sábado, 4 de maio de 2024

crônica da semana - tucandeira

 Tucandeira

O mês de maio inicia com as comemorações e reflexões pelo Dia do Trabalho. Mesmo com a correnteza do livre pensar entendendo que a comemoração  deva ser pelo  Dia do Trabalhador, não há conflito na base ou no chão da fábrica de referendo sobre  o sentido de uma ou outra opinião. Penso que ambas são válidas. Ainda no meu tempo de militância sindical, reconhecia as duas referências, embora eu seja simpático, até recorrendo a uma visão Evolucionista, à versão que define o primeiro de maio como o Dia do Trabalho: reconheço a capacidade de realizar trabalho como uma propriedade essencialmente humana, evolutiva (que vem desde o aumento de volume do cérebro, passando pela mutação que gerou o polegar opositor, até a elaboração química que nos permitiu abstração e as formulações cartesianas dentro do cocuruto da gente), e que por toda a história tem o poder de modificar as coisas, o mundo, a vida.

Na origem, ora veja, trabalho é palavra ligada à dor.

Vem do latim tripalium e representa um instrumento de tortura. Com o passar dos anos, a palavra foi associada a este dom que temos de modificar as coisas, e mais: formou um conceito de troca de valores. O trabalho é tido também como mercadoria, como peça de uma engrenagem produtiva lubrificada pela alma das gentes.

Se o dia do trabalho ou do trabalhador é motivo de festa ou de dor, vai da gente. Depende das nossas análises pessoais, conjunturais e até à luz do dito humor do mercado. Eu, desde que era sindicalista, encapetado que era, e hoje, apascentado e ainda na lida da fábrica, faço do meu dia a dia, um oportuno laboratório que me dê perceber qual o real sentimento que habita o coração do operário ante o mundo do trabalho.

E sempre recorro ao marco cravado para a celebração da data e que se pauta na luta e na repressão de operários de Chicago, em manifestações pela redução da jornada, que chegava a 16 horas por dia, no final do século 19. Conto essa história, destaco que a reivindicação dos trabalhadores não foi atendida e ainda, que a manifestação resultou, segundo a versão mais conhecida, em enforcamento de sindicalistas. Aí, a reação que mais percebo nos meus companheiros de trabalho é um assustador distanciamento, um alheamento do desfecho, em alguns casos, com teor condenatório e pessimista. “Tá vendo,  lutaram tanto e perderam”, ouço, desnorteado, de parceiros que dividem a lida comigo, todos os dias e que hoje cumprem jornadas de, no máximo, 8 horas, conquistadas a partir da dedicação dos enforcados. Ouço que se referem aos condenados, na terceira pessoa: como ‘eles’. Eles perderam e não ‘nós perdemos’. Não se incluem no processo de lutas históricas.

Penso ser este desnorteamento, a minha dor. Meu tripalium rotineiro... doído.

A rotina do trabalho, porém, me legou outra dor, uma dor física insuportável, causada por uma ferrada de Tucandeira. Foi em Rondônia.

Eram meus primeiros anos vendendo a minha mercadoria-trabalho. Nem reconhecia o certo dos direitos, deveres, instintos ou impressões que permeavam meu mundo de trabalhador. Desenvolvia as atividades dentro das minhas oito horas, com intervalo para o almoço. Tínhamos um restaurante exclusivo para nos atender, coordenado por uma chefe exigente, disciplinadora. Todos, antes de entrar no restaurante deveriam fazer a higiene lá fora, se lavar, tirar a poeira e não entrar de botas no salão. Deu então que me cuidei, me ajeitei, deixei a bota na sapateira, e antes que eu chegasse à porta do prédio uma Tucandeira me pegou no caminho. Vi estrela, Fui na lua e voltei direto para os horrores da tortura que aquele veneno viajando desinibido fazia desde a ponta do dedão do pé até meu mais límpido espírito.

Alguém que ainda estava de bota viu a formigona desatracando de mim, esmigalhou a bicha na bicuda, mas a bronca já era feia. 24 horas e eras de dor imensa me esperavam. Resisti. Resisto ainda às ferroadas.

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário