sábado, 21 de setembro de 2019

crônica da semana - canudo na mão


Canudo na mão
“Meu desejo de pai é que, com o canudo na mão, meu filho procure sempre lutar pela harmonização dos saberes... Que descarte os desprezos vis, a soberba (admitindo que a Geologia possa se realizar com o mesmo zelo, pela genialidade de um Darwin ou pela intuição de um auxiliar de campo, como o Rogério). E que em tudo seja feliz nesta profissão fascinante.” 
Rogério era bateador de primeiríssima categoria. Habilidoso, cuidadoso. Manejava a batéia, um equipamento de concentração de minerais. O processo que se desenvolve na batéia é complexo. Admite as propriedades das partículas envolvidas. Tamanho, peso, angulosidade, densidade. Todas essas particularidades entre as diversas espécies de grãos, interagindo com o volume e o movimento que a água faz no interior da batéia. Encerra em si, o ato de batear, um feixe de fenômenos físicos não tão fáceis de apreender.
Rogério não sabia nada de conceitos ou teorias. Com um cigarrinho porronca no canto da boca, não abstraía tratados. Tratava de fazer os movimentos corretos, dar a inclinação certa, a quantidade suficiente de água, para, após refinar mais de 200 quilos de terra bruta no dia, fornecer em poucas gramas, a mais valiosa informação. Era um mestre. O tempo que fiquei em Rondônia, não desapreguei de Rogério. A equipe não era a mesma sem ele, por isso, de jeito algum eu o deixava sair da turma. Aprendi um pouquinho com ele. Até os dias de hoje, se me derem uma batéia, não faço feio.   E ainda esnobo, fazendo rotação ao contrário do fluxo, só na caté.
Rogério se mirava e se media. Pouco caso fazia do talento que tinha. Não imaginava a envergadura que exibia aos meus olhos. Frente a elogios, desconversava, desqualificava coquetes. Repetia que era só um peão de Humaitá, caboquinho das beiradas. Não fugia, porém, à compensação, à sublimação: “mas a minha irmã, não. A minha irmã tem profissão. É tilógrafa”. Escorregava nas palavras. Quando precisava assinar algum documento, pedia uma caneta, riscava bem riscado o verso do polegar e imprimia a digital. Rogério não sabia ler nem escrever.
O primeiro parágrafo desta crônica é o recorte de uma homenagem que fiz ao meu filho no dia em que ele passou no vestibular para Geologia. Quando escrevi, pensei em mim, nos tropeços que dei na minha caminhada profissional. Nas vezes que fui metidão, que desdenhei de trabalhos e de opiniões de pessoas mais humildes, de poucas posses intelectuais ou de acanhados pendores eruditos. Fui buscar lá atrás meus erros. Em momento oportuno, encontrei remissões, reparações. A aproximação com mestres do naipe de Rogério me regenerou a alma. Ao mesmo tempo, me fez cair na real e perceber a pouca diferença entre mim e a peãozada que me acompanhava.
Atualizando as medições de Rogério, posso dizer hoje que eu, ah, sou apenas um peão do chão de fábrica. Tenho male-male o segundo grau. Mas o meu filho, não. Meu filho é Geólogo.
Meu desejo de pai é que ele, com o canudo universitário na mão, busque sempre além. Procure valorizar o conhecimento. Refine sua percepção do mundo e reforce a humanidade que existe nos tratados e teorias. Espero que nem o mais alto salto que ele dê na carreira o lance à empáfia. E que não se esqueça dos construtores litisconsortes dessa vitória. Do Rogério, o mestre da batéia, da irmã dele, que batia máquina de escrever; de nós outros, a peãozada. Pois que, sem estas pessoas, nada seria possível.


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