Domingo pé-de-cachimbo
A cena acontece em tantos lares: ele
chega de qualquer canto. Cansado, chateado com os descaminhos da vida.
Preocupado com o pão do dia seguinte, com o trabalho e com o estresse da lida
de operário. Com a fumaceira que imperou no último verão e com as novidades que
(literalmente) aquecem as discussões sobre as mudanças climáticas. Com as
peraltices dos meninos maluquinhos do planalto central do Brasil...Ele chega
querendo um sossego já que a turbulência social no Paquistão o está tirando do
sério. E os reféns das Farc, quando vão ser libertados?
Ele chega tomado por uma ira santa.
Afogado nas desilusões e chateações provocadas pelo seu querido bicola que, ora
ora, um dia vai tomar jeito. Ele chega, de qualquer canto, das esquinas da razão,
atormentado. Com o humor meio lá, meio cá. E como se não bastasse a certeza
sobre um futuro incerto, tem que se aviar com o desconforto daquele calo abjeto
e aguado a avacalhar o bordado cheio de estilo da meia de passeio. Oh, Deus,
quanta provação!
Anuviado, desaba sobre o sofá. Tenta
relaxar. Um fiu fiu desafinado é o sinal para que o totó lhe traga os chinelos
(cachorrinho esperto!). De passagem, o filho do meio dá um clique
no aparelho de TV, atendendo-lhe o pedido repleto de ansiedade...E nada. A não
ser um minúsculo e embaciado ponto branco no centro da tela. A não ser o
silêncio sepulcral, a não ser a nociva indiferença eletro-eletrônica.
Aquela tarde de domingo, letárgica,
sonolenta e preguiçosa é, então, sacudida por um grito assustador, seguido de
um gemido doloroso e, por fim, por um palavrão indignado, daquele tamanho.
Todos acorrem ao homem, já à beira da
síncope. Um fio de voz denuncia a causa de tamanho sofrimento: a TV. A
televisãolzinha...A única coisa que o distraía, que o divertia. O passatempo
precioso. ‘mai préssscios, mai préssscios’! Quebrou...esbandalhou. Não acende
nada. Não diz um ai.
Os olhos atônitos voltam-se para o
aparelho e entreolham-se em
dúvida. A quem socorrer neste momento? O homem ou a
televisão? Decidem pelo homem, mas a TV precisa de cuidados e o filho mais
velho corre até o aparelho para ver o que aconteceu.
Água com açúcar, álcool nos pulsos e nas
frontes, uns abanos, um sopro solidário tangenciando a testa e palavras de
conforto tentam reanimar o homem. A avó procura um consolo relembrando a velha
Colorado RQ, a TV do rei Pelé, e diz que isso é passageiro, que depois de as
válvulas esquentarem, tudo volta ao normal, e dá umas batidas enérgicas com o
pé no chão da sala, pra ver ‘se a bicha pega’. Alguém sugere: “desliga e liga
de novo. Às vezes, é só um mau contato”. Outro aponta que umas pancadinhas
assim, devagarinho, no lado às vezes dá certo. Uma esperança. Ele arregala os
olhos, tentando animar-se. Mas a coisa não anda. De lá do canto nobre da casa,
o mais velho, que examinava a TV, dispara apocalíptico: “Axiiiiii, acho que foi
o fleibeque”.
Um golpe duro. Certeiro. Irresistível.
O homem estrebucha. Uma baba verde
espumosa desliza pelo canto da boca. O céu escurece. Trovões ressoam pelos
quatro cantos. Clarões perigosos faíscam no horizonte. Tudo é muito confuso,
ali, no espaço sagrado do sofá da sala. Nos estertores, nos últimos momentos de
lucidez, ele clama: “Minha TV...Minha televisãozinha...”, e perde as forças.
O suor vem frio e abundante e o homem
desmaia.
Alguém corre e liga pra assistência
técnica.
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