sábado, 10 de dezembro de 2016

crônica da semana - cena de cinema

Cenas de cinema
Cena 1: O cavalo seria sacrificado. Sofria desde o dia da queda. A pata dianteira quebrada era um suplício para o animal. O fazendeiro armou a espingarda. Consolado por familiares, amigos, dirigiu-se para a missão. O coração dilacerado. Um sofrimento atroz. Lágrimas inundavam-lhe os olhos. Mãos trêmulas, dor da perda. O desapego indelicado, a certeza da separação, um amor apartado. Somou-se em sentimentos nobres. Postou-se diante do animal. Com dramática contrafeição apertou o gatilho. À frente dele, denso e gelatinoso, o cavalo tomba morto.
Cena 2: O mesmíssimo típico cidadão americano arma novamente a espingarda. Concentra-se frio e decidido. Mais adiante, uma casa é saqueada, incendiada por um grupo de, igualmente cidadãos americanos, encapuzados. A família que estava sendo atacada não resiste ao sítio e, em desespero lança-se à rua em busca de salvação. Um homem negro consegue furar o cerco dos encapuzados e dispara pela rua margeada de pequenas árvores. O mesmíssimo cidadão que tem pena de sacrificar cavalos faz a mira. Dispara o tiro certeiro. À frente dele, leve e humilhado, o homem negro tomba morto.
As cenas são de um filme que assisti há alguns anos. Guardei na memória esta sequência, também porque ela expressa o sofrimento de um fazendeiro ao ter que sacrificar um cavalo de sua propriedade. Mas o motivo real de ter sempre em mente esta passagem do filme é que o dito fazendeiro, interpretado com muita competência pelo ator Tom Berenger, não expressa nenhum pudor, não revela nadica de nada de piedade ou dó, ao matar um homem negro. Para matar um cavalo, era um sofrimento só. Mas para matar um preto, era daqui pra’li.
Uma sincera narrativa da natureza humana, este filme. Dentro de nós, habitam seres diversos. Médicos, monstros. Anjos, demônios. Singelos passarinhos, víboras terríveis. Mundos entrelaçam-se nos meandros da alma e deságuam em atos, omissões. Revelam resistências, permissões. Tudo conforme e conveniente aos termos, à hora. Tudo de acordo com crenças e certezas. Vilões e mocinhos protagonizam nossa história, de acordo com os interesses, com as oportunidades. O bem, o mal relativizam-se nas nossas ações a partir das possibilidades de sucesso ou comodidades.
Me pelo de medo disso.
Nos últimos tempos, atento aos repentes sociais que grassam no Brasil, tenho olhado para dentro de mim tentando conciliar meus eus. Procuro apaziguar os embates. Tomar posição ou intentar uma obra pode daqui pra’li, ser registro de um ato intolerante, preconceituoso. Tenho o maior cuidado para não ser confundido com o fazendeiro que tem pena de sacrificar um cavalo, mas não hesita em derrubar um homem negro. Entre tantos caminhos, desvio do comportamento que prega ser contra o aborto, mas apoia a pena de morte. Nego veementemente a ideia de ser contra a violência, e por outro lado, defender o uso de armas pela população. Tento domar meus eus.
Cena 1: Então é Natal. Luzes piscando. Um clamor é solto ao vento. Paz. Amor. Felicidade.
Cena 2: O fazendeiro arma a espingarda. Posta-se diante do espelho...


Nenhum comentário:

Postar um comentário