domingo, 19 de agosto de 2018

crônica remix- o rio do meu lugar


O rio do meu lugar
Belém é uma cidade entregue às águas. Castelo Branco quando varou aqui pensou num lugar estratégico para a ocupação da região (aliás, o que os portugueses sabiam fazer bem era ocupar pontos estratégicos. Muito depois de Castelo - e por um bom tempo- as nossas esquinas seriam testemunhas desta virtude. O cheirinho do pão quente, Três’orinha da tarde, denunciou sempre a presença prazerosa, bem a calhar, de um lusitano).
Mas não fez só isso. O fundador da Feliz Lusitânia nos legou uma paisagem líquida, volumosa, dinâmica: a orla de Belém. Esta aqui que obedece a linha que vai do Ver-o-Peso até, mais ou menos, Icoaraci, Mosqueiro. Tem uma direção Norte-Sul (depois, ela dá uma cambada para Leste e aí já toma ares de costa atlântica) e é responsável pelo nosso orgulho, pela nossa soberba.
A frente de Belém é composta pela somatória das águas do rio Guamá e rio Acará. O rio Guamá vem-que-vem, desde Ourém onde a água é mais clarinha e veloz (tem até cachoeira!). É um rio subversivo: corre de Leste para Oeste. Vem ao contrário, da beirada, para o centro.
Já o Acará, é um rio mais doméstico, mais nosso, mais íntimo. Vem do centro, para a beira. Traz o dialeto ribeirinho em si. Vem carreando notícias dos matapis. Vem prevenindo para o banho no balneário (trouxeste short?). Mas como, então? É o rio que traz as memórias de minha querida tia Irá.
Na frente de Belém, os dois rios se juntam e formam o que, popularmente, chamamos de baía do Guajará. Na verdade, um deslumbrante estuário. Ocorrem, aqui, de confronte, as grandes ondas, a alegria da enchente e a monotonia da vazante, a ventania verpertina, o pôr-do-sol dos amantes, as domingueiras festivas nos pontais.
Mais adiante, à altura de Icoaraci, e já de par com o aconchego da ilha de Cotijuba, o estuário se agiganta com o acréscimo das águas do rio Pará.
Este rio extraordinariamente grande desliza soberano pela planície. Prestativo, generoso, obsequioso. Leva e traz sonhos, ilusões, frustrações (além da conveniente aviação e miudezas em geral). Aquece e abranda saudades, no ir e vir dos “Fé em Deus”.  É o rio da integração guajarina-marajoara. Por ele, se chega a Macapá sem precisar voltear a costa. Por ele, se cruza de um mundo (de água) a outro, pelo emaranhado controverso, inexplicável de furos do baixio amazônico. Por ele, ah, por ele, se chega à praia do Pesqueiro e à Ponta de Pedras. Por ele a alma se enaltece nos segredos e mistérios da travessia.
O rio Pará tem rumo certo: o mar.
Corre de Oeste para Leste. Nasce não sei donde (aliás, nem parece que nasce. O rio Pará, simplesmente é.), mas é abnegado, decidido. Diz logo para que veio.
Quando se ajeita, lado-a-lado, com o Tocantins, o rio Pará se eleva à baía. Baía do Marajó (aquela de banzeiros e sacolejos de dar entojos e  arrupios).
E vai derramando suas águas sobre os tributários mais modestos, mais melindrosos, mais finos. Quando o rio Pará quebra para Leste e ganha o status de baía, não tem pra ninguém. Nem para o Guamá, nem para o Acará. Só dá ele.
Daí, Belém, Outeiro, Mosqueiro, também recebem a águas arrogantes, rigorosas do rio Pará. O rio, aqui na quebrada, no respeitoso estuário, vira um componente absolutista, inquestionável. E exige respeito (quem se atreve a atravessar a baía do Marajó sem pedir permissão?).
Um rio soberano, inquestionável, infelizmente, somente para as leis da natureza. Para a lei dos homens, um rio frágil.
No último final de semana, quis dar um mergulho na praia da vila do Conde, que é banhada pelo rio Pará. Mas não deu. Tive medo de sair de lá cheio de pira.

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