sábado, 18 de agosto de 2018

Crônica da semana - bolsa


Com bolsa e sem bolsa
Vontade que todo mundo tinha, era ter uma bolsa, na minha época de Escola Técnica. Penei que só para ganhar uma. Eu que era precisado pacas, dei graças ao bom pai quando recebi o benefício no último semestre do curso.
Sempre trabalhei por conta e tentava não depender desses vínculos formais. Em todo período da Escola Técnica, segurei as pontas aviando as finas confecções em fio-de-escócia, na barraca que a mamãe tinha na feira da Pedreira (em frente ao Bazar Brasil, como anunciava o reclame da rádio cipó). Era um ganho pouco e incerto, o da feira. Um dia tinha, outro não. Aqui, não vendia nada, mais adiante bamburrava. Uma grana curta, mas certa, vinha a calhar.
O numerário da bolsa, porém, se mostrou picado. Parte vinha do MEC e outra parte resultava de recursos próprios da Escola (não sei donde vinha não, mas esse era o mais certo. O dindim do MEC atrasava que só).
Continuei na feira. Ia abrir e fechar a barraca todos os dias e minhas irmãs aguentavam  o expediente que durasse minha bolsa. Chegava à Escola pelas oito da manhã. Fazia as tarefas, elaborava trabalhos, participava das aulas de Educação Física, com o Serginho, e me mandava pra Pedreira. Fechava a barraca, voltava para as aulas da tarde, na Escola e comia por lá (nessa época tinha sido criada a ‘merenda’ na Escola Técnica, e era a minha valência. Como bolsista, podia fazer as três refeições oferecidas no dia). Voltava pra casa só de noitinha.
Com o meu primeiro pagamento, tirei uma estante no crediário de uma loja tradicional aqui da cidade que, olha só, até hoje ainda resiste às pressões das grandes redes do ramo. Produzia trabalhos na escola. Mapas, artigos. Lia mina de ‘apostilhas’ (sim, até dia desses eu falava ‘apostilha’). Começava a minha coleção de rochas e minerais. Não tinha lugar pra guardar meus tereréns. A estante veio para satisfazer esta necessidade.
A grana da bolsa era uma grana disputada. Outros interessados reivindicavam este recurso federal. Então era uma ação de governo, como hoje, minada, atacada para não resistir. Listada para acabar. E como salientei, a estratégia era fragilizar esta ferramenta de ajuda ao estudante. A falha no pagamento que vinha do MEC quebrava nosso orçamento e tirava a credibilidade do benefício.
Os atrasos foram tantos, que quando viajei para o meu primeiro emprego depois de formado, devia umas quantas prestações da estante. Só deu pra pagar a entrada. As outras parcelas ficaram penduradas nos pregos do caminho, junto com os cheques do MEC que nunca chegavam.
Sem esperança de receber, a loja mandou buscar a estante de volta. Mamãe ficou num desespero só. A estante era meu maior bem e uma peça que lembrava o filho, agora morando longe, nos sertões da Amazônia. Quando os carregadores colocaram a estante no caminhão, para devolução, mamãe subiu junto e foi bater na loja com o gerente. Na chegada, nem descarregaram o móvel. Mamãe chorou, virou, mexeu, convenceu e voltou pra casa com a estante. O meu primeiro salário como Técnico em Mineração, enviado de Rondônia, pelo banco, como ordem de pagamento, quitou a dívida.

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