sexta-feira, 14 de junho de 2013

crônica da semana- caveirinha

O Caveirinha vai te pegar

Se ele aparecesse na tua taberna e alguma coisa pedisse, melhor era dar logo. Se não desse, ele vinha de noite e te roubava. E nada, absolutamente nada o impedia. Assim rezava a lenda do Caveirinha. 
Era um personagem famoso, na Pedreira, o Caveirinha, no início dos anos 70. Minha mãe contava das façanhas dele. Fazia medo pra gente, acreaninhos recém-chegados. Dizia que ele era encantado e que entrava na nossa casa até pelo buraco da fechadura. 
Foi meu medo, logo que chegamos a Belém. Era badalado na barra. Mas não cheguei a vê-lo nessa fase. Foi o período de maior efervescência na sua carreira de amigo do alheio. Andava nas bocas. Era Caveirinha pra cá, Caveirinha pra lá. E porque torna, Caveirinha; e porque deixa, Caveirinha. Era glamourizado, invisível e invencível. 
Não tinha paradeiro. Zanzava pelo subúrbio diuturnamente subtraindo coisas, diminuindo confianças, desprezando poderes e arrogâncias. Não tinha bom para ele. Deslizava pelos telhados e pelas mentes como uma divindade do revés, como um duende do prejuízo, como o algoz das irrefreáveis sujeições 
Contra uma investida do Caveirinha, não havia defesa. Em tantos anos de alarde, não tive, porém, conhecimento de uma ação dele violenta ou covarde. Era o bandido do fair play. 
O mistério, sim, havia. A delicadeza do afano, a elegância na realização de sumiços, os segredos que envolviam seu imperscrutável caminhar, isto sim, causava um certo fascínio, uma curiosidade patológica, uma paixão raivosa. 
Era um malandro respeitado. Conta-se até que, quando a polícia o prendia, era mais objeto de admiração que de repreendas. É bem verdade que uma unhinha aqui, outra ali, lhe era sacada, com todas as honras e reverências que o status de bom ladrão lhe facultava, porque naqueles anos de chumbo, a vida não era fácil pra ninguém, mas nada com desdobramentos tão aviltantes que lhe diminuísse a fama. Normalmente se lhe restabeleciam as garras, ali mesmo sob a tutela do Estado, e ele ao sair da cadeia, saía inteiraço. 
Quando o vi frente-a-frente, pela primeira vez, eu ainda era molecote. Trabalhava aviando pão e meio, frações da barra de sabão Regência, medidas bem medidas do óleo Jaçanã, unidades de bonecas de anil e cigarros Continental a retalho. Trabalhava numa taberna, na Marquês. Eis que apareceu ali, ao pé do balcão. Pressenti a visagem, a assombração, aquele que se esgueirava pelos espaços e tempos e nos levava as posses sem um ai sequer da vítima. Pediu um traçado, mas não me deu dinheiro algum. Olhei para o meu patrão, ele fez um sinal positivo com a cabeça e pus uma lapada caprichada de cachaça com um vinho travoso pr’ele. Bebeu com altivez, sem fazer careta. Desceu o copo ao balcão, fez um sinal de positivo para o dono da taberna, como se estivesse avalizando um salvo conduto que nos livraria da sua malícia, deu às costas e saiu com um andar balanceado. 
Anos depois, já o vi decadente. Bêbado, pelos estirões da Marquês. Ninguém mais o temia ou o respeitava. Tava só a casqueta. A molecada caçoava dele. Ele sempre com a camisa de botão aberta, deixando aparecer o relevo perfeitamente simétrico das costelas e uma tatuagem esverdeada. Estava nos estertores. Certa vez, ele apareceu varando, pelo meio da rua. Ia contra um vento forte que se deslocava ávido lá das bandas do igarapé do Zé. A camisa aberta ajudou na aerodinâmica, ele levantou vôo e se estatelou adiante, na piçarra. Minha patota foi ao encontro dele gritando vilipêndios para um corpo morto. Mas ele, embora, não parecesse, ainda estava vivo. Era uma lenda. Invencível. Levantou e correu atrás da gente. 

Um comentário:

  1. jraimundovaz@bol.com.br14 de junho de 2013 às 19:58

    Mundico e suas lendas, que nos traz lembranças que confunde com o espaço e tempo parecendo um filme em que os atores somos nós.

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