sábado, 24 de dezembro de 2016

crônica da semana= sandoval

Amigo invisível
Vou dar um tempo na prosa (porque encasquetei de escrever um traçado encarreirado das minhas impressões sobre a vida de trabalhador, sobre o doce acre mundo do trabalho) e vou abrir um parêntese para falar do Natal. E olha só, na biqueira, porque hoje já é véspera.
Então é Natal.
E nem vou me enviesar tanto do rumo tomado, traçado decidido e encasquetado, visto que a prosa que me ocorre vem de um ano aí, quando trabalhava de empacotador de supermercado e fizemos lá entre nós, do baixo clero, uma brincadeira de amigo invisível.
Foi numa fase em que se estava desarticulando o trabalho dos garotos. Estávamos com os dias contados. Seríamos substituídos pelos ‘de maior’. Um deles operava já há um tempo. Estava adaptado. Era bem mais velho que nós, os boys, e bem mais velho também que os outros colegas mais velhos. Seu Sandoval.
O Natal era uma época boa. Ganhávamos muita gorjeta. A gente que conhecia os fregueses de olhos fechados, dava um banho no Sandoca. Ele dava uma patetada e pegávamos o freguês dele. Pra faturar um bom apurado no dia, seu Sandoval tinha que se aliar. Trabalhávamos em dupla, empacotando. Um selecionava o cliente, ia buscar o carrinho lá no corredor; o outro providenciava os paneiros, jornal pra forrar, flanela pra limpar o balcão do caixa quando um congelado descongela e pinga. Dias antes do Natal, tiramos os nomes no amigo invisível. Sandoca não era dessas coisas. Nem sabia como funcionava a brincadeira direito. Mas foi convencido. Meteu a mão no saco e tirou um nome. Dias antes do Natal, Seu Sandoval veio pro meu caixa. Aí, fomos nos conhecendo melhor, eu e meu concorrente.
Numa dessas, na hora da merenda, naquele sufoco de movimento, nos aviamos de umas fatias de presunto afiambrado, um pão com manteiga de duas passadas, duas Grapetes geladinhas, e fomos matar a broca na calçada do estacionamento.
Tinha cinco filhos. Morava numa estrada do Coqueiro ainda na piçarra e no matagal. Estudo muito pouco. Com o dinheiro da gorjeta, comprava arroz, feijão, açúcar, leite Girolei, sabão Regência. Todo dia levava uma coisinha. Reparei direitinho nele. Era bem velhinho. Tinha perto de 60, acho. Não ia aguentar muito tempo naquele trabalho braçal de carregar paneiros pelas ruas do Marco.
No dia 24, todo mundo bamburrado. Dinheiro só do graúdo de gorjeta. Minha dupla com seu Sandoval foi um sucesso. A loja fechando, os últimos fregueses saindo, portas baixando. Antes do último caixa encerrar, fomos à seção de brinquedos, eu e meu parceiro. Desacostumado com a brincadeira de amigo invisível, confessou haver tirado meu nome. Apanhou da prateleira cinco brinquedinhos baratos para os filhos, e um mais ajeitadinho para mim. Separou dinheiro pra pagar.
Tomei os brinquedos da mão dele e fui direto ao caixa. Paguei do meu apurado, os presentes dos meninos dele, e o meu.
No início de janeiro, nós, os garotos, fomos demitidos. Os grandes tomaram nosso lugar. Seu Sandoval ficou. Não ficou por muito tempo... O presente que ele me deu (um trenzinho de plástico), não foi substituído, durou um tempão, até ficar bem velhinho.


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