bem guardadinho, mas tão bem guardadinho, que
quando cheguei à portaria da empresa (era comprovante que pediam na portaria.
Não podíamos nem entrar para os finalmentes documentais se não tivéssemos o
cartão em mãos), tão guardadinho estava que virei, mexi na minha mala, e não
achei o bendito. Risco sério de perder minha vaga. Liga pra cá, liga pra lá,
embora eu jurasse de pé junto que havia me vacinado, não aceitaram minha
palavra. Fui encaminhado a um posto de saúde em Manaus para tomar outra dose.
Resultado: arriei de novo. A bicha doía pra dedéu. Depois desse sufoco, tenho
mantido atualizada minha carteirinha. Às vezes, guardo bem guardada e perco de
novo. Vou ao posto e renovo. Não é mais na pistola.
Meu desejo, de coração, neste Natal é de concretude. Ações efetivas
pela saúde. Vacina para todos.
sábado, 19 de dezembro de 2020
crônica da semana - vô Firmino
Vô Firmino
Tenho em mim uma troca de energia pra lá de positiva com o Acre. Coisa
da ancestralidade. Saí de lá molequinho sem tino, passei uma eternidade longe, mas
quando dei de voltar, era como se estivesse ido bem ali rapidola tomar de
assalto uma guarnição boliviana. Cheguei chegando. Éraste! Parece uma coisa. Um
conforto, uma empatia, que não senti em outros lugares por onde andei. Um
exemplo que posso dar aqui, foi o que aconteceu em Manaus. Cidade que me era
atravessada. Quando andei por lá, vivia me perdendo. Tudo pra mim tinha que
começar e terminar na Praça da Polícia. Era bater os pés em Manaus e a leseira
recair sobre mim. Às vezes, estava a um passo do meu destino, mas me dava uma
doida, um abirobamento, tinha porque tinha que voltar para a praça e depois é
que eu empinava para novos rumos. Um desnorteio só.
Depois de formado pela Escola Técnica, de ter-me auto proclamado autêntico
e apaixonado paraense papa-chibé, haver conseguido emprego em Rondônia que é
bem ao pegado do Acre, veio a chance de conhecer minhas origens. A terra do meu
papai.
Tinha três dias por mês livre do meu trabalho em Rondônia. Numa dessas
folgas, dei uma escapulida e varei no Acre. Pouco tempo. O ocorrido deu-se em
1983. Tempo pra dedéu. A memória custa a localizar marcas daquela visita tão
curta. Sei que quando desembarquei, nem me abalei assuntando ou consultando
mapas. Tinha só uma mochilinha mesmo, andei um pedacinho pela calçada até uma
parada de ônibus, peguei o primeiro que passou. Não era um acreano. Era um paraense
juramentado. Mas parecia. Tinha uma desenvoltura que só vendo. Não estava
regressando. Lembrança nenhuma guardava da infância que me aproximasse em
termos e modos daquele lugar. Mas atravessei a ponte de ferro pegando aquele
ventinho na janela do ônibus, na maior leveza. Desci no centro, bati perna.
Visitei prédios históricos, o palácio Rio Branco, a praça da Revolução,
descansei ao pé da estátua de Plácido de Castro, almocei mais adiante e no
início da tarde, como se guiado pelo instinto, dei na rodoviária no horário
certinho que saía o ônibus para Xapuri. Era esse o meu plano. Viajar à tarde,
no rumo oeste, pra ver se era certeira a história que dizia o sol não se pôr no
Acre.
Quando cheguei a Xapuri, o sol já havia se posto há um tempo e a noite
era uma verdade concreta e estrelada.
Penso que ante o desconcerto de um encontro inesperado, que acometeu a
banda acreana da minha família, por não imaginar, de jeito e maneira, aquele
paraense desconhecido aparecendo do nada, na calçada da rua da Gaveta, o que me
ocorreu de mais cômoda e pretensiosa interação, foi fazer as contas da chegada
dos sodreres no Acre, para puxar um papo. Meu tio, que a mim me surpreendeu com
extrema destreza, astúcia e inteligência, fez um esforço e chegamos ao meu avô
Firmino, cujo nome dava título à escolinha que funcionava até aqueles dias no
seringal São Miguel. Em tudo por tudo, somando idade dos filhos aqui, tirando a
prova dos nove com a chegada dos netos, ali, casamentos, aniversários, comunhão
e caderno de conta nas lojas de aviamentos, nos demos por satisfeitos em
admitir que meu vô Firmino, vindo da Bahia, fora contemporâneo de Plácido, o
revolucionário e quem sabe, não tenha participado de uns assaltos às guarnições
bolivianas, nas pelejas por um Acre independente?
Tenho em mim, uma troca de energia pra lá de positiva com o Acre. Coisa
do meu vô Firmino.
sábado, 12 de dezembro de 2020
crônica argel - toque de recolher
Toque de recolher
Incomodado por um adoecimento repentino que... Bom, que me impede ficar
sentado por muito tempo à frente do computador, acudi-me do filhinho. Senhoras
e senhores, Argelzinho Sodré:
“Eu estudava no colégio Dom Ângelo Frozi, e estava em mais um dia
normal de aula. A professora devia estar falando das cores primárias, ou algo
assim… até que bateu a campa pro intervalo.
Eu e meus parças fomos pro escorrega-bunda, Tínhamos uma tradição de
misturar nossos lanches e depois degustar essa bomba de sabores
industrializados. Por exemplo, era normal eu lanchar iogurte tutti-frutti bem
misturado com pitchula de guaraná garoto, polvilhado com raspas de biscoito
máscara negra, ou biscoito do gatinho, para os íntimos.
Saindo de lá, visivelmente drogados, fomos assistir aos mais velhos e
mais altos jogarem espiribol. Curtir essa liga sintética vendo uma bola girar
em torno de um poste, só essa escola me proporcionou. Saudades!
Na volta do recreio fomos abordados pelas professoras atordoadas
dizendo que não era pra gente se desesperar, que nossos pais já vinham nos
buscar. Eu voltava pra casa a pé com os caras, ou com a mamãe e a Amaranta, mas
nesse dia a dona Beth, nossa vizinha que tinha uma Kombi -e diversas
semelhanças com a minha tia Dina- estava lá na frente já esperando por nós.
De repente o porteiro, com o microfone anunciava que todos estavam liberados
e lançou a hashtag fica em casa, pois estávamos em toque de recolher. Enquanto
eu me encaminhava para a saída, olhei pra parede e tinha uma folha de papel A4
com a foto de um rapaz careca, na cadeia, anunciando: ARTERENX, ESTUPRADOR
FUGIU DA CADEIA E ESTÁ ATERRORIZANDO A VILA DOS CABANOS.
Na hora meu coração gelou (gelou agora, de novo). Cheguei em casa e o
zap da época (o telefone fixo de número 3754–2504) não parava de produzir
notificações. “Ele é um estuprador que ataca mulheres que andam sozinhas nas
ruas de Marituba, ele foi preso há alguns meses, mas fugiu de Americano, e veio
se esconder aqui na Vila, agora ele tá se escondendo em cima das árvores e
atacando mulheres que passam desacompanhadas, ele já atacou algumas, até a
fulana".
Nós, os Sodreres, prevenidos como somos, não saímos de casa pra nada.
Papai só saía pra trabalhar, Amaranta não podia ir pra casa da Flaviana, e eu
não podia jogar bola. Mamãe ficava inventando coisas pra gente fazer dentro de
casa. No momento de maior perigo, entre 12 e15 horas (todo morador da Vila tem
medo desse horário, se não tem, deveria ter), fechávamos toda a casa,
colocávamos a TV no programa ponto de luz e ficávamos ouvindo história de
visagem de crente, porque era menos aterrorizante que a realidade.
Após 5 dias de muito terror e isolamento, a tia Tati, minha querida
professora da época, ligou pra Márcia, que é uma das melhores amigas da mamãe,
que ligou pra mamãe avisando que prenderam Arterenx lá na comunidade de Vila
Nova. Assim foi restabelecida a tranqüilidade, a paz na pacata Barcarena. E que
quando ele foi preso, estava tentando aplicar a seringa numa criança!!!
