domingo, 7 de janeiro de 2024

crônica da semana - Paula e Bebeto

 Paula e Bebeto

Um tibum bem mergulhado no ano novo nos dá oportunidade de prestar reparo no efeito baladeira, aquele exercício de reflexão que nos leva lá atrás, nos enche de aprendizado, lições fundamentais e depois nos joga pra frente, cheios de motivações. Por isso o título da crônica faz referência a uma canção do Milton Nascimento. Não exatamente com os mesmos nomes, do jeito que está aí em cima. Pelo meu enredo, o título seria Zé Carlos e Bebeto. Pus o título da canção do Milton, pra funcionar como um chama. É música conhecida. Pode-se entender como uma licença do cronista a uma pegadinha. No frigir dos ovos, tudo busca um sentido porque pelo certo e reto, pesquei um verso desta canção que nos alerta sobre o peso das palavras não ditas. E me agarrei a ele, eu que não sou besta nem nada, para iniciar o ano falando da minha mais absoluta admiração por esses companheiros.

Barcarena fez 80 anos, no dia 30 de dezembro próximo passado. Contada mais para trás, a história da região passa a ser centenária. Um dos vetores principais da Cabanagem, Barcarena se eleva como portadora das ânsias e das lutas populares. Aos historiadores cabem as medições e dimensões dos mais diversos setores sociais na construção da personalidade da cidade. A mim, me cabe superar as palavras não ditas e sustentar que a história de Barcarena, entre tantos ilustres, tem que ter umas páginas dedicadas a Zé Carlos e Bebeto.

Eu os localizo na primeira geração sindical do município ligada à atividade de transformação. São da época da implantação do pólo industrial. Assumiram o desafio de implementar uma versão operária à organização local, ramificada  das veredas, dos escaninhos e varadouros de rio que caracterizavam a região como extrativista e comercial. Esta nova estrutura da produção demandava outras visões e entendimento do que nos acostumamos chamar de relação capital/trabalho. E foi no meio das reflexões hidratadas por ações decisivas de organização e conquistas que conheci Zé Carlos e Bebeto. Me permito colocar os dois no mesmo bolinho de afeto, porque eram assim, meio que unha e carne. Talvez haja aí um lapso, um desvio não contado no tempo, e outros líderes tenham se destacado no chão da fábrica, contudo, ainda no alvorecer do processo industrial, foi com os dois que me dei e foi ao lado deles, inspirado neles que meu espírito se animou a grandes batalhas em favor dos trabalhadores e do desenvolvimento do município.

Agora na virada do ano me veio que demos uma virada na vida. Há muito nos desligamos da lida sindical, cada qual cuida das suas posses e das suas lembranças nos termos e jeitos que a vida nos dá. A essência, tenho plena consciência, de cada um, ali intacta, inabalável. Não nos encontramos mais, como as vontades ditam, entretanto, nossos caminhos se firmaram na margem boa da história. Bebeto, com o ímpeto, a iniciativa, aquela leitura lúcida, uma eletricidade prática, imediata de fazer o bem, é sempre uma boa companhia no front. Zé Carlos, um cavalheiro, doce. Intelectual. Naqueles tempos, era um dos poucos da peãozada a dominar o inglês. Acudi-me algumas vezes dele para traduções ou mesmo composições de textos para divulgação nas estranjas. Houvesse no Brasil hoje, umas boas dúzias de Bebetos, outras quantas pencas de Zé Carlos, certamente seríamos um país mais feliz, mais orientado e mais decisivo nas buscas por igualdade, paz e justiça.

São essas as palavras que não foram ditas. Às vezes ocultadas pela vaidade instantânea ou por aquela trava besta que nos impede de elogiar, dar valor a quem tem. Penso que meu coração se contenta, a alma se alivia e meu ser se inclina à humildade quando expresso amor, carinho, admiração por quem dedica a vida à construção de novos dias. Como canta Milton: “no meu canto, estarão sempre juntos”... A mim.

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