sábado, 10 de outubro de 2020

crônica da semana enxadeco e chibanca

 Enxadeco e chibanca 

Uma ferramenta é o que o nome diz, mesmo: uma enxada pequena, magrinha e compridinha. A outra, como se fosse uma picareta, é constituída de duas pontas. De um lado, a parte cortante tem as aparências do supracitado enxadeco; do outro, forma uma ponteira de corte afiado, à guisa de uma talhadeira. Dou destaque a essas peças porque compunham as ferramentas necessárias para cavar poço, nas campanhas de Geologia que minha turma fazia margeando o Xingu. E também, porque eu vi, dias atrás, um filme que tinha uma cena onde, trabalhadores de uma pedreira, ao terminar a jornada, cada qual pegava sua ferramenta e ganhava o rumo de casa. O filme, uma versão de O Cortiço, obra de Aluízio Azevedo, autor maranhense que inaugurou o Naturalismo no Brasil, demonstrava, naquele cortejo saindo da pedreira, a ligação traçada entre o homem e sua ferramenta de trabalho.

Logo tornei à margem do Xingu e imaginei o dia dos pequenos que cavavam poço na minha equipe. Alguns nomes emergem da memória. Jacinto, Bené, Firmino, Onça. Trabalhavam em dois. Chegavam do campo, e antes do descanso merecido, ainda se detinham tratando do material. Lavavam, faziam pequenos reparos, afiavam a lâmina no esmeril, na lima. Acunhavam, introduziam um calço aqui, outro ali. Traziam dignidade àquela relação, muitas vezes vista como de valor reduzido. Imputavam àquelas peças a significância assumida e defendida por eles. Sabiam que pela natureza bruta do ferro e da terra escavada, se o equipamento não estivesse bem cuidado, mais energia gastariam, sofreriam mais, destinariam grande esforço a tarefas de poucos resultados. Havia entre eles a cumplicidade de fio, suor, desterro e corte.

Parece estranho, para quem não viveu dias de peão, uma parceria entre o trabalhador e qualquer artefato de produção, que possa beirar a afeição. Não era amor. E por razões alhures assinaladas, ódio não poderia ser. Penso, porém o respeito, intermediar esta intimidade. Eu mesmo, nos primeiros anos de Barcarena, quando fui apresentado ao cabo de uma pá, no lugar de odiá-la com todas as minhas forças, busquei aliançar-me para que a dor fosse branda. Houve de, a cada fim de jornada, eu limpar, lavar, desempenar minha espátula, guardá-la em lugar que ninguém pudesse achar e querê-la ao meu lado sempre, como amparo e consolo; como renitente tradutora de minhas mágoas. Seríamos nós dois insatisfeitos, embrutecidos. Ineficazes desencrostadores, noite à dentro, de frio, zunidos, vapores, calores predadores. Reclusão e um tênue e necessário fio de razão.

Naqueles tempos outros de Movimento jovem lá na Escola Salesiana, ousávamos. Modificávamos aqui, ali, com cuidado, o rito da Missa, de forma que o Padre Lourenço, embora com reservas, permitisse as mudanças. Certa vez, articulamos um ofertório, em que depositávamos no altar, objetos do dia-a-dia, peças de roupa, máquinas e instrumentos que compunham o acervo doméstico. A simbologia era de oferecer ali, a nossa vida ou elementos construtores da nossa vida.

Acho que é isso que pretendo nesse Círio. Oferecer à Virgem Santa, enxada, chibanca, a lembrança e o carinho que guardo por Jacinto, Bené, Firmino, Onça, a turma que cavava poço e que trabalhava em pares. Também para agradecer porque uma vez desci num poço que os meninos haviam cavado, já há algum tempo, e uma cobra tinha escapulido lá pra dentro. Se escrevo esta história é por obra e graça da Santinha.

Um comentário:

  1. Essa tua crônica é uma festa para minha alma interiorana que tão bem conhece as "ferramentas" citadas e descritas. Mais: uma viagem a todos os lugares que a palavra pode levar.

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