Acabei de pesquisar aqui no Google pra saber se essa história é real ou
foi apenas um delírio coletivo. Não achei nada. Perguntei pros meus pais, mas
só sabem que aconteceu, sem muitos detalhes. Ah! Mas as crianças da época sabem
tudo sobre esse tempo de terror, e garantem que foi real o toque de recolher. E
não foi o único caso, ainda teve aquele dia que o leão fugiu do circo...”
terça-feira, 8 de dezembro de 2020
crônica remix - uma tarde
UMA TARDE
Não entende a presença dela ali, em plena
tarde de Sábado. Para ela, o Sábado era um dia sagrado. Dormia até tarde.
Tomava um café, ainda com aquela preguicinha
do acordar sem querer, e ia despertar realmente, embalando-se na rede da varanda. Depois,
vivíssima, tomava um barril de suco de qualquer fruta regional, natural, e
traçava o plano de vôo com possibilidades que iam do passeio a casa de amigos a
uma fugida estratégica para Mosqueiro. O Sábado não tinha hora pra terminar.
Ele lembra que na época da campanha para presidente, tinham uma turma
espertíssíma que fazia a diferença na ‘buxixeata’. Eita! Por aqueles dias, o
Sábado desandava e ia dar no Domingo a tarde.
Não tinha por que estar ali, naquela
tarde. As pendências estavam todas resolvidas. Nem precisaram de advogado. Foi
tudo na santa paz. Não eram casados de vera, mas foi tudo bem divididinho. Ela
ficou com o carro, ele com a casa na Pirajá. Ela levou toda a biblioteca, mas
em compensação, ele herdou aquela belezura de discoteca que incluía aquele
disco em vinil, raríssimo, do bom acreano Sérgio Souto. Tantos anos e não
tinham filhos. Ambos levam a responsabilidade de um exame, que pelo grau de
importância diante das ‘prioridades’, nenhum dos dois, jamais fará. O caso foi
bem resolvido, e o que a levaria a sua casa numa tarde de Sábado convidativa?
Ele meio que surpreso, meio que curioso:
-
Mas és tu mesma, mulher? Que bons ventos te trazem?
Ela, prática, decidida e aparentando pressa:
-Aquelas caixas, lá no quartinho, lembra? Posso dar uma bisbilhotada
nelas?
Ele prestativo, quase que bajulador,
indicando o caminho:
-Claro, claro... Ah, tu sabes onde é...
Enquanto ela cavucava lá por dentro, ele
voltou e buscou no correio eletrônico, o último poema do talentosíssimo poeta
José Miguel Alves, seu amigo virtual mais recente. Traga do verso: “ O último
amigo arde...” Tenta lembrar o gosto de um bom cigarro. Desiste. Ora, ora, a
grande responsável por ele ter abandonado o maldito vício estava ali, no
quartinho dos bagulhos. “Taí, te devo essa”, murmura virando o rosto naquela
direção, talvez tentando reconhecer que a partilha não fora tão justa assim.
-O quê? – Devolve ela, demonstrando ter
ainda os ouvidos mais sensíveis do mundo, emendando a seguir – Achei, achei!
Sai com a mesma pressa que entrou. Ele a
acompanha até o carro. Despedem-se e beijam-se como amigos. Três pra casar ( oh,
não, pra casar, de novo, não!). De repente, um fogo explodido das profundezas
da irracionalidade (aquela irracionalidade do coração, que eles tanto se
orgulhavam de desconhecer), aquele fogo traiçoeiro, insubordinado, perturbador,
se fez num longo beijo. Um beijo com gosto, adocicado. Um beijo orvalhado,
fértil, um Nilo de prazer. Eu momento! Um beijo por tantos beijos. Tão bom, meu
Deus! Mil anos se passaram ali naquele instante...
Quando os lábios separaram-se
constrangidos, procuraram os seus rumos. Tomaram pé e tornaram daquele mundo
impossível de existir. Abraçaram a lógica das coisas e entenderam tudo.
Ela se refez. Entrou no carro, puxou da
bolsa uns bregueços ( umas hastes finas de plástico, de madeira, do tamanho de
agulhas de tricô; atracadores, grampos, aquelas coisas que havia recuperado das
caixas), e com eles tentou prender os cabelos. Ele aproximou o rosto da janela do carro e
confirmou uma opinião antiga:
-Ficas melhor com o cabelo preso.
Não era isso que ele queria dizer. Na
verdade nunca tinha as palavras para definir o prazer de vê-la com os cabelos
daquele jeito. Não sabia dizer bem o “jeito”: preso, não preso. Não de todo
solto. Nem preso, nem solto, sei lá.
Ela, um tanto desconcertada, fez um arranjo rápido com as hastes de
madeira e ai, ai ai, ai, ali estava a mulher da sua vida, com os cabelos
misteriosamente arrumados do jeito que ele tanto gostava.
Um sorriso mútuo foi o sinal da despedida. Ela deu a partida no carro e
saiu para sempre da sua vida, naquela tarde de Sábado.
sábado, 5 de dezembro de 2020
crônica da semana - MIR
Eu quero viver
Houve um ano aí, que eu tava que tava. Juro! Bateu uma deprê. A vida
tava assim, meio desinteressante, meio sem sal. Tudo por causa da MIR (lembram
dela?). É vera! Quando eu soube que a MIR ia cair, romper a exosfera e riscar o
céu em mir pedaços, quando soube que
a aventura super emocionante (e ponha emoção naquilo!) da estação orbital russa
ia acabar, fiquei numa malemolência, num cubu de dar dó.
Afinal a nave era o que vinha animando os meus dias, naqueles tempos de pax globalizada. Foi-não-foi, a MIR
virava notícia e nos pregava uma peça (ou: uma peça da MIR quebrava e a
pobrezinha corria riscos irremediáveis), e eu aqui embaixo, na expectativa, na
torcida. Mais com pouco, outra onda na MIR: ai! Quebrou a rebimboca da
parafuseta do compartimento de gases nobres (argh, argh! Esses russos!), e aí
eu me pegava com todos os santos. Acompanhava as últimas dos jornais, até que
tudo parecesse resolvido. Parecesse! Pois nada se resolvia na MIR. Cada bronca
resultava numa MIR menorzinha. Uma trombada aqui, um esbarrão ali, o coração
ficando fraquinho, fraquinho, e a MIR pedindo socorro. Até os americanos
metidões flutuaram por lá ajeitando um band aid aqui, outro acolá, mas necas.
Não teve jeito. A bicha despencou mesmo. E naquele padrão Rússia pós Guerra
Fria, com uns pedaços deste tamanho perigando cair sobre o cocuruto da gente,
égua!
E
foi esse, o meu comichão naquele ano. Uma nova realidade sem a minha MIRzinha
querida (geniosa, como as nossas queridas, mas como viver sem elas?).
Sinceramente, passei maus bocados, sem ver graça em nada. Enfurnado pelos
escurinhos da casa. Taciturno, ensimesmado. Carente. Sem rir, sem falar, sem
comer, sem beber, na onda dos suspiros enfadonhos e medonhos chiliquitos.
E
ainda mais que eram dias plúmbeos, de chuvas intermináveis.
Um
belo, dia, então, o sol mostrou a cara e eu fui dar uma voltinha por Belém.
Desci, a passos cadenciados, a ladeira do Forte do Castelo, só imaginando...
Lá
embaixo a lançante jogava a Guajará para além das barraquinhas da Feira do Açaí. E eu, aos poucos, me maravilhando com as
possibilidades de viver Belém, Viva
Belém, bembelelém, Viva Belém.
Ali,
na foz do Piri, dei pra ficar contemplando com prazer, os barcos zarparem da
doca do Ver-o-Peso, ao ritmo do banzeiro e ganharem o rumo do peixe bom. Tomei
a Boulevard e me surpreendi esperançoso, animado enquanto me deslumbrava com o
colorido matinal que as pimentas de cheiro emprestam ao entorno do Solar da
Beira, e com o mundo de bondades verdes se mostrando das barracas das
vendedoras de ervas.
Quis
fazer um poema, dar umas risadas, gargalhar. Quis correr de um lado a outro da
praça, atrás dos passarinhos que voam baixinho. Pensei em embarcar num popopô e
depois desembarcar já quando ele estivesse desatracando, só de pirraça. Quis
dar um sinal de louco amor pela minha Belém.
Pedi
abrigo ao Senhor, e ali, sentadinho num banco da Praça do Pescador, sob a
guarda do Jesus dos navegantes, eu decidi: sim, eu quero viver.
Pronto,
daquele dia em diante, a vida me sorriu de novo, e eu não quis mais saber de
tomar os mesmos rumos da MIR. Desde aquele dia de sol, quis ficar pra ver Belém
da Guajará se desfolhar em mil pedaços, presunçosa, orgulhosa, cheia de vida,
para mim.
