sábado, 5 de dezembro de 2015

crônica da semana - cama patente

A cama patente
Não sei de onde mamãe tirou essa arrumação: chamava de cama patente, àquele arrumadinho formado no chão por uma peça de compensado pouquinha coisa maior que eu; um pano de rede maciínho; umas tiras pra mais de palmo de largura de uns cobertores aveludados nodoados e pitiús de xixi.
Foi o jeito que mamãe deu para nos acomodar, os quatro acreaninhos, com algum zelo, na hora de dormir.
Só tínhamos quatro redes. Uma era da mamãe. Sobravam três. Um de nós ia para a cama patente. E adivinha quem era o ungido? Raimundinho Nonato, o pequechichito aqui.
A intenção da mamãe era saltear, fazer rodízio com minhas irmãs. Até que no início deu certo, mas as meninas reivindicaram, evocaram o meu cavalheirismo. Podia ser um zoiudinho entanguido, mas era o homem da casa, deveria dar o desconto, utilizar as minhas potencialidades, a energia do macho... e dormir no chão. Ah, tá. Combinado. E lá fui eu, machinho, me conformando com o conforto possível que a cama patente me oferecia. Camapatenteei por um bom tempo. Sonhei. Babei uma babinha fina pelo canto da boca. Tremeliquei involuntariamente e falei palavras ininteligíveis durante o sono. Amanheci com a cabeça pro outro lado. Morri de preguicinha na hora de acordar e ir para a escola. Tudo, que-nem-que-nem dormisse em colchão de mola. Só não caí da cama, porque no chão, já estava.
Naquele tempo, tinha que rezar um ‘com Deus me deito, com Deus me levanto’. Mamãe cobrava. Lá da sala, que era ao pegado do compartimento que, no aperto de uma casa de três cômodos, tomávamos por quarto, queria ouvir. E eu mais que depressa encarreirava na desobriga, na fé e no fervor porque de todos, naquela hora, tinha mais precisão. No chão, precisava mesmo de uma proteçãozinha. A casa era de madeira. Assoalho falhado. Sem forro. Tinha bichos nos escondidos e escurinhos que se danavam a passear à noite. Nas altas horas do sono, era um pé pra uma osga se animar, dar aquela ‘lembidinha’ no meu beiço, sugar meu sangue quentinho e, à época, descontaminado de alcoóis, cepas ou graxos. Vez ou outra eu percebia uma vermelhidão suspeita, ao amanhecer. Mas não maldava e nem me entregava ao pavor. O que os olhos não vêem...
Deixa estar, que mesmo sem ver, me pelava de medo era do ‘santospés’. O argumento da minha reza era centrado, pedia que me espremia, e até promessa fazia, era para que o Bom Deus e a Santa Virgem me livrassem da centopeia, terrível representante dos Artrópodes, e suas perninhas nojentinhas fervilhantes.
Nas redes, mamãe e as meninas, penso eu, livravam-se dessas visitas noturnas. Dormiam sem medos e o mais de aperreio que passavam era o bate-bate automático esmigalhando um carapanã aqui, outro ali, aos tapas.
Dormi no chão muitas noites. Até que um dia, mamãe comprou no prestação, uma rede avarandada que atei ao lado dela.

Agora, em outros tempos, por causa de umas dores nas costas, tive que comprar uma cama especial para aprumar o esqueleto. Qual não foi minha surpresa, quando reparei que a cama é dura que só ela. A pura ‘talba’ de assoalho. A pura cama patente. Como nos velhos tempos.

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