Cenas de cinema
Cena
1: O cavalo seria sacrificado. Sofria desde o dia da queda. A pata dianteira
quebrada era um suplício para o animal. O fazendeiro armou a espingarda.
Consolado por familiares, amigos, dirigiu-se para a missão. O coração
dilacerado. Um sofrimento atroz. Lágrimas inundavam-lhe os olhos. Mãos
trêmulas, dor da perda. O desapego indelicado, a certeza da separação, um amor
apartado. Somou-se em sentimentos nobres. Postou-se diante do animal. Com
dramática contrafeição apertou o gatilho. À frente dele, denso e gelatinoso, o
cavalo tomba morto.
Cena
2: O mesmíssimo típico cidadão americano arma novamente a espingarda.
Concentra-se frio e decidido. Mais adiante, uma casa é saqueada, incendiada por
um grupo de, igualmente cidadãos americanos, encapuzados. A família que estava
sendo atacada não resiste ao sítio e, em desespero lança-se à rua em busca de
salvação. Um homem negro consegue furar o cerco dos encapuzados e dispara pela
rua margeada de pequenas árvores. O mesmíssimo cidadão que tem pena de
sacrificar cavalos faz a mira. Dispara o tiro certeiro. À frente dele, leve e
humilhado, o homem negro tomba morto.
As
cenas são de um filme que assisti há alguns anos. Guardei na memória esta
sequência, também porque ela expressa o sofrimento de um fazendeiro ao ter que
sacrificar um cavalo de sua propriedade. Mas o motivo real de ter sempre em
mente esta passagem do filme é que o dito fazendeiro, interpretado com muita
competência pelo ator Tom Berenger, não expressa nenhum pudor, não revela
nadica de nada de piedade ou dó, ao matar um homem negro. Para matar um cavalo,
era um sofrimento só. Mas para matar um preto, era daqui pra’li.
Uma
sincera narrativa da natureza humana, este filme. Dentro de nós, habitam seres
diversos. Médicos, monstros. Anjos, demônios. Singelos passarinhos, víboras
terríveis. Mundos entrelaçam-se nos meandros da alma e deságuam em atos,
omissões. Revelam resistências, permissões. Tudo conforme e conveniente aos
termos, à hora. Tudo de acordo com crenças e certezas. Vilões e mocinhos
protagonizam nossa história, de acordo com os interesses, com as oportunidades.
O bem, o mal relativizam-se nas nossas ações a partir das possibilidades de
sucesso ou comodidades.
Me
pelo de medo disso.
Nos
últimos tempos, atento aos repentes sociais que grassam no Brasil, tenho olhado
para dentro de mim tentando conciliar meus eus. Procuro apaziguar os embates.
Tomar posição ou intentar uma obra pode daqui pra’li, ser registro de um ato
intolerante, preconceituoso. Tenho o maior cuidado para não ser confundido com
o fazendeiro que tem pena de sacrificar um cavalo, mas não hesita em derrubar
um homem negro. Entre tantos caminhos, desvio do comportamento que prega ser
contra o aborto, mas apoia a pena de morte. Nego veementemente a ideia de ser
contra a violência, e por outro lado, defender o uso de armas pela população. Tento
domar meus eus.
Cena
1: Então é Natal. Luzes piscando. Um clamor é solto ao vento. Paz. Amor.
Felicidade.
Cena
2: O fazendeiro arma a espingarda. Posta-se diante do espelho...
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