sábado, 10 de abril de 2021

crônica da semana - refração

 O copo com uma colher dentro

Arremeda ser registro da esperteza de um engraçadinho que passou, jogou as coisas na pia e se picou para momentos de preguicinha sem remorsos. Né não.

A composição do copo com uma colher dentro é uma montagem que favorece o entendimento sobre um fenômeno físico de difícil apreensão, no entanto, indispensável para a harmonia do nosso mundo: a refração. Trata-se do desvio que a luz sofre, quando muda de meio físico. A experiência clássica é esta uma: o copo de vidro com uma quantidade xis de água e uma colher mergulhada nele. Quando a gente olha através do copo, parece que a colher tem uma quebra, quando está dentro da água. A ilusão de ótica se dá por causa do desvio que a luz sofre ao passar de um meio (o ar) para outro (a água).

Guardei essa lição aprendida com o melhor professor de Física que conheci: o excepcional professor Campbel, com quem estudei na Escola Técnica e que além de me estimular na percepção dos fenômenos, como o que ocorre no copo com uma colher dentro, também cravou em mim a estratégia de nunca resolver ou substituir as letras de uma equação, sem antes arrumar a fórmula todinha e isolar a incógnita no primeiro termo, só depois, e de lá, até hoje, só depois é que inicio o sofrimento com as contas.

Cismo que não há um único brasileiro que não tenha sofrido refração nesses tempos, de tudo quanto é jeito, assombrosos.

O fenômeno, a gente percebe no campo físico. O espaço partilhado entre as pessoas não mais é tratado como dantes. Cada palmo de chão é monitorado, contado nas medidas da segurança e da vigilância com a saúde. Equações são montadas a partir de incógnitas de convivência. Mesmo assim, quando a gente substitui as nossas ações, todas elas, por números, chegamos a resultados estarrecedores. Estamos beirando as 5 mil mortes por dia. Daqui a pouco o Brasil vai registrar a assustadora marca de 500 mil óbitos por Covid. E nenhuma resultante prática para conter o extermínio se vê. Mobilização nacional, não tem. Condução unificada de propostas, não há. Uma vilania política sem tamanho caçoa da tragédia. Não nos é dada alternativa alguma no presente. E o futuro se mostra nebuloso, sombrio. O que poderia nos salvar era a vacina. Mas todo dia a promessa de vacinação se esvai pelo ralo. Esta semana parou tudo. Faltou vacina. Os números da imunização no Brasil indicam que foi distribuída uma quantidade de vacinas muito aquém do que estava prometida pelo Ministério da saúde. Sem vacina, sem amanhã.

As quebras, os desvios, além de se manifestarem no campo físico, também se estendem para a esfera emocional, comportamental. Tirando por mim, tenho oscilado do io ao chio em sentimentos, em sensações, gestos e atitudes. Solidão, apreensão, indignação e medo são companhias diárias, alternadas, às vezes. Noutras, no pacote completo. Destruindo, destroçando minha alma. Acredito que esta instabilidade, este sofrimento tórrido, seja brasa que arde e queima dentro de muita gente. Acompanho pelas redes sociais, pelo noticiário, o telefone toca e a notícia dói. Já tentei várias estratégias para equilibrar o animus. Por último, voltei a madrugar. Refletir ao alvorecer, contemplar o raiar do sol, ouvir o cantar dos primeiros pássaros e o acordar longe da minha Pedreira querida.

Há, porém, um fenômeno acontecendo no horizonte todos os dias. A colher está mergulhada dentro do copo com água. E não é uma ilusão de ótica. Ela está quebrada mesmo.

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