E quer saber? Bem feito para a MIR, quem mandou ser tão lerda, tão incerta. Despencou e hoje ninguém lembra mais dela, só eu mesmo, nesses dias de chuva.
sábado, 28 de novembro de 2020
crônica da semana - óleo jaçanã
Por uma lata de óleo Jaçanã
Um alvoroço se formou no salão. O cortejo logo se adiantou para o depósito. Seu Zelão, avisado, se dirigiu para lá, com um andar balanceado que distribuía para todo o ambiente, o barulho das chaves engatadas ao cós da calça social. No caminho, nos chamava, os moleques empacotadores, que àquela hora, andávamos nos topando pela frente dos caixas, procurando o que fazer, já que pouca coisa para empacotar havia. Hora morninha da tarde. Movimento ralo, ralo.
Juntamos uma patota de curiosos e partimos para o depósito. Não sabia, que naquela ocasião presenciaria cenas de tortura e humilhação abomináveis e que marcariam barbaramente a minha infância.
Porque eu ainda era uma criança (e é por isso que menores e adolescentes devem ser protegidos de situações de vulnerabilidade, porque olha, o mundo é perverso).
Aos 12 anos, havia conseguido fichar no supermercado de carteira assinada e plaquinha de identificação no peito. Antes mesmo de fichar, por causa de alguns parentes que trabalhavam na loja, fazia bico como encostado. Sem plaquinha. Sem uniforme. Formei uma dupla com um moleque por nome “Guarda-Mirim”, esperto que só ele. Garantia o carreto dos barões e com a parceria, eu empacotava que só, fazia entregas nas casas, deixava os paneiros no táxi e, ao final do expediente saía com um bom apurado em gorjetas. Ele era o meu coach.
Depois de um tempo apurando só o da gorjeta como encostado, fichei. Recebi a bata que servia de uniforme e a plaquinha. De tamanho único, mamãe teve que fazer um ajuste nas medidas da bata e aí... o seu Zelão, sempre ele com aquele cinismo, aquela arrogância alva, aquele menosprezo, ao perceber que o alinhavo da mamãe tinha deixado a bata com um caimento muito justo em mim, não teve o menor pudor, quando foi dar o beabá da empresa, a mim, agora como contratado, de perguntar se eu era veado pra andar assim, todo apertadinho. Eu que nem rapazinho formado era, sequer tinham brotados os pelos, ainda. Não estava preparado para responder se era veado ou homenzinho desprezível igual a ele. Nada da vida sabia, O que me movia era apenas o instinto de sobrevivência, a necessidade real da gorjeta ao final do dia. Sabia apenas que enfrentava aquele constrangimento porque era um molequinho atrás de vender a minha força de trabalho infantil e com urgência. E eu que desconcertado ficara, com aquelas boas-vindas nem maldava que aquilo seria um sinal. Era indício de um comportamento baseado na certeza inabalável de superioridade que ele tinha. Então nada lhe era negado. Tudo lhe era possível. Ele era o gerente. O dono das nossas reações e disposições. Montava-se sobre o poder. E o poder, assumido assim, corrói a humanidade. Dilui empatias, pulveriza o último grãozinho de solidariedade que possa resistir em um ser volúvel, bandado e oco.
Seguimos o cortejo pelos corredores do depósito. Adiante, um rapaz, dominado pelos seguranças.
Seu Zelão avançou. As chaves no cós da calça barulhando, o andar balançado. Encarou o homem, ofendeu, disparou desprezo, asco e por fim aplicou um soco tão potente que o rapaz foi sacado das mãos dos seguranças e desabou no chão. A seguir, os outros completaram o serviço com socos e pontapés. Aquela era a lei dos escondidos, do lá pra dentro, do corredor polonês do depósito. Do seu Zelão.
Um falatório difuso adiantava que o rapaz teria sido flagrado com uma lata de óleo Jaçanã dentro da roupa.
sábado, 21 de novembro de 2020
crônica da semana - abacaxi bromélia
Abacaxi bromélia
Tem cor de
abacaxi, coroa exuberante, casca áspera, brota no meio de folhas alongadas, rígidas
e cheias de espinhos, como o abacaxi, mas não é abacaxi. Trata-se de uma planta
da família das bromélias que tem o cultivo voltado para a decoração. Poderíamos
até comer o lindinho, mas dizque é azedo que dói. Tem por fim, enfeitar mesmo,
pois que medindo em torno de cinco centímetros, não dá nem um estalo entre os
incisivos, avalie um suquinho pra família.
Está na minha
conta como aquele que parece ser mas não é.
Este
abacaxizinho nascendo como bromélia no meu jardim até que me colocou dúvidas.
Pesquisei, perguntei a amigos e amigas sobre ele. Esclarecido fiquei. Sobre
outras e relevantes questões da vida, não tenho dúvidas.
Há anos, orbito,
me embrenho entre os bons e até milito na arte. Dei de escrever. Faço versos aqui, ali. Meu caminho foi
construído em contato com as mais variadas manifestações artísticas e,
principalmente, aquelas de força popular.
Sou da rua. É
ter uma reuniãozinha de escritores ou batuqueiros na praça, um show na beira do
rio, tô dentro. Tem um arrastão do Pavulagem? Umbora então nós. Carnaval? Me
leva que vou. Entendendo, percebendo traços, conceitos, interagindo,
construindo laços de amizade e sempre atrás do prazer e do divertimento
saudável.
Em tempos não
tão remotos, acompanhei e participei de boas iniciativas marcadas pela ocupação
de espaços públicos. Eventos que pregavam a diversidade e o reconhecimento de
identidades culturais. Riquíssimos em qualidade, em elaborações. Muitos dos
artistas que nos encantam hoje e que alcançaram boa exposição na mídia,
pavimentaram seu caminho naquelas reuniões.
Encontros
maravilhosos, produtivos, sonoros, plásticos, aqueles. Que aos poucos foram sendo
tão severamente reprimidos ou por agentes da administração ou da segurança
pública, obedecendo à lógica da força. Do ‘te aquieta a pulso’. E tanto e com
tamanho rigor, que os artistas e produtores se viram forçados a sair de cena. E
eu, amante das artes, das peças e praças do povo, me vi órfão das coisas boas
da vida, fui me amofinando, ficando pequenino, azedinho, com aquele sentimento
de parecer ser o que não é, tal qual o abacaxi bromélia.
Depois veio a
pandemia e completou a derrota.
Sem arte, sem
vida. Sem artes, desilusões. Sem o alento da arte, ensimesmamentos e banzo. Este
cenário sem cor e sem graça, sem pano de fundo nem música incidental, esta tela
branca de silêncios relegados aos cantos, ao acanhamento, faz as vezes de um soterramento.
De um afogamento pra dentro da gente. É como se engolíssemos, depois de
mastigar bem mastigadinho, os próprios pulmões.
Às vezes penso
ser coisa da idade. Porque, tá que tá que a idade mexe em tudo na gente. Outro
dia fui fazer um exame de rotina e uma simples pinicada criou logo um catumbi,
arroxeou, sangrou que só, deu febre e pressentimentos, crise de abstinência de
álcool e doces, pânico, panemice, anuviamento, apatetamento e falta de senso,
crise existencial, choro escondido, reflexões sem fim, alarmes falsos de
desfalecimento, síncope, soluços, uma sensação de estrepe no dedinho do pé,
cheiro de queimado no nariz, chiliquitos, dordolho e saudades imensas do rio
Acre, das corredeiras do Madeira, das cachoeiras do Xingu, daquela
lua imensa boiando do Amazonas na orla de Macapá. Da Guajará.
De repente
tornei. Era domingo 15. Venci o medo de sair de casa, procurei meu título,
agarrei e fui votar, na esperança de que tudo isso passe.
quinta-feira, 19 de novembro de 2020
crônica remix - piuns
Espantando piuns
Naquela época, eu nem fumava, mas andava sempre com um
cigarro de um tabaco bem forte (que eu mesmo tecia com aprumo e zelo), no canto
da boca, fazendo fumaça para espantar o pium (um mosquitinho atentado que a
qualquer vacilo nos drenava o sangue sem pena). Não tinha rigor no vestir mesmo
porque, ali, no campo, não fazia questão de ser fashion. Uma bermuda surrada e
uma camiseta de algodão fina me valiam. Um chapéu de palha raso, para fazer
frente ao sol de Rondônia, também.
