sábado, 9 de dezembro de 2017

cronica da semana - embuá

Calor de correr doido
Desci a calha do igarapé um bom estirão até chegar no pé do barranco. Nem sinal de água. Lugar mais seco. Caminhei outro pedaço à montante. Lugar mais limpo. Voltei e aprumei para baixo. Depois de uma caminhada rápida à jusante, um açaizal com viço tímido aqui, uma discreta umidade no solo, mais adiante, eram bons sinais. Quem diria. Quando estivemos no mesmo local, pelo início do ano, a água cobria um homem taludo todinho e ainda sobrava.
A turma ficou lá em cima, no terreiro arborizado do sítio, ajeitando local para armar os barracos, que não fosse muito longe da linha-base, e que ainda ficasse numa ponta de mata, mais abrigado do sol e mais fresquinho, porque o calor tava de correr doido.
Voltei já com o local definido para cavarmos um poço. O colono até tinha água, mas o poço dele era no alto, de grande profundidade e com a água pouca certa para a casa. Minha equipe contava com mais de 10 pessoas, precisávamos cozinhar, tomar banho, lavar a louça... a demanda era alta. A experiência e algum conhecimento básico me adiantavam que teríamos melhor oferta de água se abríssemos poços na parte mais baixa no leito do igarapé, no talvegue, como diriam os iniciados.
Com as estratégias armadas, a turma tratou de correr atrás. Quem era da montagem do barraco, ganhou o mato atrás de varas linheiras, palha para a cobertura e enviras para as amarrações. Os prospectores de água saíram a abrir caminho mais curto para o igarapé, munidos de pá, chibanca, baldes e corda. Eu me ajeitei ali pela varanda do colono, armei a parafernália do rádio e procurei contato com minha base para dar o resultado da campanha naquele dia. O dono da terra me acolheu com simpatia. Enquanto trocávamos uma prosa explicando o meu objetivo ali, dei a reparar naquela família. Não eram daqui. Eram galegos, aloirados, grandalhões. Contei duas mocinhas, já formadas, olhos verdes, caladas e reclusas. A mãe, dava voltas pela casa e falava baixinho, parece que sozinha, mas alguém da família sempre ouvia o que ela dizia e devolvia uma palavra de volta. Na porta da frente do casebre, um molecote sardento, vermelhinho de sol, sentado no batente, torturava um embuá retirando dele as perninhas, a punhados. Tive a impressão que também apartava o bichinho e comia os pedacinhos mastigando só com os dentes da frente, com ineficaz discrição. O pai, aparentava ser mais velho que verdadeiramente era. Contou que chegara à Transamazônica no final da década de 70, vindo de muita necessidade e regime de quase escravidão nas terras que dividem Paraná e São Paulo. Tinha mais dois homens, que já tinham mulher e filhos, e moravam afastados. Ajudavam tomando conta da plantação de cacau e do pequeno rebanho de nelores.
Viviam sem apoio nenhum do governo. Abrimos um ramal e eles retiravam a produção, aproveitando nossa carona. Antes, tiravam a colheita no lombo de burro. A família era o retrato da política rural implantada pela ditadura na Amazônia. Era novembro. Mês menos chuvoso do ano. E se para nós, o calor era de correr doido, avalie pro menino vermelhinho que comia embuá.


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