sábado, 1 de dezembro de 2018

crônica da semana - quinhentos mirréis


Outros quinhentos mirréis
Meu coração tem aquele sereno jeito denunciado no Fado Tropical do Chico Buarque. Fica só na dele. Batendo com intenção. Vibrando com dolo. Mirando, cadenciado, outros corações.
É dado molengão que só ele às artes da paixão. Dor outra não conheceu que não fosse a do amor impossível, aquele negado cruelmente. De mal qualquer sofreu um dia que não houvesse sido ilustrado pelo romantismo mais desbragado, pela mais poética jura de enlevo ou adoração.
Era um cara acostumado às peripécias do coração. Angústias me eram combustível para versos verdadeiros sem rimas, mas aquecidos, sublimados. Um beijo negado era um isso para eu evaporar de mim. Leve nos padeceres, abismal nos meus devaneios, fluido nos meus ardentes desesperos.
O lírico pulsar dentro de mim, atualizava a cada instante a doce certeza de que definharia, na boa, dos males do amor, sem dizer um ai.
Agora de outros males do coração, já é outro papo. Aí são outros quinhentos mirréis.
Pois não é que o bichinho aprontou. Em agosto próximo passado, dando aquele pique na esteira, no exame de rotina, a minha corrida foi subitamente interrompida. O médico me mandou descer, não tirou os conectores e pediu que eu esperasse lá fora. Qualquer coisa, friozinho incomum, tonteira, essas piloras estranhas, que eu batesse na porta imediatamente. “Como assim?”,pensei cá com meus tênis de correr na esteira.
De lá até aqui, foi um correr atrás (sem correr, e sem fazer esforço nenhum) cauteloso, objetivo. Com traço e jeito pra não desesperar. Exames pra cá, consultas pra lá. Diagnósticos, prognósticos, avaliações. O troço teve remoso.
E eu que sou, no duro besta, não! Logo que vi a guinada do vento, tratei de me aviar. Após ter a interpretação do exame ergométrico, me entreguei à sensaboria de novas experimentações culinárias. Sem o sal que para mim era a luz do mundo. Sem a sedução do açúcar, sem a ousadia de um hambúrguer do canal com direito à catchupe e maionese à vontade. E sem, oh, dor... E sem a rodada de gelada no final de semana.
Dei uma aquietada, e só com esta revirada na rotina, perdi quase cinco, dos oito quilos necessários para harmonizar o meu IMC.
Foi uma cartada certeira. Meu tratamento vai exigir mudança de hábitos. E eu já estou no meio do caminho nas conquistas.
Meu coração sempre foi afeito a afetos. Disponível às liberdades e às diversidades. Não lhe apraziam as regras ou estatutos. Arrisco dizer que se deixava levar por tentações bandalhas, pra lá de livres. Era coração bola de balão. A mecânica fisiológica fundamental da minha vida era mundana. Um músculo insubmisso. Um vândalo gerador de impulsos eletromagnéticos e de cargas potentíssimas de carinhos, paixões, afeições, amores, paixões.
Esmigalhado por uma corrente passional arrasadora, dizimado pelas ilusões do amor, aviltado por ‘retoques trágicos’, o meu lírico pulsar lembra a doce certeza de que extinguir-me-ia, na boa, sem um ai.
Por outras paradas, não... Não seria na boa. Aí, se dariam outros quinhentos mirréis.
O jeito é capitular, pedir pira-paz. E me acostumar com a sensaboria das dietas e dos dias.

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