Tínhamos uma campanha para realizar numa fazenda que
ficava perto de Ariquemes. Eu tinha um acampamento, ali próximo e fui escalado
para fazer o reconhecimento da região e iniciar os contatos com o dono da
terra.
A minha equipe contava com umas vinte pessoas.
Deixamos o carro na estrada e seguimos a pé até a sede da fazenda. Lá
encontramos um grupo que veio nos recepcionar. Um rapagão meio arqueado de tão
alto que era, adiantou-se. Passou por mim, sem dar muita trela para o meu povo
que se alinhava organizadamente ao redor. Parou no fim da fila, cumprimentou
com respeito, um dos auxiliares e se colocou à disposição para as negociações
sobre a pesquisa da cassiterita. O rapaz, meio desconcertado, declinou
educadamente daquela intenção e adiantou para grandalhão que o responsável pela
conversa e pela pesquisa era eu, que estava ali, à frente da turma, esperando o
desfecho daquela indelicadeza. Ele voltou, apresentou-se como capataz,
desculpou-se meio sem vontade, disse já estar sabendo do que se tratava e sem
mais delongas nos liberou a área. Um cafezinho sequer, daqueles puros,
cheirosinhos, de fazenda, ofereceu. Tudo bem. Demos meia volta e caímos no
trecho.
Foi fácil entender a atitude do capataz. O rapaz que
ele escolheu para prestar reverências era o único louro de olhos azuis da
equipe. Nosotros exibíamos o perfil cafuso amazônico e ele, como tinha a missão
de ratificar um acordo de alto nível que resultaria em uma boa grana, que
modificaria a rotina da fazenda e que definiria o futuro de muita gente ali,
caso houvesse a tão sonhada reserva de cassiterita, ligou este contexto
delicado ao estereótipo representado pela cor da pele. Interpretou que o poder
de decidir sobre aquela campanha, só poderia vir de alguém igual a ele de pele
branca, estatura avantajada e dorso arqueado. Jamais pensaria que essas
atribuições estavam concentradas exatamente naquele neguinho de um metro e meio
com chapéu de palha com abas desfiadas, ostentando uma vestimenta barata e
enganando os piuns com baforadas difusas do poderoso ‘Fumos Leão’.
Na memória recente do Brasil, são omitidos os registros de conflitos raciais explicitamente drásticos como aqueles que conhecemos na
história da África do Sul ou dos Estados Unidos. Criou-se a fantasiosa democracia racial, o que não significa que aqui a
discriminação inexista. E não significa também que com este abafamento dos impulsos, das reações mais significativas, a gente tenha reconhecido o
paraíso da tolerância racial. Aquela experiência em Rondônia me causou desconforto
e me mostrou que o caminho para vencer o preconceito, exatamente por causa
desta indolente hipocrisia reinante no país, é bem mais tortuoso do que nos
pregam as doutrinas ladrilhadas de mentiras.
Depois daquele dia, consegui até conversar com o capataz
taludão. Rolou até o café. (A possibilidade de royalties polpudos arrefecia
qualquer ímpeto de segregação). Só que deu azar, o gigante. Ao final da
pesquisa, a área deu negativa e a mina com o cobiçado minério não vingou.
Quanto a mim, ainda bem que não me impressionei com
aquela vexação e segui meu caminho cuidando para não dar sangue aos piuns.
sábado, 14 de novembro de 2020
crõnica da semana - cabelouro
Cabelouro
Eu era moleque
zinho ainda, lá das beiradas do rio Acre, na época em que a Jovem Guarda
marcava pontos nos altos da parada de sucesso. O meu lugar de ser e de estar mesmo
era o ermo do seringal. Vez por outra é que meu papai entrava em transe, dava
uma doideira nele, arrumava a filharada, mamãe, parentes, aderentes, jogava os
pequeninos no caçuá, e ganhávamos o rumo da cidade no lombo dos burros, em
animado e extenso comboio.
A casa da vovó
Raimundo era nosso abrigo, em Xapuri. Ficava na rua da Gaveta. Tinha parede de
barro, um portãozinho baixo e testeira de enchimento. Era o chamego da vovó.
Embora já cangasse grilo pra cima e pra baixo, quando estava na cidade, voltava
a ser neném com direito a colinho e papinha toda noite. Eu é que não reclamava.
Aproveitava a paixão e o encantamento que a vovozinha tinha por mim.
A cidade me
alertava para outras experiências. O Raimelo, que era a rádio de poste e transmitia
para toda a beira do rio, e ainda o picolé da sorveteria Sibéria, que tinha
formato cilíndrico e era apresentado em todos os deliciosos coloridos do mundo.
Um passeio pela orla era o programa da família de tardinha. Vêm daqueles passeios
vespertinos à beira do rio Acre, as sensações, uma emoção inexplicável para a
idade tenra, os soluços que a voz de Vanusa provocava em mim. Guardo na gaveta
dos mistérios a minha reação nas vezes em que o Raimelo irradiava o sucesso do
momento: “Pra nunca mais chorar”. Aquele arranjo emparelhando a voz adensada da
cantora com um coro plangente de fundo me esmigalhava o coração e o que não era
pra acontecer nunca, acontecia convulsivamente. Chorava que me acabava.
Mergulhava numa tristeza, numa palidez de alma. Eu, gitinho, chorava que
soluçava. Sem razão nenhuma. (Hoje penso que sentia uma saudade. Eu moleque zinho,
chorava de saudade, talvez, desse futuro que hoje foge da gente). Nem o picolé
mais colorido me consolava. Um alento só vinha quando me aninhava no colo da vó
Raimunda.
O presença
marcante de Vanusa, na minha jornada, notadamente, foi mediada pelas minhas
avós. Com papinhas e carinhos ali no Xapuri; com alertas e ralhos aqui em Belém.
Uma companhia ora marcada pela voz fascinante, ora pelos loiros cabelos
deitados sobre os olhos.
Mais tarde,
depois de cruzar a Amazônia a bordo do navio Domingos Assmar e dar com a
família na Pedreira do samba e do amor, e um quê além de adestrado à cidade grande,
não chorava mais. Vanusa se mostrava agora, pela tela de TV ou pelas capas de
revistas, além da voz.
Nas brenhas do
Acre, só as ondas dos rádios nos encontravam. Eram os nossos sentidos, estimulados
pelo som. Em Belém, a imagem era reveladora. Completava e redirecionava a
outras frentes que não somente à emoção, aquela elaboração que eu fazia da
cantora.
Nas ruas da
Pedreira, a garotada quedava-se à moda. Eu, minhas irmãs, vizinhas, e meio
mundo de fãs procurávamos remedar a cantora naquela que era a marca registrada
da sua imagem, a franja loira. A gente via na TV, o poder daquele penteado. O
movimento decidido ao jogar a franja para trás, o brilho doirado dos cabelos, que
no preto e branco da televisão até encandeava a gente, o olhar dizendo sermos
nós, o infinito.
Tinha até mandingas
para nos aproximarmos dela na categoria da tez: em casa era briga pra comer uma
peça da carne conhecida como cabelouro. Uma placa amarelada, de textura
emborrachada que, diziam os iniciados, se a gente consumisse com fé e
regularidade, nos tornaríamos louríssimos.
A vovó Marieta,
de Belém, não via graça nessas arrumações. Pra ela, cabelouro era langanho da
carne; franja era ‘cabelo no olho’, dava catarro e enfraquecimento na gente.
Belém me alertava para realidades diferentes daquelas que eu vivia no seringal.
Era o mundo paralelo da metrópole sucedendo o ermo. De certo e justo, só a encantadora
voz de Vanusa realinhava as fronteiras.
sábado, 7 de novembro de 2020
crônica da semana - panorâmica
Panorâmica
Vinha sempre de
um lugar longe. Chegava pingando de tanto suor, dos distantes arrabaldes que
abrigavam o Instituto Bom Pastor, das cercanias de Marituba, dos igapós
estivados do Jurunas ou dos covões de São Brás. Era comum trazer consigo a
visão panorâmica dos locais por onde passava.
Era um homem grande.
