sexta-feira, 15 de março de 2013

crônica da semana - bateria


A bateria caindo pelo corredor
Ela ficava ali, perigosamente posicionada na fronteira da cozinha com o corredor que ligava os quatro cantos da casa. Normalmente um lugar pouco iluminado, discreto, inócuo e silencioso (a não ser nos momentos em que alguém se enganchava nela e arrastava tudo quanto era de panela até um certo tanto de lá pra cá ou de cá pra lá, da cozinha).
A bateria era uma incompreendida. Um utensílio invisível, mas audível. Quando era excitada, causava alvoroço.
Fazia parte da cozinha. Era uma peça metálica vertical, armada em quatro vértices. Tinha uma altura de aproximadamente metro e meio. Quatro hastes volteadas por uns aramados rijos dispostos a intervalos regulares, que davam sustentação e a fixavam ao piso. Em cada uma das hastes, ganchos atracados de cima a baixo. Se a gente fosse comparar bacana, seria uma peça que teria a forma escritinha da Torre Eifell, sem a suntuosidade daquela, logicamente. Um deselegante monumento de metal leve fazendo número na cozinha.
A bateria era usada para guardar panelas. Havia, na cozinha, o armário, o petisqueiro, o bufê, a cristaleira, todos com funções definidas, mas que abrigavam também as panelas. A bateria, ao que me parece, era usada meio que transitoriamente, por um tempo apenas, antes do guardado perene nos móveis mais clássicos. Via umas peças penduradas, depois não as via mais. Sei que panela de pressão e o ralador eram presenças constantes. A panela, certamente pelo tamanho, agora o ralador, sei não, talvez pelo desprestígio.
A graça e o real sentido da presença da bateria na cozinha não era então, haver-se de zelos pelas panelas. Era exatamente quando acontecia o contrário, que a bateria se notabilizava, ganhava ânimos, atraía atenções. Era batata, pelo menos uma vez por dia a casa se via em alerta forçado porque alguém (ou o cachorro, ou o gato) esbarrava, tropeçava, se enganchava e trazia abaixo a bateria e tudo o quanto que por lá havia. E era uma barulhada de panela despencando. Um barulho prolongado, em estágios. De cima pra baixo. Ralador, crivo, papeirinho, bule, frigideiras, caçarolas, panela do arroz, panela de pressão. Reinava um verdadeiro estardalhaço quando alguém derrubava a bateria. E eu até acho que o nome mais certo para definir o evento nem é estardalhaço ou barulhada. Barulheira leva mais jeito. Dá uma idéia melhor daquela zoada interminável, sequente, tom sobre tom de panela tocando o chão. Tudo ia ao chão. E por último, o aramado que tinha jeito e pose de torre Eiffel.
Pois é. Essa confusão ruidosa da bateria caindo pelo corredor me veio à lembrança dia desses enquanto ouvia a versão original da música italiana Volare.
Experimenta aí. Pesca na internet, põe o disco na vitrola. “Penso cheunsognocosì non ritornimaipiù/mi dipingevolemani e lafacciadiblu/poi d'improvvisovenivodal vento rapito/e incominciavo a volarenelcielo infinito”. Este trecho da música nos traz um amanhecer calmo, com a mãe na cozinha, janela dando para o quintal que tem açaizeiro, rego de água escorrendo, pato chapinhando, pinto ciscando, um quarador... Ela tira a louça do café, com cuidado pra não atrapalhar o canto do passarinho que se exibe rés à cumeeira da casa. Aí chega no refrão: “Volare oh, oh/cantare oh, oh/nelbludipintodiblu/felicedistarelassù/e volavo, volavofelicepiù in alto del sole/ed ancora piùsu/mentreil mondo pian piano sparivalontanolaggiù/una musica dolcesuonavasoltanto per me”. Repara, vê se nessa hora, o arranjo que fizeram pra esta música não parece uma bateria caindo pelo corredor e espalhando panelas pra todo lado.

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