sábado, 12 de dezembro de 2020

crônica argel - toque de recolher

 Toque de recolher

Incomodado por um adoecimento repentino que... Bom, que me impede ficar sentado por muito tempo à frente do computador, acudi-me do filhinho. Senhoras e senhores, Argelzinho Sodré:

“Eu estudava no colégio Dom Ângelo Frozi, e estava em mais um dia normal de aula. A professora devia estar falando das cores primárias, ou algo assim… até que bateu a campa pro intervalo.

Eu e meus parças fomos pro escorrega-bunda, Tínhamos uma tradição de misturar nossos lanches e depois degustar essa bomba de sabores industrializados. Por exemplo, era normal eu lanchar iogurte tutti-frutti bem misturado com pitchula de guaraná garoto, polvilhado com raspas de biscoito máscara negra, ou biscoito do gatinho, para os íntimos.

Saindo de lá, visivelmente drogados, fomos assistir aos mais velhos e mais altos jogarem espiribol. Curtir essa liga sintética vendo uma bola girar em torno de um poste, só essa escola me proporcionou. Saudades!

Na volta do recreio fomos abordados pelas professoras atordoadas dizendo que não era pra gente se desesperar, que nossos pais já vinham nos buscar. Eu voltava pra casa a pé com os caras, ou com a mamãe e a Amaranta, mas nesse dia a dona Beth, nossa vizinha que tinha uma Kombi -e diversas semelhanças com a minha tia Dina- estava lá na frente já esperando por nós.

De repente o porteiro, com o microfone anunciava que todos estavam liberados e lançou a hashtag fica em casa, pois estávamos em toque de recolher. Enquanto eu me encaminhava para a saída, olhei pra parede e tinha uma folha de papel A4 com a foto de um rapaz careca, na cadeia, anunciando: ARTERENX, ESTUPRADOR FUGIU DA CADEIA E ESTÁ ATERRORIZANDO A VILA DOS CABANOS.

Na hora meu coração gelou (gelou agora, de novo). Cheguei em casa e o zap da época (o telefone fixo de número 3754–2504) não parava de produzir notificações. “Ele é um estuprador que ataca mulheres que andam sozinhas nas ruas de Marituba, ele foi preso há alguns meses, mas fugiu de Americano, e veio se esconder aqui na Vila, agora ele tá se escondendo em cima das árvores e atacando mulheres que passam desacompanhadas, ele já atacou algumas, até a fulana".

Nós, os Sodreres, prevenidos como somos, não saímos de casa pra nada. Papai só saía pra trabalhar, Amaranta não podia ir pra casa da Flaviana, e eu não podia jogar bola. Mamãe ficava inventando coisas pra gente fazer dentro de casa. No momento de maior perigo, entre 12 e15 horas (todo morador da Vila tem medo desse horário, se não tem, deveria ter), fechávamos toda a casa, colocávamos a TV no programa ponto de luz e ficávamos ouvindo história de visagem de crente, porque era menos aterrorizante que a realidade.

Após 5 dias de muito terror e isolamento, a tia Tati, minha querida professora da época, ligou pra Márcia, que é uma das melhores amigas da mamãe, que ligou pra mamãe avisando que prenderam Arterenx lá na comunidade de Vila Nova. Assim foi restabelecida a tranqüilidade, a paz na pacata Barcarena. E que quando ele foi preso, estava tentando aplicar a seringa numa criança!!!

Acabei de pesquisar aqui no Google pra saber se essa história é real ou foi apenas um delírio coletivo. Não achei nada. Perguntei pros meus pais, mas só sabem que aconteceu, sem muitos detalhes. Ah! Mas as crianças da época sabem tudo sobre esse tempo de terror, e garantem que foi real o toque de recolher. E não foi o único caso, ainda teve aquele dia que o leão fugiu do circo...”

 

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