A idade se anunciava nos cabelos brancos, na pele gretada, e num discreto
manquitolar que o projetava desengonçado para frente, quando andava. Por outro
lado, não deixava dúvida sobre o vigor remanescente. Uma força cearense. Cabra
da peste. Vivente de fé. Pé rachado. Cabeça erguida. Sem medo. Tinha energia
bruta, abundante, e que lhe permitia ânimo e fôlego para carregar duas sacolas
imensas cheinhas de produtos dos mais variados jeitos, qualidades e
padronagens. Alpercatas de couro. Sandálias Cariri, Katina Surf, perfumes e
extratos a retalho; flores de plástico e paninhos de crochê para enfeitar
mesinhas de centro; uma ruma de encantos, rapadura, cocada, beijo de moça,
broa, rosca, pipoca. Estes, os haveres da circunstância, da ocasião. O que
garantia a freguesia mesmo era o grupo de engarrafados. Andiroba, copaíba, mel de
abelha. Não dava vencimento. Quantos litros conseguisse, lá pelos sítios de
Marituba, quantos vendia.
Quando entrava
na vila em que eu morava, fazia a festa da garotada. Uma cocada, um pacote de
pipoca, uma placa de quebra-queixo, sempre franqueava para a turminha mais
animada.
Pedia entrada em
casa, batia o pé no batente, tirava o chapéu de couro. Acudia-se de um copo d’água.
Largava as sacolas escorando a porta aberta, pra entrar um vento, procurava um
canto da mesa rés à parede, aprumava o corpo e sentava no banco mais alto. Não
se ouvia um ai deste homem, enquanto enfrentava os estirões com as enormes sacolas
penduradas aos braços. Mas ali, em casa, quando se entregava a um descanso, se
denunciava em reclamações, em gemidos, em estalos forçados de ossos. Ao se
aquietar, as dores o visitavam. Bebia a água, limpava o rosto com um lenço
roto. Disfarçava o desconforto muscular com um encarreiramento de sorrisos, com
a visão panorâmica que trazia dos longes e ainda com versos e prosas criadas
ali, no repente da hora.
Demorava-se nos
causos. Conversava fácil e visitava o mundo das palavras e dos sentidos com profundidade abissal, enquanto
falava. Certa vez, vindo da beira do igarapé do Galo, refletiu sobre a tristeza
de ter que engolir no silêncio, a pilhéria, a encarnação a que fora submetido
ao atravessar a ponte do Chaco. Uma
turma de desocupados o tirou pra pagode chamando-o de matuto, de afogoiozado,
ceará cabeça chata; avacalharam com o seu caminhar manquitolado. Fazia questão
de alertar: não revidava porque não era de confusão, mas tinha guardada, para
ocasiões mais aquelas de necessárias, uma lambedeira amolada pra lá de palmo e
meio, que o acompanhava desde os tempos do Crato. Não se conformava com esses
embates, essas malinezas, essa vocação que algumas pessoas têm para humilhar os
outros. Algumas vezes, esquecia que falava com a gente, baixava a cabeça e se
perguntava baixinho “por que tinha que ser assim, por quê?”, de volta ao nosso
mundo, nos pedia, a nós que éramos crianças, e que o admirávamos e o
respeitávamos, para que odiássemos com todas as forças, a ira. E amássemos, sem
regras, o amor.
Uma lasca de
rapadura que ele dividia animado com a gente e a poesia inscrita em conselho certeiro,
me são até hoje, heranças de visões panorâmicas que recebi daquele cearense. E
que prezo e zelo.
terça-feira, 3 de novembro de 2020
sábado, 31 de outubro de 2020
crônica da semana - A música na frente
A música na frente
Na falta dos
rolés tradicionais de outubro, este ano nos quedamos em casa a trocar prosas
sobre curiosidades, detalhes pouco percebidos nas grandes movimentações do
Círio. Os colégios Gentil e Nazaré entraram na conversa. O Gentil é parada
final. Recriamos o momento da chegada e guarda dos carros da procissão, na
grande área ajardinada na frente do prédio. Acrescentei que na última vez que
acompanhei minha filha nas mobilizações do ensino médio, nem chegamos a
atravessar o portão do Gentil conduzindo nosso carro. Dali mesmo, voltamos pra
casa.
Tirando por essa
passagem da conversa, constatei que não foi muito comum, na história da minha
vida, atravessar os portões do Gentil. Duas contadas vezes, tive a oportunidade
de cruzar o jardim da escola. A primeira vez foi quando, ainda no início da
década de 1980, o padre Bruno Sechi coordenou a Pastoral de Juventude da Arquidiocese.
Fizemos um grande congresso, ocupamos as dependências da instituição, agraciados
por obsequiosa concessão feita pelas Filhas de Santana aos jovens
entusiasmados, cheios de vontade, ávidos por um mundo melhor. Todos os dias do
congresso eram iniciados e terminados com música. Nem sempre religiosa, mas
inevitavelmente de alta energia, de apelo a mudanças, mensageiras de paz e
justiça.
A outra e
inesquecível vez que entrei no Gentil, fiquei só por ali, pelo alpendre.
Aconteceu alguns meses antes de sair de Belém para ganhar a vida em Rondônia. O
jardim do colégio recebia um festival de música e naquela noite, um grupo
chamado, olha só que coincidência, Madeira-Mamoré, tocava no palco montado na área
externa. Fiquei com a estranheza do nome da banda martelando na cuca, e, olha o
destino: nos anos seguintes, seria íntimo, saberia muito sobre a história da
ferrovia Madeira-Mamoré. Conheceria descendentes de barbadianos que trabalharam
na construção, faria viagens na Maria Fumaça, pelo trecho ainda em operação,
conheceria as obras de Márcio Souza e Manoel Rodrigues Ferreira tecendo uma,
enfoque diferente da outra, para o tema.
Encarreirei a
nota que fiz sobre o Gentil ao resgate lá dos mesmos idos oitentistas, e a uma
deferência a mim dada para avançar nas dependências do Colégio Nazaré. Ocorreu
na posse da primeira gestão de uma entidade de estudantes secundaristas após a
devassa promovida pelo AI-5. Ainda sob a sigla Uesp, o movimento se reerguia
ali intramuros maristas. Tomei posse, mas já deixando de ser secundarista. Estava concluindo meu curso na ETFPA. Mais
tarde a entidade se reorganizaria como Umes, mas eu já estava em Rondônia, na
lida. Não teve música na posse, mas a música do Nazaré, eu já conhecia do
Mojuvena, que era unha e carne com o colégio. O grupo participava de todos os
festivais da Escola Salesiana. E em alto estilo. Tinham os melhores
instrumentos, levavam a própria mesa, microfones. Taí, se um dia tive uma
invejinha doce, foi daquele aparato do Mojuvena. E tocavam pacas. Hoje, quando
vou acompanhar a chegada da Santa, na Romaria Fluvial, me demoro ouvindo a
banda na frente do Nazaré. E me bate a história do Mojuvena, me ocorre a posse
da Uesp.
Acho que nas
decisões graves que a gente tem que tomar, a música deva vir sempre à frente.
Mesmo que, para servir depois de reflexão: como, meu pai, com tanta motivação
ativada pela música, com tantos jovens energizados, buscando mudanças em grupos
de igreja, na militância estudantil, ou na harmonia dos festivais... Como nos
deixamos afundar neste buraco que é o Brasil hoje?
sábado, 24 de outubro de 2020
crônica da semana - peco
Tudo isso será teu
O pó da estrada
escondia o caminho. A gente deixava o carro passar, dava um tempo pra poeira
sentar e continuava o trajeto a pé, pela estradinha mal arrumada que nos
deixava perto da entrada do nosso acampamento. Era uma estrada usada pelos
garimpeiros e alguns proprietários de terra que se distribuíam pelos ermos da Perimetral
Norte.
Deixávamos a
frente de trabalho, fora do horário, porque o rapaz que me acompanhava tinha
que ir urgente pra cidade. Nem bem tinha voltado. Passou os dias legais de
licença paternidade em Macapá, mas já tinha que voltar. A criança não vingou.
Não dava pra esperar o transporte rotineiro. Liberei o rapaz do trabalho e o
acompanhei até o acampamento. Pegamos o atalho e ganhamos o rumo da base, para
que ele se arrumasse, pegasse as coisas, um transporte e ainda alcançasse o
horário do trem, na estação de Cupixi. Enquanto vencíamos aquele estirão
toldado de vez em quando por uma chuva de poeira vermelha e fina, ele me
contava da vida. Lamentava a perda do filho. Era o segundo. Achava que era uma
sina. O primeiro já havia nascido com problema. Cabia na palma da mão. Falava
com um certo conformismo. Dizia que só tinha filho peco. Aceitava o destino e
entregava tudo nas mãos de Deus. No dia seguinte enterraria o anjinho sem
duvidar um só instante que aquela era a vontade do Senhor.
