sábado, 3 de outubro de 2020

crônica da semana - a vida ensina

 A vida ensina

A gente sempre se encontrava ali para um respiro, tomar uma água, um café. A sala funcionava como um local de descanso. Rodávamos os turnos, e por conta das peculiaridades, as jornadas da madrugada, certamente, eram as mais tranqüilas. Então, naquele tempinho que a gente desanuviava e tomava um ar, trançávamos uma prosa, nos conhecíamos e rolava a parceria.

A vida ensina. Mesmo se a gente não domina as equações, as contas com fração, ou a teoria dos conjuntos, a vida, de palmo em cima, ensina. Quer ver lição mais facinha assim de entender sobre a desvalorização da moeda é a mudança no padrão da melhor coxinha produzida na Pedreira. Qual não foi minha surpresa quando chegou meu pedido ontem. Tudo nos conformes. Menos a envergadura. O tamanho da coxinha caiu quase pela metade. O preço permaneceu o mesmo, mas a elipse, que era rechonchuda, desinflou. O meu lanchinho foi o exemplo clássico de desvalorização da moeda. O mesmo dinheirinho comprando bem menos do que comprava antes. Meio a contragosto, compreendi o sufoco que está passando o pequeno comerciante do meu bairro. Me conformei e como sempre, me encantei com a, embora menorzinha, melhor coxinha da Pedreira.

O rapaz trabalhava comigo no turno. Vinha de Irituia e a origem dele animava a conversa porque andei por ali. Participei da festa do Carimbó, explorei a Vila Pedra, tomei birissuco com a galera.

Era casado, já tinhas dois filhos. Conseguira aquele emprego a muito custo. O ganho era pouco, mas ele pensava melhorar. Estava estudando.

Já no adiantado do Ensino Médio, ainda tinha algumas dificuldades. Eu conseguia lições, textos próprios da série que ele cursava, matérias de História, Português, arrumava uma tirinha de tempo, no turno e exercitava as questões com ele. Fazíamos boas discussões quando analisávamos contextos históricos, aspectos da sociedade atual. Assim como tantas pessoas, formava opinião a partir de programas de televisão sensacionalistas, media fenômenos sociais que o rodeavam com a régua da mídia. Com o tempo, percebi um avanço. As provas que me trazia, revelavam um novo modo de ver e interpretar o mundo. Aqueles resultados me animavam e eu me dedicava mais. Incentivava. Cobrava. Tinha uma deficiência quase intransponível com a matemática. Uma das tarefas que me levou para resolvermos juntos tinha uma sequência de contas com números decimais. Ele adiantou: não sabia fazer. Não entendia patavina daquelas contas de números com vírgula. Pus pra rodar o meu instinto e procurei métodos para fazê-lo crer que ele sabia usar aqueles números.

A organização das parcelas, com vírgula embaixo de vírgula ou dos fatores, contados os algarismos pra lá e os pra cá da vírgula, se realizam na rotina, no dia-a-dia. Simulei meios para que ele reconhecesse essas manifestações práticas. Perguntei se na rua dele vendia chope e quanto custava. Sim. 25 centavos. E se eu comprar quatro chopes? Um real. E mercadinho, tinha por lá? Já comprou uma quarta de feijão, meio quilo de farinha, cem gramas de manteiga? Sim. Alguma vez foi enganado, levou o peso errado, o troco a menos? Não. Tás vendo, evidencie-lhe empolgado. Tu sabes sim. Só não sabes pôr no papel.

A vida ensina. Desafia e inspira. A sobrevivência exige decodificações muito particulares. O Conhecimento organiza e elabora saberes. A vida ensina. O rapaz terminou o Ensino Médio. Mudou de emprego e hoje, sei que opera na atividade portuária de Barcarena. Envolve-se, na lida diária, ora, ora, com números decimais.

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