Não vou sair, não vou deixar este lugar
Hoje,
é bem mais fácil de entender. Abro o Google Earth e num instantinho reconstruo
a viagem que fiz desde os férteis barrancos do rio Acre até a indefinida foz do
Amazonas. Na imagem, revisito os retorcidos rios ocidentais; a inesgotável bacia
hidrográfica; o sufocante estreito de Breves; a imensidão marajoara; a mansidão
do Arrozal; os acintosos espigões; a simetria britânica e a perdoável
arrogância das torres do mercado de ferro do Ver-o-Peso... Belém.
A
baía do Marajó nos deu as boas vindas com um furioso banzeiro que levava o
Domingos Assmar a uma perigosíssima coreografia alternando-se em audaciosas
inclinações a bombordo, a estibordo. E a gente enjoando, se desesperando. Mamãe
cuidando. Acalmando. Até que, impotente diante da forças das águas, nos juntou
os quatro pequenos no camarote e nos uniu em fervorosa oração.
Deus
sabia que queríamos ser paraenses, e quando ouvimos a quebradeira do mato,
quando sentimos o ronco dos motores suavizar-se num surpreendente desafogo,
quando percebemos um deslizar cômodo e seguro sobre o tapete líquido do furo do
Arrozal, paramos de chorar, e nos abraçamos felizes com a certeza de que
chegaríamos naquela Belém que mamãe tanto falava. Naquele lugar mágico margeado
por florestas, rios grandes, sonhos e desejos. Naquela terra prometida em que
reconstruiríamos as nossas histórias e reinventaríamos a vida longe das ruas de
seringa e dos enlatados imperialistas.
(A
mais determinante seqüência, desde a partida naquele batelão de linha, lá no
Xapuri, que trago na memória é esta: a saída daquele furor líquido da baía do
Marajó, a reconfortante estaladeira de mato, a calmaria do Arrozal e... As
torres do Ver-O-Peso).
Se
alguém um dia me pedir para definir Belém, não vou ter dúvidas. Belém é a minha
bonança. A minha paz.
Tudo
conspira, né. Todas as circunstâncias contribuíram para que eu admitisse que Belém
seria a minha redenção, o meu fim, o meu desprendimento, o meu suspiro de
alívio (depois daquele frenesi, na baía do Marajó, então, Belém foi uma graça alcançada).
Desembarcamos
no galpão Mosqueiro-Soure dizendo “é aqui” nesta beira de rio.
E
foi mesmo. Meus momentos mais marcantes da infância, da adolescência, da
juventude e agora, já fazendo a rima com o ‘enta’, foram sempre à margem desta
baía.
Um
beijo, um porre, um pensamento mau, um dinheirinho suado, uma desilusão, um
assombro, um arrependimento, uma despedida, um reencontro, uma poesia, um
palavrão, uma maldição, meu bem, meu mal, minha indiferença, o pôr-do-sol, o
luar, a cachaça de Abaeté, uma nota no violão, a chuva fina, o amanhecer, os
olhos farinhados de sono, as pimentas coloridas e o verde das folhas orvalhadas
pela madrugada, o mistério das ervas, o imprevisível humor das ondas que às
vezes vão buscar a gente lá longe, a brisa amiga e refrescante no final da
tarde, a minha saudade e o sal das minhas lágrimas que rolam agora sem embaraço
nenhum...
Certa
vez, depois de algumas adaptações, e um casamento perfeito, debandei. Passei
dez anos vagando por aí. Trairei Belém. Me apaixonei por Porto velho, tive um
caso quase que irreparável com Altamira, me iludi com os apelos calientes
de Manaus, destrambelhei completamente
por Macapá. Mas um dia... Um dia voltei aos aconchegantes braços da minha
cidade.
E daqui,
não saio mais.
Na
beira deste rio quero descansar. Um dia (não agora, ainda não) atendendo a um
convite irrecusável da natureza, o que restar de mim, “é aqui” que gostaria que
repousasse para sempre. Quero me misturar às águas deste rio e virar maresia, maré
cheia, Acará, Guamá, Guajará...
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