Depois que
despachei o transporte para a estação do Cupixi, atinei: não sabia o que era
peco. Mas pelo que ele falou na nossa conversa, dava pra imaginar.
O outro já não
aceitava o destino. Vinha da Bahia. Deixou a família no recôncavo e foi
procurar melhoria de vida nos garimpos do Oiapoque. Não se deu. Era homem
forte. Mãos calejadas, acostumadas ao trabalho duro na roça. Não se adaptou
àquela vida no garimpo. Sonhava era com um pedaço de terra pra plantar. Sem
muita opção, conseguiu emprego e foi trabalhar comigo de ajudante geral. Fazia
de tudo, mas naqueles tempos, com folga nas frentes de trabalho e com uma
deficiência na logística, foi deslocado para dar apoio na cozinha. Levava o
nosso almoço no campo. Numa ocasião, fazíamos uma pesquisa na borda de um
milharal. Uma fazenda toda fatiada em pequenas culturas. Deixou nosso cumê,
esperou todo mundo acabar, organizou as marmitas, mas não voltou pro
acamamento. Ficou por ali. Subiu um barranco próximo e sentou lá em cima,
pensativo. Deixei a turma no batente e fui ter com ele.
O lugar era um
mirante privilegiado. De lá dava pra ver a imensidão da fazenda, os tipos de
plantações, lá no fundo o céu azul. Houvesse uma comparação para aquele
cenário, pescaria das tentações que Cristo recebeu no deserto. “Se me adorares,
tudo isso será teu”.
Mas ele só
queria um pedaço de terra.
Sentei ao lado
dele, ouvi as histórias do recôncavo, do garimpo. Do inconformismo. Nunca na
minha vida identifiquei tanto amor à terra se denunciando em uma pessoa e numa
linguagem tão verdadeira. Chegava a descrever procedimentos, condutas, cuidados
que uma roça exige. Contou como se preparam as tarefas. Mencionou métodos de
irrigação, manejo de frutas e hortaliças. Era um homem da terra. Senhor da
terra sem terra. Falava, fitava o horizonte e, sem se notar, espalmava a mão no
chão em que nos acomodávamos. Como se quisesse entrar no solo, misturar-se ao
húmus. Cavar, cultivar um destino diferente daquele de entregar marmita para a
turma no campo.
Bem lá adiante,
já pertinho do céu, o pó da estrada escondia o caminho e os sintomas de um país
peco.
sábado, 17 de outubro de 2020
crônica da semana - encontro de lilases
Encontro de lilases
Semana minada de
emoções, decepções com insanos ajuntamentos de gente, surpresas e chuvas da
tarde, aquela aziazinha remanescente das extravagâncias do almoço de domingo e
eu me vendo bestinha da silva de descobrir, em tantos anos escrevendo aqui e
alhures, não ter, até então, incorporado ao meu vocabulário a palavra composta
por justaposição, “arco-íris”. É vera. Não tenho na memória o registro deste
belo e intrigante espetáculo nas minhas prosas, tanto que fui às pesquisas na
escrita normativa para poder grafá-la aqui na justaposta certeza do hifenizado
colorido, correto e aprovado pela recente reforma. E que arco-íris fez domingo
passado, heim! Arrasou! Veio em dois. Para marcar o dia. Matizou o céu do Círio
diferente. Mamãe, que não descartava os ditos e os mistérios, se entre nós
ainda estivesse, por certo cravaria: “parece uma coisa”.
O arco-íris se
realiza a partir da conjugação de um fenômeno meteorológico, mais um processo físico
ótico e uma dose fundamental de sensibilidade humana. A presença de água na
atmosfera, um solzinho brilhando em baixo ângulo e nosso olhar de observador
encantado são os elementos necessários para que o arco se dobre em um
espetáculo de cores que entontece a gente.
É imagem difícil
de explicar. O gênio de Newton, há mais de 400 anos, suavizou nossas
inquietações deduzindo sete cores principais que formam o arco-íris. Mas lá nos
escaninhos científicos certificam-se centenas, milhares, milhões de milhares de
tons e semitons entre o vermelho e o violeta do espectro desvelado no céu.
E no domingo,
dois arco-íris se formaram. Compuseram com a igreja de Nazaré, um cenário
único, plástico, divinizado em coração de mãe.
Não sei se
diante de tanta beleza e de uma nesgazinha de bem-vinda incompreensão (do
fenômeno, Newton, espectro...) ou de uma oportuna crença (mamãe, mistério...
“parece uma coisa”); não sei se foi percebido, por quem presenciou o fenômeno,
o detalhe de a ordem das cores, nas faixas que compõem o arco-íris, se
inverter, de um exemplar para o outro. E esta constatação dá chance ao mix de
sentimentos se justificar, quando nos deparamos com a contraposição, com o
encontro de lilases, com o distanciamento dos vermelhos, com imensidão de luz
traduzida nas sete plenas, infinitas cores.
O que os nossos
olhos acreditam ver, também sugerem a transcendência. O arco-íris é citado no Antigo Testamento
como o símbolo da aliança entre Deus e os homens, após o dilúvio. É uma mensagem. Uma certeza.
O céu de um
domingo de Círio, em meio a tantos problemas que enfrentamos atualmente; um
domingo de Círio, por certo, sem paralelo na história. Sem procissão, sem
Corda, sem o Carro dos Milagres. O céu de um domingo do Círio, colorido por um
fenômeno físico, formado em duplicidade, em choque de lilases, para muita gente
foi um sinal de novos rumos e tempos (“parece uma coisa”, uma mensagem, a
bênção da Virgem de Nazaré...).
Quando morei
fora de Belém, por um período de mais de dez anos, minha mãe, todo Círio,
mandava pra mim um roc- roc. O brinquedo era símbolo. Era mensagem. Era certeza
de nossa aliança. Fez parte da minha felicidade daqueles tempos em diante.
Em isolamento,
neste Círio, não saí de casa, não vi a santinha, não comprei meu brinquedo de
miriti.
O céu do domingo
cortou e arou. Foi consolo e conforto. Trouxe pra mim um sentimento de esperança,
de Círio e roc-roc. Espero que para o coração do mundo também.
sábado, 10 de outubro de 2020
crônica da semana enxadeco e chibanca
Enxadeco e chibanca
Uma ferramenta é
o que o nome diz, mesmo: uma enxada pequena, magrinha e compridinha. A outra,
como se fosse uma picareta, é constituída de duas pontas. De um lado, a parte
cortante tem as aparências do supracitado enxadeco; do outro, forma uma ponteira
de corte afiado, à guisa de uma talhadeira. Dou destaque a essas peças porque
compunham as ferramentas necessárias para cavar poço, nas campanhas de Geologia
que minha turma fazia margeando o Xingu. E também, porque eu vi, dias atrás, um
filme que tinha uma cena onde, trabalhadores de uma pedreira, ao terminar a
jornada, cada qual pegava sua ferramenta e ganhava o rumo de casa. O filme, uma
versão de O Cortiço, obra de Aluízio Azevedo, autor maranhense que inaugurou o
Naturalismo no Brasil, demonstrava, naquele cortejo saindo da pedreira, a
ligação traçada entre o homem e sua ferramenta de trabalho.
Logo tornei à
margem do Xingu e imaginei o dia dos pequenos que cavavam poço na minha equipe.
Alguns nomes emergem da memória. Jacinto, Bené, Firmino, Onça. Trabalhavam em
dois. Chegavam do campo, e antes do descanso merecido, ainda se detinham
tratando do material. Lavavam, faziam pequenos reparos, afiavam a lâmina no
esmeril, na lima. Acunhavam, introduziam um calço aqui, outro ali. Traziam
dignidade àquela relação, muitas vezes vista como de valor reduzido. Imputavam
àquelas peças a significância assumida e defendida por eles. Sabiam que pela
natureza bruta do ferro e da terra escavada, se o equipamento não estivesse bem
cuidado, mais energia gastariam, sofreriam mais, destinariam grande esforço a
tarefas de poucos resultados. Havia entre eles a cumplicidade de fio, suor,
desterro e corte.
Parece estranho,
para quem não viveu dias de peão, uma parceria entre o trabalhador e qualquer artefato
de produção, que possa beirar a afeição. Não era amor. E por razões alhures
assinaladas, ódio não poderia ser. Penso, porém o respeito, intermediar esta intimidade.
