Amigo invisível
Vou
dar um tempo na prosa (porque encasquetei de escrever um traçado encarreirado
das minhas impressões sobre a vida de trabalhador, sobre o doce acre mundo do
trabalho) e vou abrir um parêntese para falar do Natal. E olha só, na biqueira,
porque hoje já é véspera.
Então
é Natal.
E
nem vou me enviesar tanto do rumo tomado, traçado decidido e encasquetado,
visto que a prosa que me ocorre vem de um ano aí, quando trabalhava de
empacotador de supermercado e fizemos lá entre nós, do baixo clero, uma
brincadeira de amigo invisível.
Foi
numa fase em que se estava desarticulando o trabalho dos garotos. Estávamos com
os dias contados. Seríamos substituídos pelos ‘de maior’. Um deles operava já
há um tempo. Estava adaptado. Era bem mais velho que nós, os boys, e bem mais
velho também que os outros colegas mais velhos. Seu Sandoval.
O
Natal era uma época boa. Ganhávamos muita gorjeta. A gente que conhecia os
fregueses de olhos fechados, dava um banho no Sandoca. Ele dava uma patetada e
pegávamos o freguês dele. Pra faturar um bom apurado no dia, seu Sandoval tinha
que se aliar. Trabalhávamos em dupla, empacotando. Um selecionava o cliente, ia
buscar o carrinho lá no corredor; o outro providenciava os paneiros, jornal pra
forrar, flanela pra limpar o balcão do caixa quando um congelado descongela e
pinga. Dias antes do Natal, tiramos os nomes no amigo invisível. Sandoca não
era dessas coisas. Nem sabia como funcionava a brincadeira direito. Mas foi
convencido. Meteu a mão no saco e tirou um nome. Dias antes do Natal, Seu Sandoval
veio pro meu caixa. Aí, fomos nos conhecendo melhor, eu e meu concorrente.
Numa
dessas, na hora da merenda, naquele sufoco de movimento, nos aviamos de umas fatias
de presunto afiambrado, um pão com manteiga de duas passadas, duas Grapetes
geladinhas, e fomos matar a broca na calçada do estacionamento.
Tinha
cinco filhos. Morava numa estrada do Coqueiro ainda na piçarra e no matagal.
Estudo muito pouco. Com o dinheiro da gorjeta, comprava arroz, feijão, açúcar,
leite Girolei, sabão Regência. Todo dia levava uma coisinha. Reparei direitinho
nele. Era bem velhinho. Tinha perto de 60, acho. Não ia aguentar muito tempo
naquele trabalho braçal de carregar paneiros pelas ruas do Marco.
No
dia 24, todo mundo bamburrado. Dinheiro só do graúdo de gorjeta. Minha dupla
com seu Sandoval foi um sucesso. A loja fechando, os últimos fregueses saindo,
portas baixando. Antes do último caixa encerrar, fomos à seção de brinquedos, eu
e meu parceiro. Desacostumado com a brincadeira de amigo invisível, confessou
haver tirado meu nome. Apanhou da prateleira cinco brinquedinhos baratos para
os filhos, e um mais ajeitadinho para mim. Separou dinheiro pra pagar.
Tomei
os brinquedos da mão dele e fui direto ao caixa. Paguei do meu apurado, os
presentes dos meninos dele, e o meu.
No
início de janeiro, nós, os garotos, fomos demitidos. Os grandes tomaram nosso
lugar. Seu Sandoval ficou. Não ficou por muito tempo... O presente que ele me
deu (um trenzinho de plástico), não foi substituído, durou um tempão, até ficar
bem velhinho.
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