A moça da janela
Postava-se à janela, no final da tarde. O jeitinho gracioso, o sorriso redondo, inocente e um tanto recolhido, tímido. O busto doirado pela blusa cotidiana, o olhar apertado, sutil, a procurar temas e artes pelo vazio da rua. O retrato juvenil exposto asseado, asséptico, emoldurando o entardecer.
Era assim todo dia. Nos encontrávamos quando o sol caía. A mãe soltava as amarras e a deixava subir à janela para apreciar modos e movimentos.
A relação mais íntima, mais profunda que tinha com a rua se resumia a estes fascinantes instantes. Assim que a luz rareava; no lance conciso em que as folhas das acácias perdiam o verde para o negror ralo e esfumaçado do crepúsculo; no momento algo aflito em que os raios do sol, como se desencantados, preferiam subir ao céu tangenciando a copa da árvore mais alta a iluminar o mais humilde e necessitado plano da Terra; naquela hora sofrida, quando a noite chegava, ela, obediente, obsequiosa, submissa; por uma lei imposta pela mãe, abandonava, em dramático silêncio, o quadrado da janela, descia dos meus sonhos e sumia na aridez da saudade.
Nos víamos em uma outra e breve situação. Nem sempre possível por causa dos desencontros nos horários. Era na saída para a escola. Tomávamos rumos diferentes, mas aquele andar provocador, eu ainda percebia de través. O balançado ritmado de carimbó, a harmonia folgazã que havia entre o uniforme escolar e aquele caminhar cheio de sensualidade, eu dava sempre um jeitinho de contemplar. Depois nos perdíamos de vista. Era assim o nosso namoro: nos triscares da manhã e nos findares do entardecer.
Era uma menina que vivia presa, submetida a um cuidado descabido da mãe. Tirando as mínimas aparições nos extremos do dia, não vinha à rua de jeito ou maneira. Não ia à feira comprar farinha, não se abalava à taberna da esquina para comprar pão, não atravessava a pista para providenciar uns quantos chopes de groselha para os irmãos menores, ninguém a via pelo quintal ajeitando roupas no quarador, pulando macaca com as pirralhas de casa ou colhendo camapu ao rés-do-chão, como faziam as meninas mais expeditas da vizinhança e que eram do top e do tempo dela.
Oprimida, espremida. Imprensada, esmigalhada pela mãe que chegava ao amanhecer com um quilo de carne embrulhado na folha de guarumã, uma porção de legumes comprada por alguns centavos o lote, de alguma venda improvisada em caixa de madeira à margem do mercado; pela mãe que de manhãzinha aparecia na porta com os olhos escurecidos de alguma dose que tomou sem vontade, de algum cigarro que tragou sem gosto, de algum gozo indesejado que sentiu; pela mãe que chegava, ao raiar do sol, como se fosse uma visagem má de tantos beijos que negava nas boléias dos caminhões. Mas que provia a casa com o cumê necessário e uma moral rígida.
Pressionada, apertada, subjugada pela mãe que, embora superasse as noites, uma após outra, em claro, rolando de colo em colo, rolando entre ascos e repugnâncias, não permitia uma mancha sequer sobre a tez virginal da filha. Cuidava com tirania. Protegia com severidade.
Se me perguntarem como era a voz dela, eu não sei. De que jeito o sorriso se anunciava ao vento, eu não sei (sei que era tímido e solitário), qual o pensamento que ela tinha sobre o mundo, eu não sei. Sei que era naquele instante em que ela aparecia linda, na janela, que os nossos olhares se encontravam e ficávamos nós a namorar. Separados pelo movimento lento da rua, pelo farfalhar sem tino das acácias, pelo medo instransponível da mãe, pelo silêncio amigo e pelo desejo infindo.