Eu mesmo, nos primeiros anos de Barcarena, quando fui apresentado ao cabo de
uma pá, no lugar de odiá-la com todas as minhas forças, busquei aliançar-me
para que a dor fosse branda. Houve de, a cada fim de jornada, eu limpar, lavar,
desempenar minha espátula, guardá-la em lugar que ninguém pudesse achar e
querê-la ao meu lado sempre, como amparo e consolo; como renitente tradutora de
minhas mágoas. Seríamos nós dois insatisfeitos, embrutecidos. Ineficazes
desencrostadores, noite à dentro, de frio, zunidos, vapores, calores
predadores. Reclusão e um tênue e necessário fio de razão.
Naqueles tempos
outros de Movimento jovem lá na Escola Salesiana, ousávamos. Modificávamos
aqui, ali, com cuidado, o rito da Missa, de forma que o Padre Lourenço, embora
com reservas, permitisse as mudanças. Certa vez, articulamos um ofertório, em
que depositávamos no altar, objetos do dia-a-dia, peças de roupa, máquinas e
instrumentos que compunham o acervo doméstico. A simbologia era de oferecer
ali, a nossa vida ou elementos construtores da nossa vida.
Acho que é isso
que pretendo nesse Círio. Oferecer à Virgem Santa, enxada, chibanca, a
lembrança e o carinho que guardo por Jacinto, Bené, Firmino, Onça, a turma que
cavava poço e que trabalhava em pares. Também para agradecer porque uma vez
desci num poço que os meninos haviam cavado, já há algum tempo, e uma cobra
tinha escapulido lá pra dentro. Se escrevo esta história é por obra e graça da
Santinha.
sábado, 3 de outubro de 2020
crônica da semana - a vida ensina
A vida ensina
A gente sempre
se encontrava ali para um respiro, tomar uma água, um café. A sala funcionava
como um local de descanso. Rodávamos os turnos, e por conta das peculiaridades,
as jornadas da madrugada, certamente, eram as mais tranqüilas. Então, naquele
tempinho que a gente desanuviava e tomava um ar, trançávamos uma prosa, nos
conhecíamos e rolava a parceria.
A vida ensina. Mesmo
se a gente não domina as equações, as contas com fração, ou a teoria dos
conjuntos, a vida, de palmo em cima, ensina. Quer ver lição mais facinha assim
de entender sobre a desvalorização da moeda é a mudança no padrão da melhor
coxinha produzida na Pedreira. Qual não foi minha surpresa quando chegou meu
pedido ontem. Tudo nos conformes. Menos a envergadura. O tamanho da coxinha
caiu quase pela metade. O preço permaneceu o mesmo, mas a elipse, que era
rechonchuda, desinflou. O meu lanchinho foi o exemplo clássico de
desvalorização da moeda. O mesmo dinheirinho comprando bem menos do que
comprava antes. Meio a contragosto, compreendi o sufoco que está passando o
pequeno comerciante do meu bairro. Me conformei e como sempre, me encantei com
a, embora menorzinha, melhor coxinha da Pedreira.
O rapaz
trabalhava comigo no turno. Vinha de Irituia e a origem dele animava a conversa
porque andei por ali. Participei da festa do Carimbó, explorei a Vila Pedra,
tomei birissuco com a galera.
Era casado, já
tinhas dois filhos. Conseguira aquele emprego a muito custo. O ganho era pouco,
mas ele pensava melhorar. Estava estudando.
Já no adiantado
do Ensino Médio, ainda tinha algumas dificuldades. Eu conseguia lições, textos
próprios da série que ele cursava, matérias de História, Português, arrumava
uma tirinha de tempo, no turno e exercitava as questões com ele. Fazíamos boas
discussões quando analisávamos contextos históricos, aspectos da sociedade
atual. Assim como tantas pessoas, formava opinião a partir de programas de
televisão sensacionalistas, media fenômenos sociais que o rodeavam com a régua
da mídia. Com o tempo, percebi um avanço. As provas que me trazia, revelavam um
novo modo de ver e interpretar o mundo. Aqueles resultados me animavam e eu me dedicava
mais. Incentivava. Cobrava. Tinha uma deficiência quase intransponível com a
matemática. Uma das tarefas que me levou para resolvermos juntos tinha uma
sequência de contas com números decimais. Ele adiantou: não sabia fazer. Não
entendia patavina daquelas contas de números com vírgula. Pus pra rodar o meu
instinto e procurei métodos para fazê-lo crer que ele sabia usar aqueles
números.
A organização
das parcelas, com vírgula embaixo de vírgula ou dos fatores, contados os algarismos
pra lá e os pra cá da vírgula, se realizam na rotina, no dia-a-dia. Simulei
meios para que ele reconhecesse essas manifestações práticas. Perguntei se na
rua dele vendia chope e quanto custava. Sim. 25 centavos. E se eu comprar
quatro chopes? Um real. E mercadinho, tinha por lá? Já comprou uma quarta de
feijão, meio quilo de farinha, cem gramas de manteiga? Sim. Alguma vez foi
enganado, levou o peso errado, o troco a menos? Não. Tás vendo, evidencie-lhe
empolgado. Tu sabes sim. Só não sabes pôr no papel.
A vida ensina.
Desafia e inspira. A sobrevivência exige decodificações muito particulares. O
Conhecimento organiza e elabora saberes. A vida ensina. O rapaz terminou o
Ensino Médio. Mudou de emprego e hoje, sei que opera na atividade portuária de
Barcarena. Envolve-se, na lida diária, ora, ora, com números decimais.
sábado, 26 de setembro de 2020
crônica da semana - fundo de quintal
Isso é Fundo de
Quintal
Aconteceu
comigo, durante este tempo de isolamento social, o que eu mais temia. Comprei
uma caixa de som. Parece um robozinho. Desses que reproduz ‘blutufe’, ‘pendraive’,
internet e tale’quais em decibéis suficientes para homenagear o sossego dos
vizinhos.
No domingo,
baixei no celular uma seleção só de sambas e, após o almoço, joguei pro
robozinho. Não abusei não, adianto que é brincadeira minha essa marmota de
atazanar a vida dos outros. Graduei um volume discreto, aquele tantinho de nos
aprazer somente a nós no aconchego sonoro do lar e nas imensidões silenciosas
da saudade. Só os clássicos! Com a clareza do som novinho em folha e a
flamejante chama da comoção em cada faixa.
Quando o Martinho
da Vila entrou equilibrando em brandos tons os primeiros versos de ‘Disritmia’,
voltei os olhos pro quintal e resgatei aqueles momentos dos saraus em que alguém
puxava o samba, com o mesmo abrandamento, mas não se equilibrava nos versos e a
gente vacilava na letra. Nessa hora pensei alto “quem salvava a roda era o
Vitu. Segurava essa música no sarau que era uma maravilha. Sabia a letra
todinha”. Foi então que o aplicativo trocou de faixa e veio uma sequência com o
Fundo de Quintal.
E eu, atado aos cordéis
da pandemia, amarrado a súbitos temores, ressabiado com os acasos e as escolhas
do vírus... solitário ante a caixa-robozinho, me surpreendo com esse som
clarinho dos tantãs, do repique de mão, instrumentos engendrados pelos
‘velhinhos’ do grupo de pagode; e que marcaram (sublimaram) e revolucionaram as
batidas do samba.
Adiantei os
olhos além das memórias do Sarau do Quintal e dei com a luz do meio-dia se
espalhando pelo estrito retângulo que se forma no longe do chagão. Minha
clausura, minha deserção, minha entronização no reino das particularidades, das
íntimas lágrimas, dos possessivos tremores, da hermética e resistente pulsação
acelerada. Seis meses no ‘esconderismo’ secreto onde nenhuma de suas balas
puderam me atingir seu vírus boboca dos infernos! O portão, o jambeiro e o pé
de jucá me acodem como se couraças de aço fossem.
Antes de
refletir sobre a melhoria na qualidade do som e como era antes a minha vida sem
o robozinho, me veio um medo verdadeiro, à bordo de uma fantasia que criei: um
estado de pressão total. Abandonado em uma redoma virtual. E como no filme
Matrix, aqueles monstrinhos se esforçando, usando todos os seus talentos e a força
dos tentáculos metálicos para romper as paredes que me protegiam. Não me
perguntem como, mas sabem quem me salvou das sentinelas malvadas? O jambeiro, o
pé de jucá e o portão desenhado em luminoso retângulo. Éraste! Chega suei de
pavor, tensão e um incontrolável odiozinho por causa de um bando de gente que conheço
de vista, de perto mesmo e que desgraçadamente, cerra fileiras com as sentinelas.
