quarta-feira, 6 de março de 2013

Crônica remix-Glauco


A arte de Glauco
Soube da morte do Glauco Villas-Boas, pela manhã. Estava no trabalho e ouvi pelo rádio a notícia da tragédia. Passei o dia inquieto, triste, em silêncio.
Quando cheguei em casa, fui até o quartinho e separei as revistas do Geraldão, que fazem parte da minha coleção (imexível, inegociável, intransferível) de quadrinhos. Fiquei um tempo repassando as histórias e admirando o talento de Glauco. Depois, peguei todo o meu acervo, Piratas do Tietê, Circo, Níquel Náusea, Chiclete com Banana, juntei aquela geração que me animou para o cartun, no início dos anos oitenta, e coloquei todos aqui do meu lado.
Agora percebo que reproduzi, instintivamente, o que eles faziam naqueles tempos: era comum um cartunista participar da revista do outro. O fulgor desta ligação agitou nossas cabeças, logo no início com o lançamento da revista Circo, que juntava todo mundo, depois, deu lugar ao brilho de cada um e, na sequência, explodiu novamente na edição memorável de Los Três Amigos, com Laerte, Angeli e Glauco. Esta história está contada aqui no meu lado, pelo traço daquela turma iluminada que, tenho certeza, desenhou a identidade daquela geração oitentista. (Não tenho dúvida disso. Se aquele período ainda carece de um perfil, de um contorno, ele é moldado pelo Rock Nacional, que registra uma certa independência na criação; pelo movimento cultural paulista, regido por Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, Grupo Rumo, Premê, Ná Ozetti..., que recompõe a idéia antropofágica,  redescobre a arte moderna na canção;  E, seguramente, pelas linhas dos cartunistas paulistanos que, naquele momento, exorcizam os recalques de revolucionários, os pulsos derrotistas que nos moíam a consciência).
Glauco Villas-Boas deu a sua contribuição para a remissão dos nossos pecados e para o aplainamento de nossas dores. Em mim, a arte de Glauco fez este efeito, nos anos oitenta. Aprendi pelo riso.
E aprendi, também com o espelho. Aquele espelho que mostra o que a gente não quer ver. O segredo da arte de Glauco reside na capacidade dos personagens criados por ele se confundirem com a gente, só que reconhecendo as nossas mentiras, as nossas hipocrisias, nossas desconfortáveis impotências (o Casal Neuras é um exemplo clássico desta delação social. Símbolo dos casais moderninhos, liberais, daqueles que viraram moda nos anos oitenta, daqueles que juravam dividir tarefas chatérrimas como lavar louça ou cortar cebola, os personagens de Glauco, não resistem a uma crise de ciúmes, ou um arroubo machista e sempre quebram o pau na saída das festas e se denunciam incapazes de sustentar uma utopia ).
Os detalhes não ditos do nosso comportamento, os tabus e as nossas vergonhas, Glauco transformou-os em normalidade. Obscuridades de nossas vidas que passamos a reconhecer e aceitar. É uma eficiente terapia, a arte de Glauco.
Geraldão é o meu personagem preferido. Se a gente for falar de tabu, Geraldão transborda. Tem todos os estigmas da modernidade. Ele é uma provocação. Um desafio à capacidade de sermos generosos, complacentes, tolerantes, sociáveis. Com ele, a gente vai exercitando a nossa civilidade, vai captando os sinais, até que a gente passa a não ver mais as marcas proibidas no Geraldão (e se a gente percerber, sei lá, o pessoal da lingüística, da semiótica, da simbologia, acho que entende melhor esta característica do personagem, o Geraldão não é definido em espaço fechado, ele não é necessariamente um corpo limitado a um plano. O desenho do Geraldão é uma idéia livre, um conceito em gestação, pede a subjetividade) e ele vira uma figura íntima, porque a gente conhece alguém com aquele jeito. Um amigo, um vizinho, o patrão, o cara estranho da rua, o namorado da irmã. Para mim, o Geraldão é quase um irmão, ou é uma porção de mim perdida nas minhas vontades.
Glauco nos revelou a fugacidade da matéria. Seus personagens não têm contornos herméticos e são formados por traços frágeis. Parece que queria dizer com isso, que podíamos nos desfazer a qualquer momento. Pilheriava com esta severidade sem sentido, pela qual tentamos enganar os outros e a nos mesmos. E iluminava os escurinhos com o riso.
Aqui, ao meu lado, as revistas e o humor dos caras que fizeram minha cabeça, quando eu tinha 19, 20 anos. Elas (Angeli,Laerte, fernando Gonsales, Luiz Gê...) as revistas, que sempre me disseram tanto, por uns instantes, silenciam. E choramos juntos.

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