A bateria caindo pelo
corredor
Ela
ficava ali, perigosamente posicionada na fronteira da cozinha com o corredor
que ligava os quatro cantos da casa. Normalmente um lugar pouco iluminado,
discreto, inócuo e silencioso (a não ser nos momentos em que alguém se
enganchava nela e arrastava tudo quanto era de panela até um certo tanto de lá
pra cá ou de cá pra lá, da cozinha).
A
bateria era uma incompreendida. Um utensílio invisível, mas audível. Quando era
excitada, causava alvoroço.
Fazia
parte da cozinha. Era uma peça metálica vertical, armada em quatro vértices.
Tinha uma altura de aproximadamente metro e meio. Quatro hastes volteadas por
uns aramados rijos dispostos a intervalos regulares, que davam sustentação e a
fixavam ao piso. Em cada uma das hastes, ganchos atracados de cima a baixo. Se
a gente fosse comparar bacana, seria uma peça que teria a forma escritinha da
Torre Eifell, sem a suntuosidade daquela, logicamente. Um deselegante monumento
de metal leve fazendo número na cozinha.
A
bateria era usada para guardar panelas. Havia, na cozinha, o armário, o
petisqueiro, o bufê, a cristaleira, todos com funções definidas, mas que
abrigavam também as panelas. A bateria, ao que me parece, era usada meio que
transitoriamente, por um tempo apenas, antes do guardado perene nos móveis mais
clássicos. Via umas peças penduradas, depois não as via mais. Sei que panela de
pressão e o ralador eram presenças constantes. A panela, certamente pelo
tamanho, agora o ralador, sei não, talvez pelo
desprestígio.
A
graça e o real sentido da presença da bateria na cozinha não era então,
haver-se de zelos pelas panelas. Era exatamente quando acontecia o contrário,
que a bateria se notabilizava, ganhava ânimos, atraía atenções. Era batata,
pelo menos uma vez por dia a casa se via em alerta forçado porque alguém (ou o
cachorro, ou o gato) esbarrava, tropeçava, se enganchava e trazia abaixo a
bateria e tudo o quanto que por lá havia. E era uma barulhada de panela
despencando. Um barulho prolongado, em estágios. De cima pra baixo. Ralador, crivo,
papeirinho, bule, frigideiras, caçarolas, panela do arroz, panela de pressão. Reinava
um verdadeiro estardalhaço quando alguém derrubava a bateria. E eu até acho que
o nome mais certo para definir o evento nem é estardalhaço ou barulhada. Barulheira leva
mais jeito. Dá uma idéia melhor daquela zoada interminável, sequente, tom sobre
tom de panela tocando o chão. Tudo ia ao chão. E por último, o aramado que
tinha jeito e pose de torre Eiffel.
Pois
é. Essa confusão ruidosa da bateria caindo pelo corredor me veio à lembrança
dia desses enquanto ouvia a versão original da música italiana Volare.
Experimenta aí. Pesca na internet, põe o disco na
vitrola. “Penso cheunsognocosì
non ritornimaipiù/mi dipingevolemani e lafacciadiblu/poi d'improvvisovenivodal
vento rapito/e incominciavo a volarenelcielo infinito”. Este trecho da música
nos traz um amanhecer calmo, com a mãe na cozinha, janela dando para o quintal
que tem açaizeiro, rego de água escorrendo, pato chapinhando, pinto ciscando, um
quarador... Ela tira a louça do café, com cuidado pra não atrapalhar o canto do
passarinho que se exibe rés à cumeeira da casa. Aí chega no refrão: “Volare oh,
oh/cantare oh, oh/nelbludipintodiblu/felicedistarelassù/e volavo,
volavofelicepiù in alto del sole/ed ancora piùsu/mentreil mondo pian piano
sparivalontanolaggiù/una musica dolcesuonavasoltanto per me”. Repara, vê se
nessa hora, o arranjo que fizeram pra esta música não parece uma bateria caindo
pelo corredor e espalhando panelas pra todo lado.
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