Em pensamentos, palavras, gestos e intenções. Tentáculos!
Fazia tempo que não tomava uma cervejinha, e ainda em meio a uma letargia ‘disritimada’, em mirabolantes pensamentos onde se misturavam os sambas que cantávamos no Sarau do Quintal, as sentinelas da Matrix e a luz, mãe de todas as cores, que vinha do portão, dei com o copo sobre a mesa. A cerveja quente, um mosquitinho tricotando zunidos baixinhos, na borda, espuminha rala. Tentei interagir com alguém da casa, mas o que me ocorreu, foi instintivamente, apontar o dedo para o robozinho que ainda encarreirava os sambas da galera de Ramos, abrir um sorriso e sentenciar: isso é Fundo de Quintal, é pagode pra valer.
sábado, 19 de setembro de 2020
crônica da semana - meu erro
Meu erro
As crianças eram
implacáveis. Não me permitiam um isso de sucesso com minhas mágicas. A cada
tentativa, uma queda. Era desmascarado, pego na mentira. Um, logo dizia ‘tá
ali, tá ali a banda do ovinho’. Noutra encenação, Argelzinho que não tinha dó
nem piedade em impor-me a desmoralização, denunciava: ‘a carta tem dois lados,
frente e costa’. Puxava o baralho da minha mão, todo ele, incrivelmente viciado
e exibia as cartas para a platéia exaltada.
Namorava aquele
joguinho de mágica que vendia na Lobrás, desde que tempo. Depois de muitos
casos passados, a petizada já graúda, consegui comprar a caixa completa.
Diversas peças para uma apresentação amadora. Tinha o baralho, o ovinho, o
lenço, as moedas, o funil, a garrafinha de água, a cartola e até a varinha
tinha. Cheguei em casa todo faceiro pronto para dar o espetáculo. Articulei com
a família, queria audiência.
Dei um tibêi no
fracasso. Não que fosse um jogo ineficaz. Tinha manual, dicas, procedimentos.
Faltava-me a destreza. Errava em movimentos simples. Em detalhes de ligeireza e
atenção. Denunciei-me. Logo na primeira sessão, entreguei os segredos.
Aí, a garotada
caiu de pau. A molecada da vizinhança toda veio para minha apresentação de
mágica, só para me anarquizar. Para ajudar na chuva de vaia. Não amofinei.
Aceitei o revés. Não levava jeito mesmo, nas sutilezas. nem nas ilusões.
Não me deixei,
porém degradar-me em desinteresses pelos truques.
Uma ou outra
arteirice com o ímã é arte que continua até hoje me mundiando.
O ímã é um tipo
de matéria especial. Tem sempre um lado que atrai e outro que repele. O
espetacular nisso é que, se a gente tem um ímã de dois centímetros de
comprimento e parte a peça ao meio, não vamos ficar com uma parte que só atrai
e outra que só repele. Os pólos se repetem nas duas partes. E assim por diante.
Se dividirmos de novo, vai acontecer o mesmo. Se partirmos infinitamente, se
esmigalharmos o ímã em partes pequeníssimas, ainda assim ele vai ficar atraindo
numa ponta e repelindo noutra. Devo dizer que este comportamento magnético do
ímã é sentido por materiais que têm propriedades afins com ele. Superfícies metálicas,
pelo comum, das quais, a porta da geladeira me vem como um exemplo que a nós,
nos é mais íntimo e nítido.
Falo agora sobre,
porque depois daquele malogrado intento com o jogo de mágica, me abalei de novo
aos truques recentemente, agora, manipulando as esferas de neodímio.
As esferas são
sólidos que não têm lado. Não há em cima, embaixo, do lado, nas esferas. A
impressão é que a esfera tem sempre o mesmo jeito e modo não importa a direção
que nos estimule o sentido. Aí é que reside o truque da esfera de neodímio. É
um ímã que a gente pensa que só tem um pólo. Mas não. Tem os dois. E dá pra
gente fazer cada arrumação, cada ilusão e presepada usando a forma e o magnetismo
em favor de nossa mágica doméstica. Lavei a alma! Sucesso total, minhas
apresentações com as esferas.
Essas histórias de
intentos insolventes tiveram como consolo os felizes resultados com os ímãs de
neodímio. E é essa oportunidade, almejada, requerida, conquistada, magnetizada
para que eu possa corrigir meu erro.
Tive que doirar
o grão de arroz até agora, para reparar a informação que dei na semana passada
aqui. A Aurora Boreal é resultado da interação do vento solar com o campo
magnético da Terra e não com o campo gravitacional, com afirmei
equivocadamente. Por este erro, humildemente, peço vênia.
sábado, 12 de setembro de 2020
crônica da semana - Aurora
Aurora
Vou dar a letra
no justo e certo: no início desta pandemia, entreguei os pontos, me encolhi no
canto, ‘aconsoado’, e julguei ser aquele início, o meu fim.
Passados seis
meses, sustos, lágrimas muitas, medos, pirações, esperanças sufocadas, decepções
com a humanidade e incertezas de montão, cá estou, como diria minha mãe,
suspirando. No ritmo indicado à manutenção da vida, com a saturação de
oxigênio, ó, lá em cima.
Esse sentimento
de expiração inevitável teve suas justificativas, afinal, no pico da pandemia
no Brasil, quando me vi diante da ameaça de um vírus letal grassando e se
valendo de nossas obsequiosas licenças; no momento em que me peguei abismado
com a imagem de um presidente usando máscara na orelha como se estimulando a
população a praticar o auto-extermínio; na hora que me bati nas nuances do home
office e fui contemplado compulsoriamente com as gasguitagens do Arrocha e abençoado pelos louvores
gritados a plenos pulmões; quando quedado e humilhado pelo vírus, pela falta de
governo e pela poluição sonora, pensei cá comigo: não tem escapatória. O fim é
chegado. Dei adeus a este mundo cruel. Emagreci. Perdi a barriga de jogador de
porrinha e dormi um sono resignado. Foi aí que sonhei com a Aurora.
Nada é muito
certo nesse mundo. Mas taí, se eu varar, se alcançar a vacina, a meta a ser
buscada é conhecer, ver de palmo em cima, a Aurora Polar.
(E atenção, tudo
o que for dito a partir daqui, só terá serventia para quem acredita na lição de
Geografia lá da quinta séria, que dizia a Terra, ser redonda e achatada nos
pólos. Se não considera essa afirmação, pode desembarcar e mergulhar nas
sombras do fim do mundo que distam um nadinha assim dos abismos pavoroso da terra
plana).
Aurora, sabemos,
é nome próprio, de irmãzinhas que chegam e nos alegram. Está presente em
marchinha de carnaval, em samba de breque, e na mitologia romana. É um evento
temporal, também. Em nossos dias comuns, tem o sentido do amanhecer, do nascer
do sol ou o início da lida.
Das polares, a
mais conhecida é a Aurora Boreal. Aí já vem com sobrenome. Boreal é uma alusão
ao Titã Bóreas, citado na mitologia grega e que comandava os ventos do norte. Mas
a Aurora também ocorre no sul do planeta e por essas bandas é conhecida como
Aurora Austral. O adjetivo austral já não tem entidade grega ou romana que o
inspire, mas lembra da mesma forma, vento. O vento do sul.
A mais famosa
das Auroras polares é a boreal. Por um motivo simples. Pode ser vista em
regiões, mesmo que acanhadamente, habitadas. Ocorre nas altas latitudes, nos
longes e frios. Ambientes onde não são comuns, as aglomerações urbanas. Do
outro lado, no sul do planeta, a Antártida é pouco simpática às gentes e
coisas.
Os lugares de
melhor visibilidade são aqueles localizados na região do (Terra redonda e achatada
nos pólos, heim, gente!) Círculo Polar. É um fenômeno que produz no céu, luzes verdes,
vermelhas, azuis e em ondulações, como se fosse uma dança leve e suave de
tonalidades. Tem origem na interação do vento solar com as linhas de força do
campo magnético da Terra.
Eu, vendo as
imagens, os registros dos viajantes que se lançam àqueles longes, fico
fascinado. É arte da natureza que merece todos os esforços para ser contemplada
(vencer o vírus conta).
A Aurora Boreal
acende em mim a esperança, credencia a possibilidade de, ainda em meio à
pandemia e às incertezas, nutrir um objetivo futuro. Pensar metas, ter expectativas.
Enquanto
suspiro, esperança há.