sexta-feira, 7 de agosto de 2020

crônica da semana - home de pôr café

 

Homem de pôr café

Até aquele domingo só havia entrado numa igreja porque minha mãe, certa vez, cismou de eu, ainda adolescente, apadrinhar a filha de uma freguesa dela. Obviamente que o arranjo resultou numa relação de compadrio fracassada e depois, reciprocamente esquecida.

Eis que no domingo, dentro da programação do encontro, ocorreria a celebração da Eucaristia. Corri e revelei aos coordenadores que não era católico praticante, não lembrava a única vez que tinha participado de uma missa, sequer carregava o abono da Primeira Comunhão. Reconheci que não era merecedor de celebrar com os outros naquele domingo. Celebrei. Fiz a confissão com o Padre Lourenço, fui absolvido e recebi conselhos do Bertolusso. Naquele dia aconteceu a minha Primeira Comunhão.

A missa encerrava três dias de reflexões contidos no encontro anual de jovens da Escola Salesiana do Trabalho. O encontro avalizava os garotos a ingressarem no Movimento Caminhada, grupo de ação pastoral mantido pela Escola. A reunião se realizava na casa dos padres em Mosqueiro e na volta para Belém, uma recepção cheia de emoção nos aguardava. Todo o cenário concorria para um arrebatamento, um êxtase quase incontrolável, uma explosão de fé. O encontro que dava início à nossa caminhada era como se fosse uma fonte de múltiplas energias, manancial de esperanças, águas puras e santas das quais nos nutríamos de força e coragem para mudar o mundo.

Mas foi a conta. Quando voltei para Belém, pensei já ser santo. Na recepção, logo dei um carão na minha família, porque viviam na perdição; nos dias seguintes, virei-me contra os moleques da rua; me isolei dos colegas da Escola Técnica. Estava purificado e não podia correr o risco de me perder de novo pelos escuros do mundo. Alguém que me conhecesse, arriscaria dizer que eu tinha ficado bilé da cuca. Era quase um fanático. Um fundamentalista cristão edificado em três dias de retiro.

Não aconteceu o mesmo com os outros meninos que fizeram o encontro comigo, porque eles já eram maceteados, viviam a realidade de uma escola religiosa. Nada do que ouviram ou fizeram no encontro, era novidade para eles. Para mim, sim. Não era aluno salesiano, nem de longe íntimo da fé e dos ritos da igreja. Quando me vi naquele fim de semana, minado de informações e doutrinas nunca experimentadas, me impressionei.

Logo no início do isolamento social, fui liberado de fazer o café aqui em casa. O coletivo não aprovou minhas experiências. Passados quatro meses, fui autorizado a inventar de novo. Todo dia faço de um jeito ou de uma composição diferente e depois pergunto pra turma se acertei no sabor. Não sei deixar panela no fogo sem assistência, até concluir o processo, fico em cima. Observo todos os fenômenos que acontecem. O aquecimento da água, a subida das primeiras bolhas, a reação de solubilização quando a gente acrescenta açúcar, a evolução da temperatura quando a gente não coloca açúcar, a dissolução do pó sobre a água e da água sobre o pó. Enquanto preparo o café, resgato um dos enunciados mais sublimes da Física: o Princípio da Incerteza.

Até aquele domingo nunca tinha entrado numa igreja de vontade própria. Não imaginava o peso de uma conversão. Era um sereno rapazinho de pouca fé e de prudentes incertezas, como, mais tranquilamente, hoje me sinto. Sei hoje que nada é determinadamente absoluto, santo ou isento, como, durante minha caminhada, me fizeram acreditar, os meninos maceteados que fizeram um encontro de três dias comigo, na casa dos padres, em Mosqueiro.

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