sábado, 21 de dezembro de 2013

crônica da semana - num trisca

Num trisca, num piscar de olhos

Aconteceu aqui em casa. Tarde calorenta. Abrimos as janelas, escancaramos as portas, deitamos no frio da lajota e nos entregamos esperançosos, a família Sodré, às reconfortantes lufadas de vento que chegavam lá do igarapé do Zé. Ô, coisa boa! Chega dava um alívio. Induzia à malemolência, aquela circulação que irrompia, de quando em quando, pelo chagão e ia pegar a gente deitadinho no chão, pedindo um sono. De repente, um vuco-vuco cortou nosso barato. 
Um passarinho invadiu a casa e entrou num dos quartos. Todo mundo despertou e deram-se as manobras de resgate do bichinho. Ele tava meio atarantado, voava baixo, subia, sumia detrás do guarda-roupa, se batia por lá. Ia pro canto da parede, bem na quina mesmo, planava rés o forro. Embicava de novo para os entremeios da cama e da cômoda. A gente volteava com ele, tremulava um jornal, uma revista, como se indicando a saída, mas o passarinho, nada. Tava mundiado. Fez que fez, até que cansou. Aninhou-se ao pé da parede. Capitulou. Nós mamíferos, nutridos a proteínas e acúcares, estávamos bufando de tantos saltitos, avalie então a pequenina ave que não tem tantos aportes de energia. Não conseguia nem bater as asas. Limitava-se a um piozinho rouco. Resolvemos levá-la para o quintal, hidratá-la, dar um descanso para ela e para a gente. Minha filha ajeitou as mãos em concha e agasalhou o passarinho ali, depois, enquanto providenciávamos água e uns grãozinhos de arroz, a avezinha foi deixada sobre a mesa, deitadinha, ofegante, tornando as forças. Num trisca, num piscar de olhos, num lampejo instintivo, a gata, que por ali espiava em silenciosa atenção, lançou-se sobre ela, atracou-a entre os dentes e deu o pinote. Nova correria, agora atrás do passarinho que estava sendo devorado pela gata. Pega-não-pega, larga-não-larga, até que pressionada e submetida a enérgicos carões, a gata largou o bichinho. Tadinho. Tava só o endereço, desmilinguido, desasado, humilhado. Novamente, mãos em concha e redobrados cuidados. Um período de convalescência sob forte proteção da família e o bichinho ganhou forças, tornou animado e largou-se para a imensidão do céu, batendo as asinhas, chilreando feliz. 
Aquele livre despertar fez o clima da tarde arrefecer. Uma camada matizada de nuvens densas desmaiava o horizonte e enternecia o final do dia. A maciez da noite, a metade da lua prateada e um cintilado discreto de estrelas se anunciaram providentes ao quintal. 
Recebemos a noite com zelo e contemplação. A experiência recente nos mostrava que além dos esforços da paixão e da razão reinam sobre nossas vontades, os lampejos atávicos, o instinto ancestral. A correria e os atropelos da tarde se revelavam ali, no silêncio da noite, como exemplos de que a mediação racional, o labor altruísta, a filantropia rasa, estão subordinados a uns triscas imediatos, a instantâneos indefensáveis, a poderosos repentes. Explosões naturais. Irrefutáveis. Insondáveis. Sinal de que bondade e maldade são vizinhas nas tardes calorentas. Incompreendidas no limiar da varanda. São mixes tão naturais quanto infinitos, espreitando corredores de vento. 
E assim, com a alma mergulhada em meditações, o tempo passou e amanheceu de novo. A gata saiu do silêncio recôndito da noite e foi ter à manhã. Um passarinho, que poderia ser aquele mesmo do dia anterior, poderia ser outro de canto diferente, ou ainda de outra espécie e cor, fazia algazarra entre as folhas do jambeiro. E foi então que nos aviamos, aptos, ávidos para receber os raios de sol de um novo dia com zelo e contemplação. Humanos. Humildemente humanos. Feliz Natal. 

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